DO MISTERIOSO AFORISMO TRAGICÔMICO PÓSTUMO DE NIETZSCHE: O MACACO DE SI MESMO

“Em torno do herói tudo se torna tragédia; em torno do semi-deus – tudo sátira”

Por muito tempo meditei sobre esse aforismo, que não tinha entendido quando li a primeira vez, em 2009. Podemos evocar a famosa frase de Marx para nos ajudar a explicar seu significado. Mas eu ainda diria mais:

a) nosso mundo não tem mais heróis, não tem mais o caráter heróico; tem, sim, a necessidade, antropológica mesmo, do homem superar o homem; antes que substituir o deus morto seja uma realidade, o grau máximo que pode ser descrito é uma figura, a do semi-deus. Ele é um Zaratustra que aprendeu a rir de si mesmo. Tragédias são coisa do passado. Não há lugar para Édipos na atualidade;

b) pode ser apenas um comentário psicológico, despido de qualquer historicidade, e por isso nem Marx pode ajudar: depende da seriedade do próprio personagem (leitor), e com que gravidade ele enxerga a própria biografia. Mas por que “semi-deus”? Num mundo em que deus está morto, ter sido herói, ser um sábio, já é estar semi-morto. Não vale muita coisa. Quem deixou de ser herói e com isso não se tornou um vilão (recorro a mais uma frase famosa, provavelmente apenas uma re-citação de autor antigo, mas que, ao contrário da sentença marxiana, é apenas uma falácia), não degenerou completamente… ainda tem o aspecto exterior de um bufão. E onde já se viu palhaço triste? Menos Pierrots, mais respeito ao nosso passado que nos trouxe aqui, mas nunca em excesso… Nunca se tornar prisioneiro dos nossos (bons) feitos… Nem temos saúde para bancar de novo os Dons Quixotes, ainda que isso fosse possível! Resta reconhecer que hoje somos diferentes, menos rijos, mas que não podemos e nem queremos apagar nosso passado, mais ou menos distante… Ele ainda mora em nós.

Exemplo pessoal: antes, que eu tivesse um pai tirano era questão de vida ou morte. Hoje, sobrevivente, independente, ainda psicologicamente afetado pela experiência, e com o tirano ainda vivo, tudo é muito cômico e risível. Como pode e pôde uma pedra tão enxuta num sapato tão largo (ou o sapato era firme e apertado, o que impedia o seixo de rolar e atrapalhar? Sim, bufões usam sapatões maiores que os próprios pés!) me causar tantos problemas num nível tão fundamental? Como pôde a mais inferior das criaturas se interpor entre mim e o sol? Mas nem era imperador – e daí que fosse? De todo jeito não lhe resta solução senão sair do caminho, nem que fosse para vir atrás de briga… E, com o tempo, toda(o) coroa… vira areia. Quanto mais tempo bloqueou minha luz solar montado em seus cavalos chamados Prepotência, mais queimou as costas (uma singela inversão de Dédalo, o pai sábio, e Ícaro, o filho imprudente). E pra quê, se tive meu banho caloroso do mesmo jeito? É verdade que ele, este pai, é o “macaco de Zaratustra”: gostaria de ser eu. Hoje é ele que me imita, sem saber o que ou como imita. Mas ele quer fazer o dono, o original, ficar bravo, perder a sombra (posto que à sombra não há sua sombra). E se a indignação for só uma máscara da gargalhada, e se o macaco é que está enfezado por dentro? Sim, sinto pânico, mas essa é a parte doentia da árvore genealógica, o orgânico que atingiu seu limite. Até ele, porém, é uma atuação, em último grau. É sempre material para ressurgir.

Toda podridão pode ser cinzas para uma fênix. E macaco não é fênix. O ruim de dar azo pra macaco é que é um bicho muito folgado, por isso, mesmo descontraídos, precisamos manter meia-distância. Quem é mais triste? O macaco ignorado ou o macaco perseguido (letalmente perseguido)? O esgar dos dois por debaixo da máscara deve ser o mesmo. Talvez o macaco seja, então, nosso espelho? Com ele é o inverso, ele viveu a paródia e agora tudo termina em tragédia? Macaco com capa. Macaco capado. Bucéfalo empacado diante de Diógenes.

O sentido final da hipótese b), portanto, é que devemos vencer nosso próprio macaco, o macaco de Zaratustra, etapa e desafio obrigatórios a fim de avançarmos enquanto projetos conscientes de sermos além-homens. E esse passo exige encarar o humor com seriedade e leveza, não amargura; e desafiar a tragédia que ameaça nos aniquilar como se ríssemos de uma boa piada.

Uma consideração sobre “DO MISTERIOSO AFORISMO TRAGICÔMICO PÓSTUMO DE NIETZSCHE: O MACACO DE SI MESMO”

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