VIDA E MORTE EM CONTEXTO DE DOMINAÇÃO BIOPOLÍTICA – Peter Pál Pelbart

Nunca o poder chegou tão longe e tão fundo no cerne da subjetividade e da própria vida.”

quando parece que <está tudo dominado>, como diz um rap brasileiro, no extremo da linha se insinua uma reviravolta: aquilo que parecia submetido, controlado, dominado, isto é, <a vida>, revela no processo mesmo de expropriação sua potência indomável.

Retomo brevemente a descrição feita por Giorgio Agamben a respeito daqueles que, no campo de concentração, recebiam essa designação terminal (muçulmanos). O <muçulmano> era o cadáver ambulante” “O <muçulmano> era o detido que havia desistido, indiferente a tudo que o rodeava, exausto demais para compreender aquilo que o esperava em breve, a morte. Essa vida não-humana já estava excessivamente esvaziada para que pudesse sequer sofrer. Por que muçulmano, já que se tratava sobretudo de judeus? Porque entregava sua vida ao destino, conforme a imagem simplória, preconceituosa e certamente injusta de um suposto fatalismo islâmico: o muslim é aquele que se submete sem reserva à vontade divina.” “O biopoder contemporâneo, conclui Agamben torcendo um pouco a concepção de Foucault, reduz a vida à sobrevida biológica, produz sobreviventes. De Guantánamo à África, isso se confirma a cada dia.”

Gerir a vida, mais do que exigir a morte. Assim, se antes o poder consistia num mecanismo de subtração ou extorsão, seja da riqueza, do trabalho, do corpo, do sangue, culminando com o privilégio de suprimir a própria vida, o biopoder passa agora a funcionar na base da incitação, do reforço e da vigilância, visando à otimização das forças vitais que ele submete” “Claro que o nazismo consiste num cruzamento extremo entre a soberania e o biopoder, ao fazer viver (a <raça ariana>), e fazer morrer (as raças ditas <inferiores>), um em nome do outro.”

A sobrevida é a vida humana reduzida a seu mínimo biológico, à sua nudez última, à vida sem forma, ao mero fato da vida, ao que Agamben chama de vida nua.” “de certa maneira estamos todos nessa condição terminal. Até Bruno Bettelheim, sobrevivente de Dachau, quando descreve o comandante do campo, qualifica-o como uma espécie de <muçulmano>, <bem-alimentado e bem-vestido>.”

ele não se restringe aos regimes totalitários, e inclui plenamente a democracia ocidental, a sociedade de consumo, o hedonismo de massa, a medicalização da existência”

Agora cada um se submete voluntariamente a uma ascese, seguindo um preceito científico e estético, nas academias ou nos consultórios cirúrgicos” “corpo fascista – diante do modelo inalcançável, boa parcela da população é jogada numa condição de inferioridade sub-humana.”

faço parte do grupo dos hipertensos, dos soropositivos, etc…”, isto só vem fortalecer os riscos da eugenia.”

Na sua análise do 11 de setembro, Slavoj Zizek (Bem-vindo ao deserto do real) contestou o adjetivo de covardes imputado aos terroristas que perpetraram o atentado contra as torres gêmeas. Afinal, eles não tiveram medo da morte, contrariamente aos ocidentais, que não só prezam a vida, conforme se alega, mas querem preservá-la a todo custo, prolongá-la ao máximo.”

até os prazeres são controlados e artificializados: café sem cafeína, cerveja sem álcool, sexo sem sexo, guerra sem baixas, política sem política – a realidade virtualizada.”

Baudrillard (Power Inferno) parece ir numa direção similar, ao tentar pensar o 11 de setembro em função da suspensão de sentido que ele suscita.”

A assertividade da fé ali presente nos impede de entrever nesses atos qualquer traço de niilismo ativo, já que eles se realizam justamente sob o signo daqueles valores que a morte de Deus parecia ter inteiramente soterrado”

Dostoiévski jamais se livrou do fascínio por esses homens monstruosos, e talvez a fronteira decisiva não seja entre os bons e os maus, mas como o diz o artigo de Raskolnikov em Crime e Castigo, entre os ordinários e os extraordinários, entre os que se submetem em sua mediocridade às leis morais, e os homens que criam para si mesmos as leis, e para quem ‘tudo é permitido’, e cuja consciência sanciona até o crime – com o que os termos bem e mal deixam de ter importância.”

Raskolnikov se colocava já para além do bem e do mal, quando Nietzsche ainda era estudante e todavia sonhava com ideais sublimes, comenta Chestov. Eis uma concepção original de Dostoiévski, que nem Shakespeare possuía, em quem o crime e o mal ainda estão rodeados de remorso.” “Dostoiévski só conseguia descrever e só se interessava pelos espíritos revoltados, aventureiros, os inquietos experimentadores. Quando se punha a descrever os bondosos, caía numa banalidade decepcionante.”

o terrorismo atual não descende de uma história tradicional da anarquia, do niilismo” Baudrillard

O que detestamos em nós, lembra o autor, é aquilo que o Grande Inquisidor de Dostoiévski promete às massas domesticadas, o excesso de realidade, de conforto, de realização, o reino de Deus sobre a terra.”

Quando a vida é reduzida à vida besta em escala planetária, quando o niilismo se dá a ver de maneira tão gritante em nossa própria lassidão, nesse estado hipnótico consumista do Bloom ou do Homo Otarius ou da gorda saúde dominante, cabe perguntar o que poderia ainda sacudir-nos de tal estado de letargia, e se a catástrofe não estaria aí instalada cotidianamente (<o mais sinistro dos hóspedes>), ao invés de ser ela apenas a irrupção súbita de um ato espetacular através de um atentado contra a capital do Império.

À vida sem forma do homem comum, nas condições do niilismo, a revista Tiqqun deu o nome de Bloom. Inspirado no personagem de Joyce, Bloom seria um tipo humano recentemente aparecido no planeta, e que designa essas existências brancas, presenças indiferentes, sem espessura, o homem ordinário, anônimo, talvez agitado quando tem a ilusão de que com isso pode encobrir o tédio, a solidão, a separação, a incompletude, a contingência – o nada.” “o Bloom é já incapaz de alegria assim como de sofrimento, analfabeto das emoções de que recolhe ecos difratados.”

O corpo é aquele que não aguenta mais” Lapoujade

o que o corpo não agüenta mais é a mutilação biopolítica, a intervenção biotecnológica, a modulação estética, a digitalização bioinformática do corpo, o entorpecimento sensorial que esse contexto anestésico lhe inflige… Em suma, e num sentido muito amplo, o que o corpo não agüenta mais é a mortificação sobrevivencialista, seja no estado de exceção, seja na banalidade cotidiana. O muçulmano, o ciberzumbi, o corpo-espetáculo e a gorda saúde (conceito de Deleuze), bloom, por extremas que pareçam suas diferenças, ressoam no efeito anestésico e narcótico, configurando a impermeabilidade de um <corpo blindado> em condições de niilismo terminal.

A ironia da semântica de BLOOM… Mundo cheio de blooms outinais e de Marias-Molly…

Como o observa Barbara Stiegler, para Nietzsche todo sujeito vivo é primeiramente um sujeito afetado, um corpo que sofre de suas afecções, de seus encontros, da alteridade que o atinge, da multidão de estímulos e excitações que lhe cabe selecionar, evitar, escolher, acolher…”

Como então preservar a capacidade de ser afetado? Não seria preciso cultivar uma certa porosidade, até mesmo uma fragilidade, uma sensibilidade que nos devolvesse o poder de ser afetado? Mas como ter a força de estar à altura de sua fraqueza, ao invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força?”

Num âmbito mais geral, talvez por isso tantos personagens literários, de Bartleby ao artista da fome, precisem de sua imobilidade, esvaziamento, palidez, no limite do corpo morto, numa espécie de greve branca. (…) Como diz Deleuze, é preciso não mexer-se demais para não espantar os devires.”

Com o bebê só se tem relação afetiva, atlética, impessoal, vital, pois o pequeno é a sede irredutível das forças, a prova mais reveladora das forças. É como se Deleuze perscrutasse um aquém do corpo empírico e da vida individuada, como se ele buscasse, não só em Kafka, Lawrence, Artaud, Nietzsche, mas ao longo de toda sua própria obra, e também, poderíamos dizer, dos efeitos que ela produziu nos mais diversos campos, como se ele buscasse aquele limiar entre a vida e a morte, entre o homem e o animal, entre a loucura e a sanidade, onde nascer e perecer se repercutem mutuamente, pondo em xeque tantas divisões e dicotomias, legadas por nossa tradição.”

ESPINOZA VS. A BIOTECNOLOGIA

Toda a tematização do corpo-sem-órgãos é uma variação em torno desse tema biopolítico por excelência, a vida desfazendo-se do que a aprisiona, do organismo, dos órgãos, da inscrição dos poderes diversos sobre o corpo, ou mesmo de sua redução à vida nua, vida-morta, vida-múmia, vida-concha.”

Eu sou um genital inato, ao enxergar isso de perto isso quer dizer que eu nunca me realizei.

Há imbecis que se crêem seres, seres por inatismo.

Eu sou aquele que para ser deve chicotear seu inatismo” A.A.

E Uno [tradutor japonês de Artaud] comenta que um genital inato é alguém que tenta nascer por si mesmo, fazer um segundo nascimento, para além de sua natureza biológica dada.” “Trata-se de um corpo que tem a coragem de desafiar esse complexo sócio-político que Artaud chamou de juízo de Deus, e que nós chamaríamos de um biopoder, de um poder que se abate sobre nosso corpo…”

Pensemos em Beckett ouvindo Jung dizer, sobre uma paciente: O fato é que ela nunca nasceu. E ele transporta essa frase para o contexto de sua obra.”

NÃO QUIS TER NASCIDO, MAS AGORA NASCEREI: “Essa recusa do nascimento biológico não é a recusa proveniente de um ser que não quer viver, mas daquele que exige nascer de novo, sempre, o tempo todo.”

Rafael foi filho de quem foi e foi quem foi, isto já não interessa… Estou falando de outras coisas, mais fundamentais para mim agora!

vida nua: banalidade biológica

vida besta, exacerbação e disseminação entrópica da vida nua, no seu limite niilista.”

Se os que melhor diagnosticaram a vida bestificada, de Nietzsche e Artaud até os jovens experimentadores e pesquisadores de hoje, têm condições de retomar o corpo como afectibilidade, fluxo, vibração, intensidade, e até mesmo como um poder de começar, não será porque neles a vida besta atingiu um ponto intolerável? Não estamos nós todos nesse ponto de sufocamento, que justamente por isso nos impele numa outra direção? Talvez haja algo na extorsão da vida que deve vir a termo para que esta vida possa aparecer diferentemente… Algo deve ser esgotado, como o pressentiu Deleuze em L’épuisé, para que um outro jogo seja pensável.” Barris de petróleo, talvez…

Bin Laden seria, aos olhos de Chomsky, tudo menos um lunático niilista – seu objetivo consiste em derrubar os governos corruptos instalados e sustentados pelos <infiéis> nos territórios muçulmanos, para ali instituir uma versão extremista do Islã”

O poder dominante é aquele que consegue impor e assim legitimar, na verdade até legalizar…, em um palco nacional ou mundial, a terminologia e a interpretação que mais lhe convém em uma determinada situação. Foi assim no curso de uma longa e complicada história que os Estados Unidos conseguiram atingir um consenso intergovernamental na América do Sul, para oficialmente chamar de <terrorismo> qualquer resistência política organizada aos poderes estabelecidos.” Derrida, Filosofia em Tempo de Terror

O alargamento da noção de terrorismo nos leva às portas da visionária análise de Virilio sobre o Estado mundial absoluto, à caça do inimigo qualquer. É a idéia necrófila que Deleuze já vê inscrita no próprio Apocalipse.”

Obsessão niilística com a Nova Jerusalém: Cada vez que se programa uma cidade radiosa, sabemos perfeitamente que é uma maneira de destruir o mundo, de torná-lo “inabitável e de inaugurar a caça ao inimigo qualquer. (Deleuze, Crítica e Clínica)”

Não há combate que não se trave também contra nós mesmos, contra certos poderes que nos atravessam e nos constituem e dos quais nós resultamos e que nós mesmos sustentamos e aos quais aderimos, à nossa revelia. Ninguém pode imaginar-se habitando o lado certo, a margem independente, o lugar da Grande Recusa, pois ninguém pode considerar-se protegido do que nos constitui por fora e por dentro. Isso pode dar uma impressão claustrofóbica ou sem saída para aqueles que anseiam por dicotomias fáceis, inimigos visíveis, resoluções definitivas, o assalto final ao Palácio de Inverno. Mas o contexto contemporâneo que alguns chamam de Império é mais complexo e sutil, mais móvel e molecular. Contudo, apesar da inimaginável capacidade de expansão e de anexação e depauperação da vida que empreende, está mais próximo da descrição feita por Kafka a Janoush: Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado.”

[+] LEITURAS PÓS-INSENSÍVEIS

Juliano Pessanha, Certeza do Agora

Witold Gombrowicz, Contre les poètes

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