Originalmente publicado em 10 de dezembro de 2008
[Com múltiplas alterações]
GLOSSÁRIO INTRODUTÓRIO
ANABATISTAS
Ana – outra vez; i.e., de novo um batista (protestante). Vertente radical, atiçava camponeses a se revoltarem e pregava um retorno ao cristianismo primitivo, considerado por outras ordens cristãs como pagão. O “ana” foi acrescido pejorativamente pelos rivais, uma vez que esta seita extrema se caracteriza por permitir o batismo de – e só de – adultos. Como um adulto é geralmente um bebê que um dia fôra batizado por um padre católico, tem-se um re-batismo.
ANGLICANOS
Hibridismo entre a Igreja Católica e o protestantismo (os pastores têm autoridade sobre o rebanho, como o padre). Criticados pelos demais protestantes graças à suntuosidade cerimonial recorrente.
ARIANOS
De Arius (séc. III d.C.), que era contra o dogma da Santíssima Trindade. Jesus não era Filho de Deus, mas um homem mortal que não ressuscitou. Testa-de-ferro do antissemitismo (utilizada por outras seitas que não queriam essa mancha). Curiosamente, um judeu diria o mesmo sobre o Espírito Santo, Maria e Jesus… A diferença está somente em que cada qual pensa que é o povo eleito. Mas não percamos tempo tentando adivinhar ou interpretar o porquê de tantas sutilezas absurdas… O cristianismo não é coerente, como nenhuma religião apresenta elevada coerência interna fundamental.
BATISTAS
Bastante descentralizados em suas paróquias. Seguem o texto da Confissão de Westminster (1647). Alcunhas: “os independentes”, “congregacionalistas”.
CALVINISMO
Predeterminação do destino da alma. Calvino condena a grande maioria ao inferno de antemão.
CONFISSÃO DE AUGSBURGO
Rompimento formal com o papado.
CONFISSÃO DE WESTMINSTER
Melhor síntese da fé calvinista.
LUTERANOS
Pouco tratados em Weber. Um traço essencial que os distingue dos calvinistas: são mais ecumênicos e hierárquicos, estando mais próximos do catolicismo. Após o séc. XVI os luteranos recusaram em geral o epíteto de “reformadores” ou de “religião reformada”.
METODISTAS
Luteranos dissidentes dos luteranos ortodoxos. Americanos.
O PROBLEMA DA TEODICÉIA OU DIREITO DIVINO
A tentativa de explicar a injustiça do mundo, que emana de um Deus Bom e Todo-poderoso. Cerne da contradição lógica das religiões monoteístas. Recorre-se à retração da onipotência de Deus para que o livre-arbítrio torne-se possível, o que gera outros problemas derivados.
PIETISTAS
Surgidos do luteranismo, um século depois. Maior ênfase na interpretação da Bíblia, para a qual tendem a chegar a conclusões (não deixar versículos com significação ambígua em aberto). Ultra-moralistas.
PRESBITERIANOS
Ingleses que, diferentemente dos anglicanos, não são organizados em hierarquia.
PURITANOS
Não admitem qualquer igreja. De certo modo os calvinistas são um subconjunto dos puritanos. Outros puritanos – como os quakers – são ainda mais extremistas neste critério. Ultra-moralistas idem. Sobre a relação controversa entre puritanismo e calvinismo: “Para Weber, o puritanismo é cria do calvinismo, [embora] nem sempre [de forma] direta”. Weber, por praticidade, pode se referir ao conjunto dos protestantes, quando não com esta palavra, por “puritanos”, englobando todos os cismáticos (luteranos, calvinistas e todas as seitas aqui enumeradas).
QUAKERS
Protestantes radicais. São contra a igreja física e a instituição do batismo. Advogam que a consciência é a única ferramenta do fiel em sua dúvida quanto à salvação. Reúnem características pragmáticas que os filiam ao que há de mais capitalista e ocidental. Fortemente individualistas; presença na política ianque (origens do Partido Republicano).
RABINISMO
Judaísmo tardio.
SEPTUAGINTA
Uma seleção limitada dos livros do Antigo Testamento considerados canônicos, traduzidos por 70 sacerdotes do hebraico para o grego, em Alexandria.
* * *
Lutero é produto do misticismo panteísta alemão de circa 1300. Exalta a natureza, enxerga a obra de Deus em todos os detalhes. Beira a heresia. Aqui vê-se por que Lutero foi preterido na obra: a unio mystica é o contraponto da ascese espiritual. O homem religioso europeu pós-Reforma é um vitral em pedaços.
PARTE I – O PROBLEMA
1. CONFISSÃO RELIGIOSA E ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL
O “Espírito” do título é o mundo desencantado, sem Deus, e por isso sem indivíduo também.
Pode-se dizer que Lutero foi o assassino de Deus, ao torná-lo transparente mediante a tradução das Escrituras ao alemão vulgar. A transcendência se tornou universal, o portão para o Paraíso muito largo. Lutero quase suprimiu a dialética do senhor e do escravo, convulsionando a Europa. Perto de Lutero, Calvino não só é menos revolucionário como aristocrático e elitista.
Os judeus são ricos porque são párias onde vão, o que fá-los voltar-se com muito privilégio para o sustento material.
Weber não dá crédito à tese dos “países mais ricos” estarem ligados ao Protestantismo. Caso contrário, a França seria mais pobre que países como a Polônia. Na Polônia a elite financeira era de reformados. Os huguenotes franceses também eram protestantes.
2. O “ESPÍRITO” DO CAPITALISMO
A Filosofia da avareza do “quaker” Benjamin Franklin: cada 50 centavos gastos num café deixariam de ser 100 libras no futuro. Comprar um café é o mesmo que atirar vultuosas notas ao mar.
O Norte americano não tinha intuitos comerciais, apenas pregadores: logo se tornou “próspero. O Sul, de finalidade mercantil, estagnou.
Jesuítas: protestantes disfarçados no campo católico.
3. O CONCEITO DE VOCAÇÃO EM LUTERO. O OBJETO DA PESQUISA
“Se alguém foi chamado já circunciso, não dissimule sua falta de prepúcio. Foi alguém chamado com prepúcio? Não se faça circuncidar.”
CONFISSÃO DIARISTA: Dia 17 de outubro, na biblioteca, compreendi eu ser o centro, não sendo-o. Essa dissimulação eterna entre unidade e caos. Me veio à tona um passado que eu não pude escolher que me tornou o que eu quis. Consonância cósmica. Há metafísica e não há.
Pascal, esse Janos da religião e da ética.
PARTE II – A ÉTICA PROFISSIONAL DO PROTESTANTISMO ASCÉTICO
1. OS FUNDAMENTOS RELIGIOSOS DA ASCESE IMANENTE
“o virtuose religioso pode certificar-se do seu estado de graça, quer se sentindo como receptáculo, quer como ferramenta da potência divina. No primeiro caso, sua vida religiosa tende para a cultura mística do sentimento; no segundo, para a ação ascética. Do primeiro tipo estava mais perto Lutero; o calvinismo pertencia ao segundo.”
O fim de semana é uma religião dos magos!
“os adeptos de Nietzsche reivindicam para a idéia de eterno retorno uma significação ética positiva. Só que se trata aqui da responsabilidade por uma vida futura com a qual o sujeito da ação não guarda nenhuma relação de continuidade de consciência [?!], enquanto para o puritano o futuro queria dizer: tua res agitur (Problema seu!).”
Se a certitudo salutis podia aparecer antes, então ou neste momento o indivíduo se desligava da ascese; ou se tornava um ultra-calvinista, porque sua certeza de salvação fazia de si um santo em vida.
grosso modo, grau ascendente de “puritanismo” pós-Reforma:
LUTERANISTA PIETISTA (menos o alemão) METODISTA¹ CALVINISTA² (descreve idealmente a ética ascética weberiana)
¹ Os metodistas eram mais pragmáticos que os pietistas e bastante mais conscientes de sua mudança de Weltanschauung da predestinação do que os luteranos, mas além de menos ascéticos que os calvinistas só surgiram temporalmente depois como seita organizada e descritível.
² Incluindo batistas, anabatistas, quakers e menonitas.
Quase todas as seitas resultam de cismas protestantes; a grande exceção são os batistas, que formaram voluntariamente um grupo à parte. Anabatistas são radicais “ermitãos trabalhadores”.
“A ascese cristã, que de início fugira do mundo para se retirar na solidão, a partir do claustro havia dominado eclesiasticamente o mundo, enquanto a ele renunciava. Ao fazer isso, no entanto, deixou de modo geral intacta a vida cotidiana no mundo com seu caráter naturalmente espontâneo. Agora (séc. XVI-XVII) ela ingressa no mercado da vida, fecha atrás de si as portas do mosteiro e se põe a impregnar com sua metódica justamente a vida mundana de todo dia, a transformá-la numa vida racional no mundo, (mas) não deste mundo nem para este mundo.”
O NOIVADO ENTRE RELIGIÃO CAROLA & CIÊNCIA: A ética pedagógico-protestante dá preferência à física, a disciplina racional que “desencanta o mundo”.
Religião ou economia, qual é a infraestrutura e qual é mero epifenômeno? Qual é o absoluto e incondicional e qual é a superestrutura? Debate superficial e seletivo. Marx e Weber eram inteligentes o bastante para não separar a justaposição indefinível destes dois aspectos humanos. A necessidade de separar em palavras era para fins didáticos ou polêmicos. Ambos são concordes, não rivais epistemológicos.
As democracias mais fracas do séc. XX vêm de tradição católica. O nazismo teria de advir do país da revolução luterana (o calvinismo incompleto, “místico”, apegado ao Pai-Führer).
Anedota: entre os quakers o ataque às imagens e rituais foi tão aberrante que gestos de etiqueta como “tirar o chapéu” se tornaram sinônimo de submissão espiritual – e portanto sinal ou sintoma ante-tempore de não-eleição, não-salvação no Fim dos Dias. Quaker = o caipira americano.
2. ASCESE E CAPITALISMO
O calvinismo evolui a uma heterodoxia (ou neo-ortodoxia fragmentada?): Baxter, o Puritano; Spener, o Pietista; Barclay, o Quacker.
“Perder tempo é o pior dos pecados.” Baxter
Daí a “tempo é dinheiro” não cu$ta muito (cof, cof)…
O repouso só é tolerável nos domingos.
Tomás de Aquino não tem ainda essa percepção sobre o trabalho.
Para Baxter, os ricos devem trabalhar tanto quanto os pobres; não é questão de dispor de capital que torne o desempenho de uma vocação facultativo, mas de cumprir um dever ineludível.
Baxter evoca esboços de conceitos que seriam desenvolvidos por Adam Smith. Ex: vantagem comparativa. Os trabalhadores devem se especializar. O artesão como “vadio”. Idade de ouro da carreira profissional.
“Não o trabalho em si, mas o trabalho profissional racional, é isso exatamente que Deus exige”
ENGENHARIA ESCRITURAL: Os trechos do Antigo e Novo Testamento propícios para seus sermões eram cuidadosamente pinçados; qualquer versículo cuja interpretação fosse contrária à ascese laboral era logo rechaçado. Guerra contra a magia e a transcendência.
Carlos I, Book of Sports
O primeiro estadista do “bem-estar social”.
O corpo continua sendo abjeto, porém, como é por meio dele que se restabelece a “graça para com Deus”, ele deve ser preservado pelo bem maior.
As seitas calvinistas eram originalmente inimigas do esporte, “prática francamente irracional”, incorrendo em desperdício de energia física, atividade vizinha das festas, da embriaguez e das apostas. Até mesmo banhos quentes deveriam ser evitados.
Os homens deviam usar roupas padronizadas, isto é, uniformes, para mostrar que não diferiam enquanto ovelhas do rebanho.
“a ascese era a força ‘que sempre quer o bem e sempre faz o mal’”
Resultado imediato: acumulação de capital mediante estímulo ao trabalho e concomitante coerção ascética à poupança.
“A história inteira das regras das ordens monásticas é em certo sentido uma luta perpetuamente renovada com o problema do efeito secularizante dos haveres” “O mesmo também vale em maior escala para a ascese imanente do puritanismo” Os mais críticos em relação a esse trabalho de Sísifo acabaram por estruturar a seita metodista.
“robinsonada”: Qualquer raciocínio caricato que define o Homo oeconomicus. Robinson Crusoe promoveu uma divisão de trabalho esquizofrênica em sua ilha deserta a fim de “enriquecer” e aproveitar melhor o tempo. Curiosamente esta idéia lhe veio após ler a Bíblia.
O que fazer com os franciscanos, p.ex.? Eles tinham sua utilidade: enquanto houvesse quem pedisse esmolas, haveria o crente enriquecido que as dava, respeitando seus próprios mandamentos, aliviando a consciência. Na Inglaterra é notório o aumento da miséria (o bem que traz o mal).
“Solução do dilema”: o capitalista que obtém lucro e reinveste no próprio negócio amplia a glória divina; o empregado, sem os meios, edifica sua existência ao vender sua força de trabalho.
De passagem, podemos afirmar que Freud se enganou (além de tudo o mais!) em sua simbologia fezes = dinheiro. O correto seria leite = dinheiro. Mammon, mamonismo, mamona, mamão, peito, mamilo e leite. Sanguessuga e parasita. Seiva da árvore da vida, lobo do homem. Matar para comer. Lentamente. Os mais próximos, sem tabu. Bezerro de ouro contra Moisés. A brancura que escorre junto com o sangue. Alguns são simplesmente alérgicos a ele, é de nascença. Sucção, palpitação. Vacas magras. Safra gorda. Desmame traumático. A queda. Não é possível a auto-suficiência.
Estética da mudança: os ingleses e o insípido canto coral. “o que se ouve o mais das vezes a título de ‘canto coral’ é uma gritaria insuportável para ouvidos alemães”
A Holanda em seus últimos anos de supremacia no mercado mundial: “os pregadores ingleses evocavam o exército holandês quando queriam ilustrar a confusão babélica das línguas.”
“em Shakespeare, ódio e desprezo pelos puritanos não perdem a chance de se manifestar a cada passo de sua obra” “Ainda em 1777 a cidade de Birmingham denegou autorização para a abertura de um teatro sob o pretexto de que iria fomentar o ‘ócio’, sendo portanto prejudicial ao comércio.”
“o Quaker era a ‘lei da utilidade marginal’ ambulante.”
“Quem se diverte em esclarecer uma idéia seguindo-a até suas últimas consequências, lembre-se daquela teoria de certos milionários americanos segundo a qual não se deve deixar para os filhos os milhões adquiridos só para não privá-los do benefício moral que só a obrigação de trabalhar e lucrar por sua própria conta e risco pode dar: hoje, evidentemente, isso não passa de uma bolha de sabão ‘teórica’.”
Consumação de uma tragédia (outro sintoma): os reformados ianques tinham horror à obesidade. Hoje são obesos e ociosos.
“Quis o destino que o manto do santo se convertesse numa rígida gaiola de ferro!”
“O rosto corado e alegre do Iluminismo não parece menos fadado a empalidecer e embotar, e a idéia do ‘dever profissional’ ronda nossa vida como um fantasma das crenças religiosas do passado.”
Todo funcionário público é ateu – minha alma só serena e encontra sua salvação ao mergulhar nas perturbações da minha vocação de escritor.
Uma das passagens mais brilhantes e memoráveis da “sociologia” (totalmente tributária de Nietzsche e da crítica econômica que nunca coadunou com a utopia positivistóide desta ‘ciência’):
“Ninguém sabe ainda quem no futuro vai viver nesta gaiola, e se ao cabo desse desenvolvimento-monstro (I) hão de surgir profetas inteiramente novos, (II) ou um vigoroso renascer de velhas idéias e antigos ideais, (III) ou se o que vai restar não será uma petrificação chinesa, arrematada com uma espécie convulsiva de auto-suficiência. Então, para os ‘últimos homens’ desse desenvolvimento cultural, bem poderiam tornar-se verdade as palavras: ‘Especialistas sem espírito, trocistas sem coração: esse Nada imagina ter chegado a um grau de humanidade nunca antes alcançado!’.”
Chega mesmo a arrepiar.
(I) Zaratustra ainda não está maduro.
(II) Ainda não.
(III) Talvez Zaratustra morra ainda em botão, ‘velhas tradições’ nunca se revigorem, e nosso destino seja a prisão de aço inoxidável e vidro blindado do “budismo chinês”, ocidentalizado. O último homem é o prisioneiro inconsciente. Voltamos a Platão. Não avançamos sequer um passo. Volta a esperança pelo número I. A contradição: só num estado de Nirvana auto-suficiência, petrificação e agitação poderiam coexistir.
Recomendação: Para mais sobre a “igreja invisível”, ler artigo de W., As seitas protestantes e o Espírito (…). Ainda é difícil encontrar esse artigo traduzido. Talvez no original ou em inglês.