“Segundo assassino
Apunhalá-lo pelas costas, inconsciente?
Primeiro assassino
Jamais… Assim ele dirá que foi covardia, quando acordar.
Segundo assassino
Quando ele acordar! Imbecil, ele só irá acordar no dia do Juízo Final!
Primeiro assassino
Isso, e lá ele dirá que foi apunhalado enquanto dormia!
Segundo assassino
A aparição repentina desta palavra ‘juízo’ trouxe-me à tona uma espécie de remorso.
Primeiro assassino
Tu disseste a palavra juízo! Estás com medinho?
Segundo assassino
Não de matá-lo, tendo a licença;
mas de ser condenado por matá-lo, sentença que não tem salvo-conduto!
Primeiro assassino
Ah, e eu que pensava que estavas resoluto!
Segundo assassino
E estou! Em deixá-lo vivo!
Primeiro assassino
Volta então ao duque de Gloucester e conta-lhe tua resolução.
Segundo Assassino
Calma, não é pra tanto!… Meu humor é instável, foi coisa de momento.
Contarei até 20 e estarei pronto…
Primeiro assassino
E então?… Como te sentes?
Segundo assassino
Confesso que ainda sinto algum naco de culpa.
Primeiro assassino
Pensa na recompensa!… Depois de terminado.
Segundo assassino
Ah, claro! se o matamos, pegamos o dinheiro!
Primeiro assassino
Onde andas com a cabeça?… Deixaste ou não deixaste teus escrúpulos de lado?
Segundo assassino
No presente? Minha cabeça anda na carteira do duque de Gloucester!
Primeiro assassino
E te afianço: quando ele abrir a carteira para nos pagar o serviço, estaremos ambos no céu!
Segundo assassino
Obviamente! Deixa lá irem meus escrúpulos, nada há que lamentar afinal!
Primeiro assassino
E se vieres de novo com isso de remorso?…
Segundo assassino
Não medirei forças com algo tão forte; é perigoso: faz do valente covarde! um homem rouba, e sua consciência o acusa! jura, e ela lhe pesa! deita com a mulher do vizinho, e sua consciência o pega em flagrante delito! Ah, o espírito arrependido se contorce e debate condoído dentro do peito! Enche a vida do homem de obstáculos, pedras e espinhos: uma vez devolvi uma bolsa cheia d’ouro –que, achada, não era roubada!–… A consciência é um mendigo na vida do homem que rouba o que é achado, e não pára de importunar: ‘Devolve, devolve!’. A consciência expulsa o homem das cidades e dos mercados por ter flertado com o abominável! E todo homem desejoso de viver bem escolhe confiar em si, e abandonar sua consciência!…
Primeiro assassino
Agora que disseste… parece mesmo que aterra os meus ombros: a culpa de consciência quer me convencer a não matar o outro duque!
Segundo assassino
Confina o diabo na cabeça, não o libertes! se ele sai agora, vai querer contrariar-te e discutir contigo, e isso não leva a nada…
Primeiro assassino
Tsc, eu tenho nervos de aço, não sou como tu! O diabo não iria levar a melhor, isso eu te garanto!
Segundo assassino
Agora estás falando como um verdadeiro pau-mandado, já era hora!
E então, decidamos como vamos fazer!
Primeiro assassino
Assim: dá-lhe primeiro uma coronhada na cabeça com a bainha de tua espada.
Poderemos esquartejá-lo e escondê-lo à vontade na adega ao lado.
Segundo assassino
Ó, é um bom plano! faremos ensopado de príncipe herdeiro!
Primeiro assassino
Shhh!! Ele está acordando. Abatemo-lo agora?!
Segundo assassino
Deixa, deixa… Primeiro vamos ter uma conversinha…
CLARÊNCIO
Onde estás, carcereiro? Eu desejo uma taça de vinho!
Segundo assassino
Ah, bem a propósito, milorde! Terás quanto vinho quiseres, é pra já!
CLARÊNCIO
Valha-me Deus, tu não és meu carcereiro… Quem és tu?!
Segundo assassino
Um homem como tu.
CLARÊNCIO
Jamais. Eu sou um nobre.
Segundo assassino
Tens razão. Nosso sangue é vermelho, o teu não!
CLARÊNCIO
Mas tua voz é de trovão! Porém…, teu aspecto é humilde.
Segundo assassino
Minha voz é a voz de sua alteza; o rosto é o meu mesmo!
CLARÊNCIO
Como tu falas obscuro… e terrivelmente…, eu não gosto disso!
Por que este olhar de despeito em ti?
E por que estás pálido?
Quem to mandou? Donde vens, sujeito?!
AMBOS
Pra… pra… pra..
CLARÊNCIO
Matar-me?!
AMBOS
SIM!
CLARÊNCIO
Vós não tendes o brio necessário; mal podeis confessar a intenção, quanto mais levá-la ao ato!
Então, ó amigos, podeis-me dizer se vos ofendi no passado?
Primeiro assassino
Não a nós. Ao rei.
CLARÊNCIO
Não sejais por isso: eu farei as pazes com o rei meu irmão.
Segundo assassino
Nunca, milorde! Antes, deverás morrer!
CLARÊNCIO
Sois mesmo seres humanos? E vindes a esta cela matar um inocente? Essa é minha ofensa, ser humano? Discordar doutro homem?! Mas se sou odiado pelo rei, onde estão as provas que me incriminam e fundamentam esse ódio? Que julgamento vos conduziu a sentença tão absurda e cruel? Quem enviou carrascos tais? Onde está escrito ‘CLARÊNCIO DEVE MORRER’? Antes de que eu seja culpado em devido processo legal, ameaçar minha vida seria o crime mais detestável!
Conjuro-vos, pois, se é que sois cristãos,
Pelo sangue do Salvador,
Que nos livrou de todos os pecados,
Saí, não encosteis nem profaneis a minha carne,
Deixai minh’alma em paz porque qualquer coisa diferente disso é diabólico!
Primeiro assassino
O que faremos, faremos a mando.
Segundo assassino
E quem manda é sua majestade o rei!
CLARÊNCIO
Ah! Vassalos ignotos! O supremo rei dos reis inscreveu em suas tábuas ‘NÃO MATARÁS!’. Cuspireis no edito de Deus e obedecerão a um mortal?
Ainda não é tarde – aquele que cunhou as Leis eternas trará a Justa Vingança contra os transgressores!
Segundo assassino
A mesma vingança Ele lançará contra ti, por perjuro e por assassinato idem: recebeste a hóstia, não recebeste? Mas tu lutaste para derrubar a casa dos Lancaster.
Primeiro assassino
Sim! Herético, quebraste teus votos! Com tua lâmina traiçoeira tu te conspurcaste com o sangue do filho do então soberano por direito.
Segundo assassino
O mesmo que tu tinhas solenemente jurado honrar e defender!
Primeiro assassino
Como ousas proclamar a lei de Deus contra nós,
Quando foste tu qu’a quebraste em mais alto grau?
CLARÊNCIO
Ai de mim! Mas dizei, por que fi-lo? Por Eduardo, pelo meu irmão, sangue de meu sangue, que vive e é Rei da Inglaterra!
Vós vindes a mim para matar-me porque ajudei a alçar meu irmão ao trono? Nisto não creio! Pois se a Lei é de Deus, desse pecado sua majestade estaria tão manchada quanto eu! Se é que mereço castigo, o que não merece toda a côrte!
Eduardo busca então vingança? Vingança pelo quê?! Então ele torna de Estado uma tola desavença fraternal?! Não sejais instrumentos deste braço poderoso, porém cego e vil! Ou então, deixai de mentir para mim! O digno Rei da Inglaterra não carece de meios escusos para cortar a cabeça daqueles que o ofendam!
Primeiro assassino
Se é assim, quem te fez, então, juiz sobre a vida e a morte, quando o bravo e tão jovem e promissor Plantagenet mataste tu?
CLARÊNCIO
Quem mo fez? O amor por meu irmão, o demônio, minha ira!…
Primeiro assassino
O amor por teu irmão, nosso dever e teu pecado é que nos movem agora a executar-te!
CLARÊNCIO
Se amais deveras meu irmão, não me odieis por isso! Eu sou sangue de seu sangue, e amo meu querido irmão! Se fostes tentados pel’ouro, desisti! e procurai meu irmão caçula, duque de Gloucester, que por minha vida pagará ainda mais que Eduardo quer pagar-vos por minha morte!
Segundo assassino
Rá! Estás muito enganado. Teu irmão Gloucester odeia-te!
CLARÊNCIO
Quê?! Não! Ele ama-me! Sou muito prezado por ele; procurai-o e sabereis!
AMBOS
Hehehehe, claro, claro!!
CLARÊNCIO
Relatai-o como, quando nosso querido pai York abençoou seus três filhos com seu braço vitorioso, e nos incumbiu de amarmo-nos uns aos outros, a última coisa que ele poderia querer seria a dissensão de nossa sólida irmandade! Vede se Gloucester não refletirá num átimo sobre este juramento sagrado e não verterá torrente de lágrimas!
Primeiro assassino
Deliras! Teu irmão jamais verteu lágrima alguma. Nem por ti nem por ninguém.
CLARÊNCIO
Não o tripudieis! Ele é uma boa pessoa!
Primeiro assassino
Tanto quanto a nevasca é boa para a colheita, milorde! Tu te enganas demasiado… Escuta! Em verdade foi teu próprio irmão Gloucester quem nos mandou!
CLARÊNCIO
Não é verdade! Da última vez que nos vimos, ele me comprimiu em seus braços, e jurou, aos soluços, que faria o que fosse preciso para me tirar daqui!
Segundo assassino
Não te contradigo: ele te livrará daqui–e do mundo ao mesmo tempo… Ao paraíso celeste irás, por nosso intermédio!
Primeiro assassino
Reza tua última Ave-Maria, porque tu morrerás!
CLARÊNCIO
Tens a pachorra de encomendar assim minh’alma pr’outra vida, sendo que estás prestes a condenar tua própria alma aos infernos?
Considerai, amigos, novamente: aquele que vos mandou fazer este serviço um dia vos odiará mortalmente e sofrereis o que agora infligis!
Segundo assassino
Que faremos então?!
CLARÊNCIO
Arrependei-vos! Salvai vossas almas!
Primeiro assassino
Arrepender-nos? Covardia e desonra absoluta!
CLARÊNCIO
E não arrepender-vos agora seria bestial, selvagem, demoníaco! Qual de vós, sendo filho do rei, privado de sua liberdade, como estou agora, ao defrontar-se com dois assassinos, como sois vós, não imploraria pela própria vida?
Amigos, não ignoro, mesmo no estado em que estou, a piedade que escapa por vossos olhares! Se sois providos de alguma ínfima compaixão, enxergai como enxergo esta situação e tomai meu partido, senti minha aflição!! Um príncipe pedinte, que pedinte mesmo não enterneceria?!
Segundo assassino
Milorde, já é hora… Se não quiseres que teus olhos vejam o que irá acontecer, fecha-os, e é tudo…
Primeiro assassino
Toma esta…, e mais esta. E se não morreste… RÁÁ!
Apunhala-o mortalmente pela terceira vez.
…Vais dormir como Dionísio, embebido no vinho!
Sai, carregando o corpo.
Segundo assassino (falando sozinho)
Ah, negócio sangrento e terrível! Agoniante e desesperado fim! Mas já está feito! E como eu não lavaria minhas mãos deste crime horrendo e maldito, de muito bom grado, como Pilatos fez!
Volta o primeiro assassino.
Primeiro assassino
Como é?! Vais ficar aí parado, cúmplice palerma?
Ó, o duque gostará muito de saber dessa leniência!
Segundo assassino
Preferiria que ele soubesse por tua boca que eu salvei seu irmão, e não o contrário!
Queres saber?… Fica com todo o dinheiro só para ti, e passa o recado àquele que nos contratou para carrascos: Arrependo-me de ter participado deste complô para assassinar um duque da Inglaterra! Diga-lhe isto!
Sai.
Primeiro assassino
Eu não me arrependo! Vá, vá, covarde!
Agora… preciso ocultar este cadáver nalgum buraco por enquanto, até Gloucester pagar-me o serviço do enterro apropriado! E quando abocanhar o meu quinhão, fugirei. Logo, logo a côrte será o caos, e não o testemunharei!
FIM DO PRIMEIRO ATO DE RICARDO III DE SHAKESPEARE