ESCRITOS PRECOCES DE FREUD, INCLUINDO “O PROJETO”

RELATÓRIO SOBRE MEUS ESTUDOS EM PARIS E BERLIM (1886 [1960])

Notas introdutórias de Strachey

O relatório com que apropriadamente tem início a Standard Edition das Obras Psicológicas de Freud é um relato contemporâneo que seu protagonista faz de um evento histórico: o desvio dos interesses científicos de Freud da neurologia para a psicologia.”

Por iniciativa de Siegfried Bernfeld, esse relatório foi descoberto nos Arquivos da Universidade pelo Professor Josef Gicklhorn, o que possibilitou sua publicação – primeiramente em inglês – 70 anos depois de ter sido escrito, por gentileza de Eissler, Secretário dos Arquivos Sigmund Freud em Nova Iorque. O original, que se encontra nos Arquivos da Universidade de Viena, consiste em 12 folhas manuscritas, das quais a primeira contém apenas o título.”

Livro propriamente dito

O Salpêtrière, que foi o primeiro local que visitei, é um amplo conjunto de edifícios que, por seus prédios de 2 andares dispostos em quadriláteros, assim como por seus pátios e jardins, lembra muito o Hospital Geral de Viena. Com o passar do tempo, o Salpêtrière serviu a finalidades muito diferentes, e seu nome (assim como a nossa Gewehrfabrik) provém da primeira dessas finalidades. Os edifícios foram, afinal, convertidos em lar de mulheres idosas (Hospice pour la vieilesse (femmes), 1813) e proporcionam asilo a 5 mil pessoas. A natureza das circunstâncias fez com que as doenças nervosas crônicas viessem a figurar nesse material clínico com especial freqüência; e os antigos ‘médicins des hôpitaux’ da instituição (Briquet, por exemplo) tinham começado a fazer um estudo científico dos pacientes. Mas o trabalho não pôde prosseguir de modo sistemático por causa do costume existente entre os ‘médicins des hôpitaux’ franceses de mudarem freqüentemente de hospital e, ao mesmo tempo, trocarem o ramo especial da medicina que estão estudando, até que sua carreira os conduza ao grande hospital clínico do Hôtel-Dieu. Mas J.-M. Charcot, quando era ‘interne’ no Salpêtrière, em 1856, percebeu ser necessário fazer das doenças nervosas crônicas o tema de um estudo constante e exclusivo; resolveu retornar ao Salpêtrière como ‘médicin des hôpitaux’ e, depois, jamais abandonar esse hospital.”

No Salpêtrière, meu trabalho assumiu uma forma diferente daquela que eu, de início, tinha estabelecido para mim mesmo. Eu havia chegado com a intenção de fazer de uma única pergunta, objeto de uma cuidadosa investigação; e como, em Viena, o assunto eleito por mim eram os problemas anatômicos, tinha escolhido o estudo das atrofias e degenerações secundárias que se seguem às afecções do cérebro nas crianças. Um material patológico extremamente valioso estava à minha disposição; achei, todavia, que as condições para me utilizar dele eram muitíssimo desfavoráveis. O laboratório de modo algum oferecia condições para receber um pesquisador de fora, e esse espaço e esses recursos, tal como existiam, haviam-se tornado inacessíveis devido à falta de qualquer espécie de organização. Assim sendo, vi-me obrigado a desistir do trabalho com a anatomia e a me contentar com uma descoberta referente às relações dos núcleos da coluna posterior da medulla oblongata.”

Charcot costumava dizer que, falando de modo geral, o trabalho da anatomia estava encerrado e que a teoria das doenças orgânicas do sistema nervoso podia ser dada como completa: o que precisava ser abordado a seguir eram as neuroses. Sem dúvida, essa afirmação pode ser considerada como nada além da expressão do rumo tomado por suas próprias atividades.”

Até o presente, dificilmente se pode considerar a palavra histeria como um termo com significado bem-definido. O estado mórbido a que se aplica tal nome caracteriza-se cientificamente apenas por sinais negativos; tem sido estudado escassa e relutantemente; e carrega a ira de alguns preconceitos muito difundidos. Entre estes estão a suposição de que a doença histérica depende de irritação genital, o ponto de vista de que nenhuma sintomatologia definida pode ser atribuída à histeria simplesmente porque nela pode ocorrer qualquer combinação de sintomas e, finalmente, a exagerada importância dada à simulação no quadro clínico da histeria.”

A Idade Média estava familiarizada de modo preciso com os ‘estigmas’ da histeria, seus sinais somáticos, e os interpretava e utilizava à sua própria maneira. No departamento de ambulatório, em Berlim, contudo, verifiquei que esses sinais somáticos da histeria eram praticamente desconhecidos e que, em geral, quando se fazia um diagnóstico de ‘histeria’, parecia estar eliminada qualquer motivação para se obter mais algum informe a respeito do paciente.”

Estudando cientificamente o hipnotismo – área da neuropatologia que teve que ser arrancada, de um lado, do ceticismo e, de outro, do embuste –, Charcot chegou a uma espécie de teoria da sintomatologia histérica.”

Neste ponto, devo observar que a disposição de considerar as neuroses provenientes de trauma (‘railway spine’) como histeria encontrou decidida oposição por parte de autoridades alemãs, especialmente do Dr. Thomsen e do Dr. Oppenheim, médicos assistentes do Charité, de Berlim. Conheci pessoalmente a ambos, mais tarde, em Berlim, e esperava ter a oportunidade de verificar se sua oposição era justificada. Infelizmente, porém, os pacientes em questão já não se encontravam mais no Charité. Fiquei, todavia, com a impressão de que a questão não está madura para uma decisão, mas que Charcot acertadamente começara por abordar os casos típicos e mais simples, ao passo que seus adversários alemães partiram do estudo de exemplos indeterminados e mais complexos.”

PROPAGANDA É A ALMA DO NEGÓCIO: “Quando tomei conhecimento de que Charcot tencionava publicar uma nova coletânea de suas conferências, ofereci-me para fazer uma tradução alemã; graças a essa tarefa, entrei em contato pessoal mais próximo com o Professor Charcot e também pude prolongar minha estada em Paris além do período coberto por minha bolsa de estudos. Essa tradução está por ser publicada em Viena, em maio do corrente ano, pela editora de Toeplitz & Deuticke.”

As repetidas visitas ao Professor Munk e ao laboratório de agricultura do Professor Zuntz possibilitaram-me formar opinião própria acerca da controvérsia entre Goltz e Munk quanto à questão da localização do sentido da visão no córtex cerebral. O Dr. B. Baginsky, do laboratório de Munk, teve a gentileza de demonstrar para mim suas preparações do trajeto do nervo acústico e de solicitar minha opinião a respeito delas.”

PREFÁCIO À TRADUÇÃO DAS CONFERÊNCIAS SOBRE AS DOENÇAS DO SISTEMA NERVOSO, DE CHARCOT (1886)

Nota de Strachey

Três dessas conferências (XI, XII e XIII) tratam da afasia. Em um breve comentário, Freud mostra que já estava especialmente interessado no assunto, sobre o qual, 5 anos depois, escreveria sua monografia.”

EXTRATOS DOS DOCUMENTOS DIRIGIDOS A FLIESS (1892-1899 [1950])

Strachey

O mais importante destes esboços é o extenso documento – com umas 40 mil palavras [+100pp.] – a que demos o título de Projeto para uma Psicologia Científica.” “Seguimos o critério dos organizadores dos Anfänge, ao destacar o Projeto do restante da correspondência e editá-lo no fim do volume.”

Extratos

O PAPEL DESEMPENHADO PELAS EMPREGADAS [na gênese da histeria]

Uma imensa carga de culpa, com autocensuras (por furto, aborto etc.), torna-se possível para a mulher mediante identificação com essas pessoas de baixo padrão moral, que tão freqüentemente são lembradas por ela como sem valor, sexualmente ligadas com o pai ou o irmão dela.”

PROJETO PARA UMA PSICOLOGIA CIENTÍFICA (1895 [1950])

Strachey

O título alemão (Esboço de uma Psicologia) foi escolhido pelos compiladores dos Anfänge [como sempre refletindo o péssimo gosto de Kris & Anna]; o título inglês é escolha do tradutor. O original não tem título.”

O exame do manuscrito logo confirmou a existência de inúmeras divergências em relação à versão publicada. O tradutor se viu, assim, na situação diversa da que tinha enfrentado para verter a maior parte das obras de Freud, onde o leitor que alimenta dúvidas ou desconfianças a respeito da fidelidade da tradução pode quase sempre recorrer a um texto alemão confiável. Aqui, infelizmente, não existe tal texto publicado, só sendo possível obtê-lo mediante um fac-símile do manuscrito original. De modo que o tradutor arca inevitavelmente com uma responsabilidade especial e absoluta, pois o leitor fica inteiramente à mercê dele, e o tratamento do texto tem que se adaptar a essa situação. Seu critério deve obedecer a duas considerações: conseguir apresentar algo que seja inteligível, fluente e com um estilo inglês aceitável, além de reproduzir a intenção do autor da maneira mais exata possível. Esses dois objetivos muitas vezes entram em conflito, mas, no caso de uma obra tão difícil e importante como esta (e nas circunstâncias que acabamos de mencionar), a tradução precisa optar, mais do que nunca, pela fidelidade.

A letra de Freud, nesse caso específico, não é muito difícil de ser decifrada por quem já esteja familiarizado com os caracteres góticos, e não existem realmente muitos pontos discutíveis no texto propriamente dito. Pode-se, aliás, afirmar que Freud (tal como Ben Jonson disse de Shakespeare) ‘nunca riscou uma linha’, e as páginas de seus manuscritos se sucedem completamente livres de alterações: no Projeto, em cerca de 40 mil palavras do mais conciso raciocínio, existem ao todo apenas 20 e poucas correções.”

Freud não foi um escritor meticuloso; ocorre, assim, um determinado número de deslizes óbvios, corrigidos sem comentário em nossa versão, exceto quando o erro é discutível ou de especial importância. A pontuação não é sistemática (às vezes faltam vírgulas ou não se fecham alguns parênteses) e, seja como for, em geral não coincide com as normas inglesas. Isso também se aplica à mudança de parágrafos, que, além do mais, nem sempre é fácil de determinar.”

Em compensação, mantivemo-nos invariavelmente fiéis ao método extremamente pessoal e muito pouco inglês com que Freud sublinha toda palavra, oração ou frase a que atribui suma importância. Para outro de seus expedientes para imprimir ênfase – o de escrever uma palavra ou oração em caracteres latinos, em vez de caracteres góticos – julgamos desnecessário acrescentar uma nota de rodapé.”

Mas o maior problema causado pelo manuscrito de Freud é o uso de abreviaturas. São dos mais variados gêneros. Atingem o máximo nas primeiras 4 páginas e meia – o trecho escrito a lápis no trem. Não que esteja redigido com menos nitidez do que o resto; pelo contrário. Mas não só as palavras isoladas se acham abreviadas, como acontece com freqüência em todo o manuscrito, como também as próprias frases estão escritas em estilo telegráfico: faltam artigos definidos e indefinidos e há orações que omitem o verbo principal. Eis, por exemplo, a tradução literal da primeira frase da obra: ‘Intenção de fornecer psic. natural-científica, i.e., representar processos psic. como quant. determinar estados de partículas matérias especificáveis, para assim tornar compreensível e livre de contradições.’

É nesse sentido que divergimos fundamentalmente dos organizadores dos Anfänge, que fazem todas as suas modificações sem o menor tipo de advertência.” “a necessidade de corrigir os inúmeros erros cometidos na versão publicada em alemão nos acarretou um excesso de notas de rodapé. Sem dúvida, muitos leitores ficarão irritados com isso, mas desse modo os que possuem [a] edição alemã poderão compará-la de perto com o manuscrito original.” “o Projeto, apesar de ser manifestamente um documento neurológico, contém em si o núcleo de grande parte das teorias psicológicas que Freud desenvolveria mais tarde.”

O auxílio que o Projeto dá à compreensão do sétimo capítulo teórico de A Interpretação dos Sonhos está comentado com certa minúcia na Introdução do Editor Inglês àquela obra. Mas, na realidade, o Projeto, ou melhor, seu espírito invisível, paira sobre toda a série de obras técnicas de Freud até o fim.” “Aqui a ênfase está colocada exclusivamente no impacto do meio sobre o organismo e na reação do organismo ao meio.” “As ‘pulsões’ são apenas entidades indefinidas, que mal recebem um nome.”

Já se assinalou muitas vezes que é no Projeto que se encontra uma antecipação do eu estrutural que surge em O Eu e o Isso.”

pode-se, em primeiro lugar, notar a insistência de Freud na necessidade primordial de prover a máquina de uma ‘memória’; por outro lado, há o seu sistema de ‘barreiras de contato’, que permite à máquina fazer uma ‘escolha’ adequada, com base na lembrança de acontecimentos anteriores, entre as linhas alternativas de reação ao estímulo externo; e, mais uma vez, há, na descrição feita por Freud do mecanismo de percepção, a introdução da noção fundamental de realimentação (feedback) como modo de corrigir erros no próprio relacionamento da máquina com o meio. Essas e outras semelhanças, caso confirmadas, constituíram (sic) sem dúvida novas provas da originalidade e fertilidade das idéias de Freud e, talvez, uma sedutora possibilidade de ver nele um precursor do behaviorismo de nossos dias.”

O Projeto – PARTE I

princípio de inércia neuronal” “o princípio da inércia explica a dicotomia estrutural (dos neurônios) em motores e sensoriais”

CLARA INSPIRAÇÃO REICHIANA: “Se retrocedermos ainda mais, poderemos, em primeira instância, vincular o sistema nervoso, como herdeiro da irritabilidade geral do protoplasma, com a superfície externa irritável (de um organismo), que é interrompida por extensões consideráveis de superfície não-irritável.” Movimentos orgásmicos unicelulares.

À proporção que (aumenta) a complexidade interior (do organismo), o sistema nervoso recebe estímulos do próprio elemento somático – os estímulos endógenos – que também têm que ser descarregados. Esses estímulos se originam nas células do corpo e criam as grandes necessidades como respiração, sexualidade. Deles, ao contrário do que faz com os estímulos externos, o organismo não pode esquivar-se; não pode empregar a quantidade deles para a fuga do estímulo. Eles cessam apenas mediante certas condições, que devem ser realizadas no mundo externo. (Cf., por exemplo, a necessidade de nutrição.)”

A essência dessas novas descobertas é que o sistema nervoso se compõe de neurônios distintos e construídos de forma similar, que estão em contato recíproco por meio de uma substância estranha, que terminam uns sobre os outros como fazem sobre porções de tecido estranho”

NUNCA LEU HERÁCLITO: “Uma teoria psicológica digna de consideração precisa fornecer uma explicação para a ‘memória’. Ora, qualquer explicação dessa espécie se depara com a dificuldade de admitir, por um lado, que, depois de cessar a excitação, os neurônios fiquem permanentemente modificados em relação a seu estado anterior, ao passo que, por outro lado, não se pode negar que as novas excitações, em geral, encontrem as mesmas condições de recepção que encontraram as excitações precedentes. Desse modo, parece que os neurônios teriam que ser ao mesmo tempo, indiferenciadamente, influenciados e inalterados.”

ficar cheio de Q (catexia [energia, nesse contexto – veremos ao longo do texto que este termo é mal-definido, porque em cada frase pode significar algo diferente, por isso essa nomenclatura deveria ser ANIQUILADA])” Para o darwinista F., quanto maior a cabeça, menor a dor de cabeça. Simples assim. Quanto mais neurônios, mais capacidade de reter impressões e traumas, etc. Uma simples abordagem de tamanho de HD. Não à toa os imbecis da área de tecnologia superestimam esse tipo de trabalho ‘pioneiro’.

…embora fosse possível seguir uma linha de pensamento darwiniano e apelar para o fato de que os neurônios impermeáveis são imprescindíveis e, por conseguinte, têm que subsistir.”

Para ser um gênio é necessário abdicar da concentração de conhecimentos: regalar os neurônios da periferia com a mesma riqueza dos centros!

TAMPOUCO LEU CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS: “O sistema nervoso tem a mais decidida propensão a fugir da dor.”

Uma personalidade tremida, que não treme na base. (Sobre nós os sensitivos)

Até aqui nada se disse sobre o fato de que toda teoria psicológica, independentemente do que se realiza do ponto de vista da ciência natural, precisa satisfazer mais um requisito fundamental. Ela tem de nos explicar tudo o que já conhecemos, da maneira mais enigmática, através de nossa ‘consciência’; e, uma vez que essa consciência nada sabe do que até agora vimos pressupondo – quantidades e neurônios –, também terá de nos explicar essa falta de conhecimento.”

Sempre no umbral de fundar uma psicologia, mas até aí, ele não se destaca mais do que uma boa dúzia de dúzia de homens deste campo e desta época, ou bem anteriores até.

PELO MENOS LEU CRÍTICA DA RAZÃO PURA: “Onde se originam as qualidades? Não no mundo externo. Pois lá, segundo o parecer da nossa ciência natural, à qual também devemos submeter a psicologia aqui, só existem massas em movimento e nada mais.”

É sempre possível hipostasiar uma solução: “reunimos ânimo suficiente para presumir que haja um terceiro sistema de neurônios

Só mediante essas hipóteses tão complicadas e pouco óbvias é que pude até agora introduzir os fenômenos da consciência na estrutura da psicologia quantitativa. Naturalmente, não se pode tentar explicar como é que os processos excitatórios dos neurônios levam à consciência. É apenas uma questão de estabelecer uma coincidência entre as características da consciência que conhecemos e os processos nos neurônios (…) que variam paralelamente a elas.”

Segundo uma avançada teoria mecanicista,¹ a consciência é um mero apêndice aos processos fisiológico-psíquicos e sua omissão não acarretaria alteração na passagem psíquica [dos acontecimentos].”

¹ Essa nunca foi uma teoria ‘avançada’.

Já ouviu aquela expressão? Botânico vê planta em todo lugar…

…Isso lembra muito as condições impostas pela lei de Fechner, que poderiam ser localizadas.”

É muito digno de nota o fato de que a condução dos neurônios y consiga manter uma posição entre as características da permeabilidade e da impermeabilidade, de vez que recuperam sua resistência quase por completo, apesar da passagem de Q. Isso contradiz totalmente a propriedade que atribuímos aos neurônios y, de ficarem permanentemente facilitados pela passagem de uma corrente de Q. Como explicar essa contradição? Admitindo que a restauração da resistência, depois da passagem de uma corrente, é uma característica geral das barreiras de contato.” “Durante a passagem da Q, a resistência fica suspensa; depois ela se restabelece, mas em vários níveis, em proporção à Q que passou por ela, de maneira que, na vez seguinte, uma Q menor já conseguirá passar, e assim por diante. Quando se estabelece a facilitação mais completa, ainda resta uma certa resistência, que é igual para todas as barreiras de contato e que também requer o aumento das Qs até um determinado limiar antes de permitir sua passagem. Essa resistência seria uma constante. Por conseguinte, o fato de que as Qs endógenas atuam por soma apenas significa que essas Qs são constituídas de parcelas de excitação mínimas, menores que a constante. A via endógena de condução está, portanto, e apesar disso, completamente facilitada.” “No momento em que a via de condução é reajustada, nenhum limite adicional é fixado para essa soma. Aqui, y está à mercê de Q, e é assim que surge no interior do sistema o impulso que sustenta toda a atividade psíquica. Conhecemos essa força como vontade – o derivado das pulsões.” Sistema de vontade infinitesimal, quanta ironia! Pois se há algo de imensurável nesse mundo, tão grande quanto ‘grande’ pode ser, algo inefável que tentamos alcançar ou simbolizar… Esse algo atende pela palavra VONTADE!

O maior erro freudiano nesta tópica: no seu sistema nervoso, a dor tem valor (+); o prazer, valor (-). O que isso quer dizer? Que na hierarquia a dor ocupa o primeiro lugar. Esta é uma química arbitrária que não pode funcionar como a dos elétrons e prótons, infelizmente. O prazer como sub-espécie de dor. O nada como fim do sistema. Uma mentira. Como não entendeu este ponto aquele que estudou sobre a sexualidade infantil é um verdadeiro enigma (o cume da auto-cegueira): dado que o adulto se caracteriza pela maior vivência de desprazer (mas também prazer!), sendo qualitativamente mais completo, superior, como é que seu pseudo-sistema filosófico foi ser rematado duas décadas depois com uma força chamada Tânatos como cabeça de um débil corpúsculo chamado Eros?! Quanto mais dor, mais realização vital, deveria ser concluído segundo as próprias premissas freudianas do Projeto! Evitar a dor não constitui um desejo razoável de nenhuma criatura viva. F. entendeu o neurótico como aquele que sofria dor demais, quando devia ter entendido aquele que evitou sofrer mais dor (o enrijecido)! O que também me causa espanto é o fato de Wilhelm Reich não ter se dado conta de que todas as ‘premissas culturais’ a-sociais do tardo-Freud estavam perfeitamente esboçadas aqui, não o contrário – que homem cheio de vitalidade era esse que ele diz ter conhecido até 1920 (e, no plano teórico, até 1905)?!

SOBRE SISTEMAS TRIPARTIDOS: No princípio era o Jokenpo…

Não fica difícil especular, nesse ponto da leitura, que seu sistema foi revelado assimétrico mais tarde, e F. teve de recorrer a um oposto simétrico de sua catexia, i.e., a sublimação.

Quando a imagem mnêmica do objeto (hostil) é renovadamente catexizada por qualquer razão – por nova percepção, digamos –, surge um estado que não é o da dor, mas que, apesar disso, tem certa semelhança com ela. Esse estado inclui o desprazer e a tendência à descarga que corresponde à experiência da dor. Como o desprazer significa aumento de nível, deve-se perguntar qual a origem dessa Q.” Interessante: podíamos até mesmo cravar existir uma LEI DA COMPULSÃO À NÃO-REPETIÇÃO: preferimos sofrer dores diferentes do que reprisar sempre as mesmas dores. Esta “inocente” premissa adquire ares de importância dentro da refutação do sistema freudiano, não obstante, quando nos lembramos que o recalcamento nada mais é do que uma suposta forma de não-repetição do evento – eis que a psicanálise procura o tratamento dessa condição na recuperação da lembrança reprimida e na revivescência do trauma – o que é absurdo, segundo o Projeto. Aqui pegamos F. no pulo. Ruminar sobre traumas não nos induz a qualquer cura ou auto-superação. Busque traumas novos ou apodreça revivendo o mesmo dia eternamente… Além disso, ao avesso, um prazer inédito, quando revivido, gera cada vez menos prazer. Um masturbador compulsivo mórbido nos é repelente através da mesma noção: é inconcebível que ainda como fonte de um prazer simples e fugaz alguém repita o ato consecutivas vezes no mesmo dia. O mesmo com qualquer conquista biográfica…

Só nos resta, pois, pressupor que, devido à catexia [repressão-descarga] das lembranças, o desprazer é liberado do interior do corpo e de novo transmitido. O mecanismo dessa liberação só pode ser retratado da seguinte maneira. Assim como existem neurônios motores que, quando cheios até certo ponto, conduzem Q aos músculos, descarregando-a, devem também existir neurônios ‘secretores’ que, quando excitados, provocam no interior do corpo o surgimento de algo que atua como estímulo sobre as vias endógenas de condução de y. A esses neurônios [secretores] chamaremos de neurônios-chave.” Todo e qualquer aprofundamento da tese no Projeto implica um novo tipo de neurônio tirado do ânus de F. Desse ponto de vista, o eu nada mais é do que um neurônio gigante.

Logo, se o ego existe, ele deve inibir os processos psíquicos primários.”

É sério que isso é um projeto para uma psicologia científica? FÓRMULA: “Se (hipótese), logo (conclusão condicional).”

A catexia [neste contexto, repressão] de desejo, levada ao ponto de alucinação, e a completa produção do desprazer, que envolve o dispêndio total da defesa, são por nós designadas como processos psíquicos primários; em contrapartida, os processos que só se tornam possíveis mediante uma boa catexia do eu, e que representam versões atenuadas dos referidos processos primários, são descritos como processos psíquicos secundários.”

nenhuma experiência sexual produz qualquer efeito enquanto o sujeito ignora toda e qualquer sensação sexual – quer dizer, em geral, antes do início da puberdade.”

Não é certo que, nos adultos, o eu fique completamente livre de sua carga durante o sono. De qualquer forma, ele retira um enorme número de catexias, que, no entanto, ao despertar, são restabelecidas imediatamente e sem esforço.”

A consciência das idéias oníricas é, acima de tudo, descontínua. O que se torna consciente não é uma sucessão integral de associações, mas apenas alguns de seus pontos de parada isolados, entre os quais existem vínculos intermediários inconscientes que podemos facilmente descobrir quando estamos acordados.”

(*) “o próprio Freud atribuiu a descoberta do conceito de regressão a Albertus Magnus, filósofo escolástico do século XIII, e ao Leviathan de Hobbes (1651).” Onde neste último???

(*) “A palavra alemã Regression apareceu pela primeira vez, ao que nos conste (num contexto semelhante), cerca de 18 meses mais tarde, num rascunho enviado a Fliess no dia 2 de maio de 1897 (Rascunho L). Mas sua primeira publicação foi em A Interpretação dos Sonhos.

(*) “A regressão topográfica é a que Breuer introduziu; foi empregada no Projeto e forma o tema principal do Capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos.”

PARTE II

a “proton pseudos (primeira mentira histérica)” é tão real quanto Adão.

PARTE III

Assim, vemo-nos inesperadamente diante do mais obscuro problema: a origem do eu – ou seja, de um complexo de neurônios que se mantêm presos a suas catexias, um complexo, por conseguinte, que permanece por breves períodos em nível constante.”

O eu primeiro aprende que não deve catexizar as imagens motoras, de modo que resulte a descarga, enquanto não se cumprirem determinadas condições advindas da percepção.”

O desprazer permanece como o único meio de educação. Confesso, porém, que não sei explicar como a defesa primária, a não-catexização devido a uma ameaça de desprazer, pode ser representada mecanicamente.”

Por catexia intencional deve-se entender aqui não uma catexia uniforme, como a que afeta todo um setor no caso da atenção, mas uma catexia que se destaque, que sobressaia ao nível do eu.”

Que acontece, então, com as lembranças capazes de afeto até serem dominadas? Não se pode supor que o tempo, a repetição enfraqueçam sua capacidade de afeto, já que, normalmente, esse fator (a repetição) até contribui para intensificar a associação.” Vago e dúbio.

O fato de que a lembrança exibe característica alucinatória durante tanto tempo também requer explicação, que é importante para nosso conceito da alucinação. Aqui é plausível supor que essa capacidade para a alucinação, além da capacidade para o afeto, sejam indicações de que a catexia do eu ainda não exerceu nenhuma influência sobre a lembrança e de que nesta predominam as linhas primárias de descarga e o processo total ou primário.”

as facilitações estão sujeitas a uma decadência gradativa (esquecimento)” Autocontraditório; e o inconsciente não estaria ‘fora do tempo’?

pensamento intencional” “pensamento teórico”

Pelo menos cite Kant, ô, rapazola! “O início dos processos de pensamento derivados (do pensamento prático) é a formação de juízos.”

A atividade de pensamento realizada com juízos, e não com complexos perceptuais desordenados, significa uma economia considerável.”

o pensamento cognitivo, que, indubitavelmente, aparece como uma preparação para o pensamento prático, embora na realidade só se tenha desenvolvido tardiamente deste último.” Hipótese obscura.

JÁ CRIOU SUBTIPOS DEMAIS, CHEGA! “Ainda temos de considerar outro tipo de pensamento: o crítico ou examinador. Essa forma de pensamento é motivada quando, apesar de ter obedecido a todas as regras, o processo de expectativa, seguido pela ação específica, não causa satisfação, e sim desprazer.”

APÊNDICE B: TRECHO DA CARTA 39, ESCRITA POR FREUD A FLIESS EM 1º DE JANEIRO DE 1896

Os neurônios w [percepção] são os neurônios y que só têm capacidade muito reduzida de catexia quantitativa.” É uma tentativa grosseira de dizer que existem neurônios-dedicados-à-consciência e neurônios-dedicados-ao-inconsciente.

Os processos y seriam inconscientes em si [que ‘si’? Noumeno?] e só subseqüentemente adquiririam uma consciência secundária, artificial, ao se vincularem aos processos de descarga e de percepção (associação da fala).” “Agora fica muito mais fácil compreender a regra da defesa, que não se aplica às percepções [w], mas apenas aos processos y. O fato de a consciência secundária ficar para trás possibilita uma descrição simples dos processos neuróticos. (…) O conflito entre a condução orgânica puramente quantitativa e os processos excitados em y pela sensação consciente me permite explicar também a liberação de desprazer, da qual necessito para o recalcamento nas neuroses sexuais.” Obcecado por desvendar a histeria, que não era sólida mas, igualmente, desmanchou no ar no séc. XX. Ele não via a natureza, via o que lhe interessava.

Essa nova hipótese também se ajusta melhor ao fato de que os estímulos sensoriais objetivos são tão ínfimos que, de acordo com o princípio da constância, é difícil derivar dessa fonte a força de vontade.”

Isso nos ofereceria a tão almejada distinção entre os movimentos ‘voluntários e espásticos’, e ao mesmo tempo permitiria explicar todo um grupo de efeitos somáticos secundários – na histeria, por exemplo.” Vê-se por que Reich era tão entusiasmado por esse material.

Diz que a dor força seu caminho ao inconsciente. Sem nexo.

antes dos ataques de enxaqueca não se tem nenhuma sensação olfativa subjetiva. Por conseguinte, o nariz receberia, por assim dizer, informações sobre os estímulos olfativos internos por intermédio dos corpora cavernosa, tal como recebe os estímulos externos através da membrana de Schneider: seríamos vítimas do próprio corpo. Essas duas formas de se produzir a enxaqueca – espontaneamente ou por odores e emanações tóxicas humanas, seriam portanto equivalentes, e seus respectivos efeitos poderiam ser provocados a qualquer momento por soma.”

Reflexologia nasal, agora que paro para pensar, seria como atribuir ao nariz (não externamente, lógico) atributos como o arregalar ou fechar dos olhos ou ampliação-redução da retina, etc.

APÊNDICE C: A NATUREZA DA Q

(*) “É bem verdade que, cerca de um ano e meio antes da redação do Projeto, em seu primeiro artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1894a), ele já tinha feito uma vaga comparação entre algo que seria precursor da Q e ‘uma carga elétrica espalhada pela superfície de um corpo’.

É forçoso reconhecer que existem certas partes obscuras na descrição fornecida no Projeto para a natureza do estado ‘ligado’ e seu mecanismo. Uma das mais intrigantes diz respeito ao processo de ‘juízo’ e ao papel nele desempenhado por uma catexia procedente do eu. Essa influência está descrita das maneiras mais variadas – como ‘catexia colateral’, ou ‘pré-catexia’, ou ‘hipercatexia’ – e se encontra intrinsecamente implicada na idéia de uma catexia da atenção.”

(*) “Efetivamente, todo o problema da relação da atenção com a Q requer um exame meticuloso. (…) A atenção é mencionada discretamente na Seção 14 da Parte I, mas logo começa a mostrar sua importância (na Seção 19 da Parte I e na Seção 6 da Parte II), até se tornar, na Parte III, um elemento quase predominante. Apesar disso, nos escritos posteriores de Freud, a atenção, depois de ser citada esporadicamente, é quase relegada ao esquecimento.” Faltou atenção ao mestre…

(*) “Essas incertezas subseqüentes a respeito das pulsões (entidades que, tal como a Q, se encontram ‘na fronteira entre o mental e o físico’) e de sua classificação nos lembram que Freud sempre se mostrou muito coerente ao salientar nossa ignorância quanto à natureza básica da Q ou de seja lá qual for o nome que se lhe dê.” Nesse ‘nossa’, ele parecia não se incluir!

A indefinição de todas as nossas discussões sobre o que descrevemos como metapsicologia se deve, naturalmente, ao fato de nada sabermos da natureza do processo excitatório que ocorre nos elementos dos sistemas psíquicos, e a não nos sentirmos autorizados a formular qualquer hipótese sobre o assunto. Estamos, conseqüentemente, trabalhando o tempo todo com um grande fator desconhecido, que somos obrigados a transportar para cada fórmula nova.” Além do Princípio do Prazer – Mas, não obstante todo esse ceticismo teórico (honesto), o engraçado é que a ‘clínica psicanalítica’ era perfeita!!