[PREVIEW DO PRÓXIMO POST] Como uma discussão sobre o autismo e o conceito de Doppelgänger em Jean Baudrillard me levou a entrar em detalhes sobre o melhor vilão de Dragon Ball e a carreira do Messi… Parece uma dupla loucura, mas não é!

Trecho de BAUDRILLARD, Jean. The Illusion of The End (1994), seguido de especulações e desdobramentos meus acerca da figura do autista que devora o seu duplo e absorve seu irmão gêmeo, seja na vida real ou na ficção, com ou sem êxito:

 

[Not anymore] the delirium of the schizophrenic [personalidade cindida] but of the isophrenic, [idêntico tão-só a si mesmo] without shadow, other, transcendence or image (…) the autist who has devoured his double and absorbed his twin brother¹ (being a twin is, conversely, a form of autism à deux). (…) deprived of hereditary otherness, affected with hereditary sterility, they have no other destiny than desperately to seek out an otherness by eliminating all the Others one by one (whereas <vertical> madness [o tipo antigo da loucura, a família da esquizofrenia, formas arquetípicas do <desejo> de Gilles Deleuze & Guattari] suffered, by contrast, from a dizzying excess of otherness). The problem of Frankenstein, for example, is that he has no Other and craves otherness. This is the problem of racism.”

¹ The Black-Zamasu Syndrome! a Ou a Era Messi?b

O ANTES & DEPOIS DO “PERSONAGEM DUPLICADO” ZAMASU

a Black & Zamasu: dois lados de uma mesma moeda: Dois personagens de mangá/anime que são, no enredo, a mesma pessoa, porém provindos de universos alternativos (o que seria muito demorado explicar em suas minúcias), “um deles” mortal, um tanto impulsivo e dotado de um corpo “ágil e perfeito” (em que residiria essa agilidade e perfeição será deslindado a seguir – este mortal de que falo é chamado de “Goku Black” pelos demais personagens da trama), “outro deles” imortal, possuidor de extensos conhecimentos sobre o universo e não obstante dotado de um corpo um tanto menos versátil que o de sua contraparte espelhada (este é Zamasu, a identidade ‘original’ do ‘falso duo’). “Ambos” formam um par astuto e eficiente, pode-se dizer que “se completam” de forma platônica.

A solução final encontrada pelo(s) personagem(ns) desdobrado(s) Black-Zamasu na sua tentativa de cumprir o ambicioso propósito que persegue(m) com afinco na estória – o singelo plano da extinção da humanidade não só na Terra como em todo o universo (Ningen Zero Keikaku,(*) ‘Plano Zero Humanos’), e com humanos, nesta narrativa, não entender apenas criaturas antropomórficas, os terráqueos, mas todos os seres que a filosofia existencialista classificaria como conscientes de que um dia irão morrer dada “sua natureza meramente finita, recalcitrante e imperfeita, de pecadores natos, enfim”, como diria o vilão ou a dupla de vilões em questão –, envolve a precipitada decisão de “fundir-se consigo mesmo, acarretando a transformação de duas entidades em uma.

(*) Acho divertida a inadvertida – cacofonia intencional – coincidência acústica que a transposição da obra para o português acaba gerando: ningen, sendo o japonês para ‘humano’, corresponde exatamente à idéia que Black-Zamasu tem/têm do homem: um zé(ro)-ninguém.

Este Narciso que conseguiu mergulhar no espelho d’água e não se afogar, este Fausto do universo ficcional de Dragon Ball, após vender a alma para chegar aonde quer, percebe tarde demais que o “diabo” (neste caso ele mesmo) o ludibriou na barganha, ao constatar que, uma vez fundido com sua cara-metade, sua principal vantagem tática na trama até aquele momento é, como num simples passe de mágica, desfeita: seu senso de cooperação com um Outro (ainda que esse outro fosse apenas ele desdobrado), sua sincronia e trabalho em equipe ideais na paciente execução de um projeto maquiavélico, acabam dando lugar a uma criatura “semi-imortal e auto-suficiente”. Ora, só que não existe a semi-imortalidade (algo intrinsecamente inútil, inferior à imortalidade) nem uma auto-suficiência genuína.

A sutil tragédia desta estória, nem sempre capturada pelo leitor/espectador, está em que a fim de chegar tão longe em seus planos diabólicos Zamasu teve de roubar o corpo do artista-marcial “perfeito”, Goku, o protagonista, que encarna o próprio sentido do humano arquetípico, cheio de defeitos, carências e tolas expectativas, dotado de uma fé cega e ingênua no futuro a despeito da certeza da morte e até de uma certa dose de despeito pelo conceito de divindade (justamente o que nos torna cônscios de nossa capacidade inerente de nos corrigirmos e nos superarmos diversas vezes ao longo de nossa curta vida), conjunto de características tão abominado pelo mesmo Zamasu. A parte “humana” de Zamasu, Goku Black, ao ser incorporada ao próprio Zamasu original, constituindo a partir daí um corpo , desestabiliza seu Ser Eterno. Seu novo invólucro, em vez de onipotente, se revela uma falsificação, um embuste. Zamasu, o Uno, não dispõe mais da vida eterna.

E este nem é o pior de seus problemas após a fusão: logo se evidencia que, contra os humanos – raça que aprende com os erros e enquanto não perece ousa tentar outra vez, mesmo sem ter idéia do desfecho, de se seus esforços serão inúteis ou não, entregando, de qualquer maneira, tudo de si –, a própria habilidade de Zamasu, da parte do Goku Black em Zamasu, que ele tomou emprestada do corpo mortal de Goku quando uma de suas metades se transformara em Black no passado, a habilidade do contínuo e incessante auto-aperfeiçoamento pessoal, não passa de uma cópia barata da versão dos humanos autênticos dessa mesma habilidade. Zamasu, principalmente agora que contaminou sua antiga parte “humana” (parte que, reitera-se, era um mal necessário para que ele sobressaísse no combate) com traços divinos (e não o contrário: em Zamasu, é o humano que decai graças a sua metade deus, e não o inverso!), não possui a vontade e a determinação necessárias que lhe possibilitariam, em última instância, ultrapassar seus próprios limites.

Ao escolher se fundir consigo próprio, Zamasu apenas antecipou o fim do combate: se tornou um adversário facilmente vencível, incapaz de acompanhar o ritmo das proezas dos rivais e de compreender o ethos do inimigo. (Em sua cabeça, devia se perguntar: Por que eles lutam comigo, em intensa solidariedade uns com os outros o tempo todo, mesmo quando se acham em nítida desvantagem na correlação de forças? E por que eles não desistem nunca de realizar o impossível? O que faz criaturas tão frágeis e insignificantes se comportarem de maneira tão absurda e ao mesmo tempo exibirem uma invejável serenidade no olhar? Que impulso é esse que os move, que nem mesmo um deus como eu entende?!) O resultado final icônico do embate é que Black-Zamasu termina cortado em dois por um dos humanos que o antagonizam. Seu corpo imortal tinha o dom da auto-regeneração, mas sozinho não poderia vencer os humanos super-poderosos da trama fantástica. Quando se fundiu consigo mesmo, seu novo corpo semi-imortal foi aos poucos se deformando e perdendo aquela capacidade restauradora, embora ele calculasse que o ganho de poder resultante da fusão decidiria a guerra a seu favor.

Aquilo que fôra cortado pela espada de um humilde ser humano (a espada, apenas uma espada como qualquer outra, nada mais é do que o símbolo da inquebrantável perseverança dos mortais) não era bem a carne de Zamasu, a dizer verdade, mas seu espírito, sua própria essência, e este profundo ferimento metafísico se mostrou uma chaga incurável.

A evolução tremendamente satisfatória (em sua ascensão e queda) do multifacetado e secretamente atormentado Zamasu – esse Prometeu negativo, esse deus presunçoso e anti-socrático, que “não sabia que nada sabia” –, e seu estratagema cínico de forjar uma hipócrita aliança com seu duplo ou Doppelgänger, um duplo que ao mesmo tempo que imitava os seres humanos teria de ser seu principal instrumento para finalmente extingui-los, tornam este personagem, de longe, no melhor antagonista jamais apresentado por esta série shounen de lutinhas acéfalas, em que normalmente imperam a superficialidade mais boçal e os velhos clichês maniqueístas.

OBS: Deve haver uma mística ligação entre Jean Baudrillard e Dragon Ball, pois não é a primeira vez que eu associo a ambos – e ser mais distintos um do outro é impossível! – em posts do Seclusão (aqui vai a pista de uma possível explicação racional: novamente o assunto abordado se refere à ‘síndrome de deus’ de que padece o animal homem em todas as culturas conhecidas)!

Vide o contexto completo da primeira “analogia” entre aspas de Baudrillard e personagens de Dragon Ball em https://seclusao.art.blog/2021/12/20/ss-em-3-atos/.

b Lional “La Pulga” Messi: O conhecido jogador de futebol foi tachado por muitos “entendidos” de “autista” nos seus anos iniciais de carreira porque ‘se comunicava’ e ‘atuava’ de forma supostamente bizarra e muito diferente da habitual, tanto nos gramados quanto na vida privada. Diferente até de outros gênios do passado, principalmente do ícone-mor argentino, o extremamente sociável e integrado com o seu povo, extrovertido e burlesco Diego Maradona, que por muitos anos foi uma sombra na trajetória de Messi.

Vemos, num dégradé perfeito, como Lionel Messi foi se tornando, com a idade, cada vez mais e mais maradônico, seja porque assim quisemos passar a enxergar após começarmos a prestar mais atenção ou porque o meia-atacante foi se tornando, sem afetação, de modo orgânico e natural, grande e irreverente tal qual seu ídolo de infância, não só através de suas quebras rotineiras de recordes e a técnica cada vez mais precisa e apurada, como também pela maturidade com que aprendeu a chamar toda a responsabilidade e estrelato para si, aglutinando os companheiros pelo bem maior da equipe e confrontando com personalidade e malemolência os críticos e adversários, cada vez mais estupefatos e rendidos.

Messi soube se desdobrar, enquanto se movimentava como uma flecha durante os jogos, separou o Messi indivíduo comum do Messi lendário, o cidadão do mago protagonista de espetáculos, se situou num ângulo favorável, numa distância confortável, diante do espelho em que se punha a observar seu próprio Outro, que na verdade são duas coisas distintas, seus dois Outros – 1) o seu futuro como será contado pela História, que só pode ser decidido por ele mesmo; 2) e aquela antiga sombra ou reflexo pertencente ao passado, que mais parecia um destino inexorável a pesar como uma bigorna sobre as suas costas, ele, Diego Armando Maradona. Por muito tempo, no entanto, pensaram, e talvez Messi tenha pensado, que seus dois Outros eram um só: Messi é Maradona; mas se Messi não tem uma Copa, então Messi não é Maradona… então,a na realidade, Messi não é ninguém… Não!… Messi será Maradona!… contanto que… Entende-se onde quero chegar.

Os anos profissionais de um jogador de futebol passam muito mais depressa que nossa já efêmera vida. E, para Messi, sua trajetória como jogador, o capítulo mais importante de sua biografia, culminou com a decretação oficial de sua “santidade atlética”, a atribuição sem direito a controvérsia de seu status de craque atemporal, diante de toda a imprensa e da atual geração de torcedores do esporte mais popular do planeta, após a apoteótica exibição na final da Copa do Mundo de 2022, no momento em que erguia a Taça Fifa. Hoje, mesmo antes da aposentadoria, Messi já é apontado (e não aposentado, leia bem!) – e por não poucos, talvez pelos mesmos que antes tentavam explicar suas performances sobrenaturais apelando para diagnósticos clínicos! – como “melhor que Maradona” enquanto jogador e “tão influente e carismático quanto Dieguito” fora das quatro linhas, façanha notável, outrora até impensável, quando nos damos conta de que na Argentina Diego Maradona é venerado como um deus…

RESUMO LÓGICO DAS IMPLICAÇÕES DO EMPOLADO RACIOCÍNIO DE STAVROGIN E O SENTIDO DE “TUDO É PERMITIDO” NA OBRA DE DOSTOIEVSKY

God, for his part, if he exists, does not believe in his existence, but he allows the subject to believe in it, and to believe he [god] believes in it, or [the subject] not to believe that – but not to believe he [god] does not believe in it

Stavrogin, de Os Demônios, o psicólogo de Deus

  1. Deus existe; Deus não acredita na própria existência; Deus permite que o homem acredite na existência de deus ou não, mas não na segunda verdade fundamental.

1.1 O homem acredita na existência de deus.

1.1.1 O homem acredita que deus acredita na própria existência.

1.1.2 O homem acredita que deus não acredita na própria existência.

1.2. O homem não acredita na existência de deus.

1.2.1  O homem acredita que deus, se existisse, acreditaria na própria existência.

1.2.2 O homem acredita que deus, se existisse, não acreditaria na própria existência.

  1. Deus não existe.

2.1 O homem acredita na existência de deus.

2.1.1 O homem acredita que deus acredita na própria existência.

2.1.2 O homem acredita que deus não acredita na própria existência. Este homem na verdade é um grande ateu, pois um deus que não acredita na própria existência seria pior que a não-existência de um deus.

2.2. O homem não acredita na existência de deus.

2.2.1  O homem acredita que deus, se existisse, acreditaria na própria existência.

2.2.2 O homem acredita que deus, se existisse, não acreditaria na própria existência. Este homem é, finalmente, um grande ateu, o único ateu em sentido estrito, pois um deus que não acreditasse na própria existência, pensa ele, não deveria sequer ser pensável. Seria pior e mais absurdo que a não-existência de um deus, seria como uma confissão de não-onipotência por parte deste suposto deus.

2 conclusões:

  1. a) As possibilidades éticas são maiores sem Deus (tudo é permitido).
  2. b) Seria possível provar a inexistência de deus (jamais a existência)¹ ao se encontrar um só indivíduo que acredita que deus² não acredita em si próprio. É o caso do personagem da novela niilista de Dostoievsky. Seu niilismo absoluto, sua negação ultimada da realidade, não se escora no ingênuo fato de que não acredite num deus, mas que para ele, como um homem uma vez fanático e que pensou a idéia de Deus até as suas últimas conseqüências, esse deus se tornou impossível. Na percepção alcançada por Stavrogin, todos os casos são iguais, apenas ele e homens análogos a ele, um novo homem, são um outro: se Deus existe, quem acredita nele ou não são iguais; se Deus não existe, e Deus não existe, pois Stavrogin recebeu essa iluminação e nova sabedoria, ateus e crentes que acreditam que deus acredita em si próprio são iguais (inofensivos); mas ateus e crentes que acreditam que deus não acredita(ria) em si próprio, estes são niilistas radicais, os únicos ateus na verdadeira acepção da palavra. Igor Karamazov (outro romance) se questiona: Tudo é permitido?, mas Stavrogin responde, em Os Demônios.

¹ Pois todos os indivíduos precisariam respeitar as vedações em 1.1 e 1.2. Mas mesmo que todos na Terra em dado dia as respeitassem, não quereria dizer que jamais um indivíduo no passado as respeitou; e nem que nunca haverá de nascer um indivíduo que não as respeite.

² O deus existente, para o crente, ou inclusive apenas uma abstração, a hipótese de deus, de um deus que não acreditasse em si mesmo, para o não-crente.

Não exageremos a importância deste raciocínio lógico elaborado, no entanto: não podemos provar crenças (talvez apenas a nossa própria, e ainda assim podemos desconfiar de que às vezes mentimos para nós mesmos).

HEINE, HEIN?

7 de dezembro de 2017 a 14 de janeiro de 2018 – trabalho depois interrompido por 5 anos e meio.

ANTECEDENTES

Um dia hão de dizer que Heine e eu fomos de longe os primeiros artistas da língua alemã – numa distância incomensurável de tudo o que simples alemães fizeram com ela.”

Nietzsche

Walter Benjamin e Elias Canetti, que parecem ter dado ouvidos a Kraus, passaram batido por Heine.”

Ler um dia seu Quadros de Viagem, a magnum opus; mas também Cartas de Helgoland (pelo visto ainda sem versão portuguesa).

Heine foi o antídoto para a poesia oceânica de Victor Hugo.”

“‘O poeta impecável’ Théophile Gautier, ‘mago perfeito das letras francesas’, não foi apenas amigo de H., mas um tributário confesso de sua obra.”

Álvares de Azevedo (…) Sua pequena obra-prima, ‘Namoro a Cavalo’, escrita presumivelmente em 1851, é de nítida inspiração heineana.”

Jamais um Proteu tomou tantas formas, jamais o Deus da Índia passou sua alma divina numa série tão longa de avatares.”

Gérard de Nerval, seu amigo íntimo e primeiro tradutor francês.

Quem adora a arte como sua divindade e também dirige preces ao seu bel-prazer à natureza, ultraja tanto a arte quanto a natureza.”

Ludwig Börne, poeta contemporâneo e desafeto – ou talvez seja palavra muito forte, pois quando um não quer, dois não brigam – de H. que será ainda bastante citado.

E se o bom Deus quiser me fazer totalmente feliz, que me conceda a alegria de ver, nessas árvores, cerca de 6 ou 7 de meus inimigos enforcados. – De coração comovido hei de perdoar, antes de suas mortes, todas as infâmias que me infligiram em vida – sim, temos que perdoar nossos inimigos, mas não antes de serem enforcados.¹ – Perdão, amor e compaixão.”

¹ Se contradiz a meio caminho, mas tudo bem.

OS GRANADEIROS (tradução minha)

À França rumavam dois granadeiros,

que na Rússia haviam sido prisioneiros.

E quando chegaram no território alemão,

Sentiram-se como degolados.

Lá ouviram ambos as más novas:

Que a França fôra derrotada.

O grande exército vencido e aniquilado,

E o Imperador, o Imperador aprisionado.

Lá choraram juntos os granadeiros

Suas indignantes misérias.

Um diz: Como dói em mim,

Como ardem minhas velhas feridas.

O outro diz: Já era a Canção,

Também eu quero perecer contigo,

Mas tenho mulher e filho em casa,

Que sem mim não se sustêm.

Que me importa mulher, que me importa filho,

Eu levo comigo desejos melhores,

Deixai-os mendigar, quando estiverem famintos,

Meu Imperador, meu Imperador aprisionado!

Concede-me, irmão, um favor:

Agora, quando eu sucumbir,

Leva meu cadáver contigo até a França,

Enterra-me em solo francês.

A medalha de honra em faixa vermelha

Deves tu sobre meu coração depositar;

Na mão deixa-me a pederneira,

E afivela em mim a espada.

Quero descansar e ressoar no silêncio,

Como uma sentinela, na lápide,

Até um dia ouvir canhonadas,

E relinchos da Cavalaria.

Então meu Imperador cavalgará sobre meu túmulo,

Várias lâminas tilintam e incendem;

É aí que me ergo da cova, armado,

Para o Imperador, para o Imperador defender.

UM OCEANO DE ADMIRADORES

Resenhador anônimo contemporâneo ao poeta:

A poesia deve agir como a – religião.”

revelam-se como os piores e mais lamentáveis aqueles poemas onde o autor se faz de delicado ao extremo e suspirante, especialmente nas canções de amor.”

quanto menos ele honra a finalidade da poesia, tanto mais tem compreendido e considerado a essência da mesma.”

O autor utilizou a linguagem da canção popular alemã na maioria de seus poemas. Em todos impera aquele tom popular que os adeptos artificiais da empolação convencional ridicularizam como simplório, e que em sua verdadeira simplicidade só pode ser atingido pelos grandes poetas.” “Goethe mirou um alvo completamente diverso; ele deu à canção popular um colorido para o chazinho da tarde.” “não podemos nos admirar o bastante pelo fato de não termos encontrado nas canções populares de H. a matéria ou eco de qualquer canção alemã já existente”

A mera burguesia, a mera humanidade é o elemento único que vive na poesia de H.”

NAS ASAS DA CANÇÃO

Por séculos afora,

Inertes no infinito,

Estrelas se entreolham

No amor irresolvido.

A língua em que murmuram

É rica e muito bela

Filólogo nenhum

Jamais há de entendê-la

Porem tenho-a aprendido

Em teoria e prática

A face em que eu orbito

Serviu-me de gramática.”

* * *

Corto minh’alma ao meio;

Assopro-te a metade,

Te abraço, então seremos

Corpo e alma de verdade.”

* * *

Com roupinhas de domingo,

Filistinos fazem festa;

Tal cabritos, dão pulinhos,

Passeando na floresta.

Eu, porém, cubro as janelas

Com a mais negra cortina;

Sob a luz do dia ou velas,

Grei de espectros me azucrina.”

* * *

Se nos casarmos no papel,

Então vão todos te invejar:

Hás de passar a leite e mel

Os dias de papo pro ar.

Quando tiveres teus chiliques,

Prometo que não vou chiar;

Porém meus versos não critiques,

Que aí vou me divorciar!”

DONA CLARA

(…)

<Os mosquitos, cavaleiro,

Me picaram no ínterim,

Tenho raiva dessa praga

Como do judeu chinfrim.>

(…)

<Mas me diz: teu coração

Balançou mesmo por mim?>

<Não duvides meu senhor,

Por Jesus, juro que sim,

Ele a que os judeus tratantes

E velhacos deram fim.>

<Deixa o Cristo para lá

E os judeus, minha rolinha.

Olha só como balançam

Suave os lírios na colina.>

(…)

<Não há uma gota falsa

De sangue dentro de mim;

Meu amor, não sou da raça

De Judá, nem sou muslim.>

<Deixa os mouros para lá

E os judeus, amada minha;

Vamos nos aconchegar

Entre os ramos de alecrim.>

E fez pra filha do alcaide

O mais delicado ninho;

Foi sucinto na palavra,

Mas prolixo no carinho.

(…)

<Creio que estão me chamando!

Meu querido, diz enfim:

Qual a graça do teu nome?

Não o escondas de mim.>

(…)

<Meu amor, deu-me o destino

Uma estirpe primorosa,

Eu sou filho do Rabino

Israel de Zaragoza.>”

* * *

Nossa amizade agora cresce

A cada dia e nunca pára;

Virei alguém que se enraivece,

Estou ficando a tua cara.”

* * *

Por qual das duas se apaixona

Meu coração que o amor balança?

A mãe tem ares de madona,

A filha é uma linda criança.

Ver essas formas graciosas,

Tão inocentes, que delícia!

Mas quem resiste àqueles olhos

Que sabem ler toda a malícia?

Meu coração parece, assim,

O amigo cinza e sem ação

Ante dois montes de capim:

Não sabe qual sua ração.”

* * *

A cartinha que me escreves

Não me abala a alegria;

Para dizer que o amor já era,

Escreveste em demasia.

Doze folhas manuscritas,

Com letrinha de notário!

Quem deseja a despedida

Não se dá tanto ao trabalho.”

MUITO ALÉM DE TOCQUEVILLE

Justamente eu tive que editar anais políticos, comunicar assuntos da hora, panfletar desejos revolucionários, acender paixões, dar petelecos incessantes no nariz do pobre Zé Povinho alemão, a fim de que acordasse de seu saudável sono de gigante… Óbvio que nada mais consegui do que provocar um leve espirro no gigantesco roncador, e de forma alguma despertá-lo… Também puxei-lhe com força o travesseiro, mas ele o endireitou com a mão trôpega de sono… Desesperançado, quis um dia incendiar sua touca de dormir, que, no entanto, de tão empapada com o suor dos pensamentos não produziu nada mais do que fumaça… e o Zé Povinho, dormindo, sorriu.

(…) Ah, se eu apenas soubesse onde repousar minha cabeça. Na Alemanha é impossível. A todo momento, um policial viria sacudir-me para verificar se estou mesmo dormindo; só de pensar nisso já me estraga todo prazer. Mas afinal, para onde ir? De novo ao sul? (…) Ficaram tão azedas quanto os limões as ditas laranjas douradas. [referência à Áustria] (…) Ou devo ir para o norte? Talvez ao nordeste? Ah! os ursos polares estão mais perigosos do que nunca, desde que foram civilizados e passaram a usar luvas glacé. Ou devo voltar à diabólica Inglaterra, onde não fui enforcado in effigie mas onde tampouco quero viver em pessoa? Deviam pagar para a gente morar lá, e, ao invés disso, a estada na Inglaterra custa o dobro dos demais lugares. Nunca mais quero pôr os pés nesse desprezível país, onde as máquinas são como homens e os homens gesticulam como máquinas. Que zumbem e silenciam tão assustadoramente. Quando fui apresentado ao enorme governante, e esse inglês de araque permaneceu imóvel na minha frente sem falar uma palavra por vários minutos, passou-me involuntariamente pela cabeça olhar as suas costas, para averiguar se haviam esquecido de dar corda no maquinário. Que a ilha de Helgoland esteja sob o domínio inglês já me é fatal o suficiente. Às vezes imagino sentir o cheiro daquele tédio que os filhos de Albion exalam em todo lugar. De fato, cada inglês emana um certo gás, o mortífero veneno do tédio, que observei com meus próprios olhos, não na Inglaterra onde todo o ar está dele impregnado, mas nas terras do sul, por onde o inglês vagueia solitário, e onde a auréola de melancolia que circunda sua cabeça torna-se bastante nítida no ensolarado ar azul. Os ingleses acreditam que seu denso tédio seja um produto territorial, e para escapar do mesmo, viajam por todos os países, entediando-se em todos os lugares e voltando para casa com um diary of an ennuyé. Parece o caso do soldado que caiu no sono: os companheiros besuntaram-lhe as narinas com excremento; quando acordou percebeu que a guarita cheirava mal, e saiu; mas não tardou a voltar, dizendo que lá fora também fedia, que o mundo inteiro cheirava mal.

Um amigo meu, que voltou recentemente da França, me assegurou que os ingleses viajam pelo continente por desespero da pesada culinária de sua pátria; nas tables d’hôte se vêem os gordos bretões engolindo somente vol-au-vent, crème, supréme, ragout, gelées e outras iguarias arejadas, e com aquele apetite colossal que treinaram em casa com a massa de roastbeefs e o plum pudding [pudim de ameixa] de Yorkshire, levando à ruína qualquer dono de restaurante. (…) Enquanto rimos da frivolidade com que observam as curiosidades e galerias de arte, talvez sejam eles que nos enganam, e o seu sorriso não passe, assim, de uma astuta camuflagem de suas intenções gastronômicas?

Mas por melhor que seja sua própria cozinha, a França não anda lá muito bem das pernas (…) Os atuais detentores do poder são os mesmos imbecis que tiveram suas cabeças cortadas há 50 anos... Do que adiantou? Levantaram do túmulo, e o seu governo está mais tolo do que antes, pois[,] quando os deixaram sair do reino dos mortos para a luz do dia, a maioria colocou, na pressa, a melhor cabeça que estava à mão, e com isso ocorreram desacertos irremediáveis: a cabeça, amiúde, não combina com o tronco e com o coração que ali dentro assombra. Muitos deles, conforme a própria razão espalha nas tribunas, têm cabeças cuja sabedoria admiramos, mas que, no entanto, se deixam logo conduzir pelos corações incorrigíveis aos atos mais estúpidos… É a terrível contradição – entre pensamento e emoção, princípio e paixão, palavra e ação – desses revenants!

Ou devo ir para a América, essa imensa penitenciária da liberdade, onde os grilhões invisíveis me apertariam ainda mais dolorosamente que os visíveis lá de casa, e onde o mais repugnante dos tiranos, a plebe, exerce sua rude dominação? Tu sabes o que penso desse país amaldiçoado, que outrora amava, quando ainda não o conhecia… E, não obstante, devo louvá-lo por obrigação do métier… Ó caríssimos camponeses alemães, ide para a América! Lá não há príncipes nem nobres, todos os homens são iguais, são um único caipira… Com exceção, é claro, de alguns milhões que têm a pele negra ou marrom, e que são tratados como cachorros. A escravidão, que foi abolida na maior parte dos estados, não me repulsa propriamente tanto quanto a brutalidade com que tratam os negros e mulatos livres. Também aqueles que em mínimo grau descendem de um negro – ainda que não tragam na cor da pele o sinal da descendência, mas tão-somente nos traços do rosto – terão de suportar as piores ofensas, ofensas estas que irão nos parecer até fantasiosas na Europa. Ao mesmo tempo, esses americanos têm o seu cristianismo em grande conta, e são os mais ávidos freqüentadores de igrejas. Tal hipocrisia aprenderam com os ingleses que, aliás, lhes deixaram suas piores qualidades. A utilidade mundana é, no fundo, a sua religião, e o dinheiro é seu Deus, seu Deus único e todo-poderoso. Naturalmente que um coração nobre poderá lamuriar-se em silêncio contra o egoísmo e a injustiça generalizadas. Mas se quiser de fato combatê-los, espera-o o martírio que ultrapassa todos os conceitos europeus. Creio que foi em Nova York onde um pregador evangélico indignou-se tanto com a judiação dos homens de cor que, desafiando o cruel preconceito, casou sua própria filha com um negro. Tão logo esse ato verdadeiramente cristão tornou-se público, o povo invadiu a casa do pregador, que somente através da fuga evitou sua morte; a casa, porém, foi arrasada, e a filha, a pobre vítima, caiu nas garras do populacho, para satisfazer-lhes a fúria. She was lynched, isto é, foi completamente despida, banhada em piche, rolada sobre os edredons rasgados e, nessa viscosa cobertura de penas, humilhada e arrastada por toda a cidade…

Ó liberdade, és um sonho ruim!”

O MANIFESTO ANTI-HEGELIANO-SEMITA DO MAIOR DE TODOS OS JUDEUS

Os judeus deveriam se consolar com facilidade por terem perdido Jerusalém e o Templo e o tabernáculo e os talheres dourados e as jóias de Salomão… Essa perda é mínima em comparação com a Bíblia, esse tesouro indestrutível que conseguiram salvar. Se não me engano, foi Maomé que chamou os judeus de o <Povo do Livro>, um nome que até os dias de hoje perdura no Oriente e que é profundamente representativo. Um livro é sua pátria, sua propriedade, seu senhor, seu azar e sorte. Eles vivem nos pacíficos limites desse livro, ali exercem sua cidadania inalienável, ali não podem ser perseguidos, desprezados, ali são fortes e dignos de inveja. Imersos na leitura desse livro, muito pouco notaram das mudanças que ocorreram ao seu redor, no mundo real; povos surgiram e desapareceram, Estados floresceram às alturas e feneceram, revoluções assolaram o planeta… Porém eles, os judeus, estavam inclinados sobre o seu livro, e nada perceberam da selvagem caçada do tempo que grassava sobre suas cabeças. Assim como o profeta do Oriente os denominou o <Povo do Livro>, o profeta do Ocidente, em sua Filosofia da História, os chamou de o <Povo do Espírito>. Desde o mais remoto início, como observamos no Pentateuco, os judeus professam a sua inclinação ao abstrato, e toda sua religião não passa de um tipo de dialética, através da qual a matéria é separada do espírito, e o Absoluto é somente reconhecido na forma exclusiva do espírito. Que posição assustadoramente isolada não tiveram que assumir entre os povos da Antiguidade, que se dedicavam aos mais alegres serviços da natureza, compreendendo o espírito muito mais como manifestação, em símbolo e imagem, na matéria! Que terrível oposição não ergueram, portanto, contra o colorido Egito que coalhava de hieróglifos, contra a Fenícia dos grandes templos de prazer de Astarte, ou mesmo contra a bela pecadora, a adorável, doce-perfumosa Babilônia, e por último, até mesmo contra a Grécia, a florescente terra natal da arte!

(…) Moisés deu ao espírito, por assim dizer, as paliçadas materiais contra a invasão dos povos vizinhos: ao redor do campo onde semeara o espírito, plantou a áspera lei cerimonial e um egocêntrico sentimento de nacionalidade, como uma protetora cerca de espinhos. (…) eis que surge Jesus Cristo e derruba a lei cerimonial, que doravante nenhuma importância terá, proclamando também a sentença de morte sobre a nacionalidade judaica… (…) Foi uma grande demanda emancipatória, resolvida, contudo, de forma bem mais generosa que as atuais na Saxônia e Hannover… (…)

…e a humanidade toda, desde então, aspira in imitationem Christi à mortificação do corpo e à suprassensível entrada no espírito absoluto

Quando voltará a harmonia? Quando irá o mundo se curar dessa ânsia por espiritualização, o insano erro através do qual tanto a alma como o corpo adoeceram? Um grande antídoto reside no movimento político e na arte. Napoleão e Goethe atuaram com precisão. Aquele, por ter obrigado os povos a admitirem todos os tipos de movimentos saudáveis ao corpo; este, por nos ter tornado de novo receptíveis à arte grega e criado obras de peso, nas quais podemos nos agarrar como nas estátuas de mármore dos deuses, para não afundarmos no mar enevoado do espírito absoluto…”

O HOMEM ETERNO DE HEINE, O ANIMAL MORAL

Eu creio poder afirmar que a moralidade independe do dogma e da legislação, ela é inteiramente um produto do saudável sentimento humano, e a moralidade verdadeira, a razão do coração, irá perdurar eternamente, mesmo que o Estado e a Igreja venham abaixo.

Gostaria que tivéssemos uma outra palavra para isso que chamamos aqui de moralidade [Sittlichkeit]. Poderíamos ser levados a entender a moralidade como produto dos costumes [Sitte]. Os povos latinos vêem-se na mesma arapuca, ao tirarem sua morale de mores. (…) Existe, assim, um costume indiano, um chinês, um costume cristão, mas só existe uma única moralidade humana. Esta talvez não se deixe apreender em um conceito, e a lei da moralidade, que denominamos moral, não passa de uma brincadeira dialética. A moralidade se revela nas ações, e somente nos motivos destas, não em suas formas e cores, reside o significado moral. (…)

(…) As palavras mais estranhas do Novo Testamento são para mim as desta passagem do Evangelho de S. João, 16:12-13: <Ainda tenho muito que voz dizer, mas vós não o podeis suportar agora. Mas, quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir.> (…)

Uma certa ambigüidade mística predomina em todo o N.T. Uma astuta digressão, não um sistema, são as palavras: <Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus>. Do mesmo modo, quando perguntam a Cristo <és o rei dos judeus?> a resposta é evasiva. Assim também quando se indaga se ele seria o Filho de Deus. Maomé se mostra muito mais aberto e categórico. Quando lhe perguntaram algo semelhante, respondeu: <Deus não tem filhos>.

(…) Se aparecer um Salvador agora, não terá mais que se deixar crucificar para divulgar a sua doutrina com impacto... Basta que simplesmente mande imprimi-la e anuncie o livrinho nos classificados do Allgemeine Zeitung, a 6 cruzados por linha. (…) Que fonte revigorante para todos os sofredores foi o sangue que escorreu no Gólgota!… Esse sangue respingou nos brancos deuses de mármore da Grécia, que adoeceram de um horror interior e nunca mais se recuperaram! A maioria, naturalmente, já carregava a peste dentro de si, e o susto tão somente apressou-lhes a morte. Primeiro morreu Pã.”

[Nota do tradutor] Pustkuchen, Johann Friedrich Willhelm (1793-1834): escritor e clérigo protestante; ficou conhecido por sua continuação do romance Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, sob o pseudônimo Glanzow. Quando teve a identidade revelada, foi impiedosamente ridicularizado pelo autor da obra.”

DE NOVO A BÍBLIA, A NATUREZA, A ARTE E UMA PITADA DE CULINÁRIA

Na Bíblia não aparece qualquer vestígio de arte; o estilo é o de um bloco de notas, no qual o espírito absoluto, como se não tivesse qualquer auxílio individual, registra os acontecimentos do dia, quase com aquela mesma fidelidade aos fatos que usamos para escrever nossos bilhetes. Sobre esse estilo não se pode emitir qualquer juízo, apenas constatar o efeito sobre nossas emoções, e não se desconcertaram pouco os gramáticos gregos, quando tiveram que definir em conceitos convencionais muitas das belezas flagrantes da Bíblia. Longino fala de sublime. Estetas mais recentes, de ingenuidade. Ah! (…) Apenas em um único escritor sinto algo que me lembra o estilo sem mediações da Bíblia. É Shakespeare. Também nele irrompe às vezes a palavra com aquela assombrosa nudez que nos assusta e estremece; nas obras shakespearianas vemos às vezes a verdade encarnada sem as roupagens da arte. Mas isso só acontece em alguns momentos; o gênio da arte, sentindo talvez a sua impotência, delega, por um momento, sua tarefa à natureza, para depois reafirmar com ciúme ainda maior o seu domínio sobre a criação plástica e o divertido encadeamento do drama. Shak. é judeu e grego ao mesmo tempo, ou melhor, nele os dois elementos, o espiritualismo e a arte, se interpenetraram, plenos de conciliação, desdobrando-se num todo mais elevado.

(…) <Com o Espírito Santo se dá o mesmo que com o terceiro cavalo, quando a gente viaja pelo Correio Expresso; é preciso sempre pagar por ele, mas a gente nunca vê o tal cavalo.>

(…) enquanto eu debatia com o prussiano a Santíssima Trindade, lá embaixo, o holandês explicava como se diferencia o bacalhau do Labberdan e do stockfish; que seriam no fundo a mesmíssima coisa.”

SOBREVIVÊNCIA DE UMA VOCAÇÃO EXTEMPORÂNEA

Os poetas, desde o triunfo da Igreja Cristã, formaram sempre uma comunidade silenciosa, onde a alegria no culto das antigas imagens e a rejubilante fé nos deuses se disseminam de geração em geração, na tradição dos cantos sagrados…

(…) O mundo não permanece no cessar-fogo inerte, mas na mais estéril circulação. Outrora, quando era jovem e inexperiente, acreditava que, na guerra de libertação da humanidade, ainda que os combatentes isolados perecessem, a grande causa venceria no final… E eu estremeço com estes belos versos de Byron: <As ondas vão uma atrás da outra, mas o mar segue adiante>.

Ah! Quando se observa por mais tempo essas manifestações da natureza, percebe-se que o mar que avança, volta de novo ao leito anterior num ciclo determinado, e mais tarde avança de novo, com a mesma violência, buscando recuperar o terreno perdido, e por fim, pusilânime, parte em retirada como antes, e embora repita esse jogo continuadamente, nunca vai adiante… Também a humanidade move-se pelas leis do fluxo e refluxo, e quem sabe no mundo do espírito a Lua também exerça a sua influência sideral.”

ESPARTANOS E HOLANDESES

Assim como os espartanos preservavam seus filhos da embriaguez, mostrando-lhes um hilota bêbado como exemplo a se evitar, deveríamos fornecer às nossas instituições de ensino um holandês, para que a sua apática e inerte natureza de peixe provocasse nas crianças o horror à sobriedade. E deveras, a sobriedade holandesa é um vício bem mais mortífero que a embriaguez dos hilotas. Gostaria de quebrar a cara de Mynheer…”

INEXISTÊNCIA DA VIDA EXTRA-TERRESTRE

Mas não há nenhum outro mundo habitado, como sonham alguns, tão só esferas cintilantes de pedra, ermas e estéreis,

Elas não caem por não saberem onde cair.”

A FARSA FRANCESA

Os cabelos de prata que eu vira esvoaçar majestosamente nos ombros de Lafayette, herói de dois mundos, transformaram-se, ao observá-los mais de perto, numa peruca marrom que cobria miseravelmente um crânio estreito. E até mesmo o cão Medor, que visitei no pátio do Louvre e que, guardado sob bandeiras tricolores e troféus, comeu tranqüilo a ração que lhe dei: não era de forma alguma o verdadeiro cachorro, mas uma besta corriqueira que se apropriara da glória alheia, como é muito usual entre os franceses, e que, assim como tantos outros, explorava a fama da Revolução de Julho…

Pobre povo! Pobre cão, eles!

(…) Em julho de 1830 conquistou a vitória para aquela burguesia que valia tão pouco quanto a nobreza que substituiu, e com o mesmo egoísmo… (…) Mas acreditai: quando soar novamente o sino da intempérie e o povo tomar em armas, desta vez ele lutará em causa própria e exigirá o soldo merecido. Desta vez, o verdadeiro Medor há de receber as honras e a ração… (…)

Mas cala-te, coração, tu te expões em demasia.”

* * *

UMA GAIVOTA

meus poemas repulsivos não são alimento para a rude multidão.”

AS GARRAFAS PELO CHÃO

Solitário, este imbecil contempla a cama.”

* * *

GÊNIO OU APENAS UM ARISTOCRATA INSOLENTE?

um certo desdém, como o que se encontra em homens que se acham superiores à posição que ocupam, mas que duvidam do reconhecimento alheio. Não era aquela majestade recôndita que podemos encontrar na face de um rei ou de um gênio, que se ocultam incógnitos entre a multidão; era decerto aquela insolência revolucionária, um tanto titânica, que se nota no rosto de qualquer pretendente. A sua atuação, os seus movimentos, o seu andar tinham um quê de segurança, de certeza, de caráter. Os homens extraordinários estarão banhados da irradiação de seu espírito? Nossas emoções pressentirão a glória que nós, com os olhos do corpo, não podemos ver? A intempérie moral, em tais homens extraordinários, atuaria talvez eletricamente nos temperamentos jovens e sensíveis que deles se aproximam, como a tempestade real influi nos gatos?”

Dieffenbach, quando estudávamos em Bonn, onde quer que ele pegasse um gato ou um cachorro, logo lhe cortava o rabo, por puro prazer de cortar, o que muito nos irritava, porque os bichos gemiam insuportavelmente, mas depois perdoamos por ele ter, graças a esse prazer de talhar, se tornado o maior cirurgião da Alemanha”

O enigmático “Jean Paul” dos séc. XVIII-XIX: (*) “Pseudônimo de Johann Paul Friedrich Richter (1763-1825), um dos escritores mais populares e bizarros de seu tempo; anticlássico sem, contudo, identificar-se com os românticos, foi autor de romances labirínticos que uniam o sentimentalismo mais açucarado ao grotesco e o fantástico; tanto Heine quanto Börne apreciavam seu estilo e foram por ele influenciados. Passou os últimos 20 anos de sua vida em Bayreuth.”

<Börne não sabe escrever, como tampouco eu ou Jean Paul.> Rahel entendia o escrever como o calmo ordenamento, ou seja, a redação do pensamento, a concatenação lógica dos elementos da oração, em resumo, aquela arte da construção do período que ela tão entusiasticamente admirava em Goethe quanto em seu marido [Varnhagen von Ense], e sobre a qual tínhamos então, quase que diariamente, as discussões mais frutíferas.” “ela nutria uma grande admiração por aqueles serenos escultores da palavra que sabem manipular, libertos da alma gestante, todo o seu pensar, sentir e observar como se estes fossem uma determinada substância, moldando-os plasticamente.” “Quero apenas salientar que para se escrever prosa bem-acabada é necessário se ter também, entre outras coisas, o domínio das formas métricas. Sem essa maestria, falta ao prosador um certo ritmo, fogem-lhe construções de palavra, expressões, cesuras e frases que só no discurso metrificado são admissíveis, e surgem dissonâncias que ferem os poucos ouvidos mais sensíveis.”

Curioso! Se à distância ouvimos falar de uma cidade, onde habita este ou aquele homem ilustre, obrigatoriamente pensamos que ele seja o centro da cidade, que até os telhados estejam pintados com a cor de sua celebridade. Que surpresa não é então, quando chegamos a essa cidade, desejosos de encontrar o ilustre homem, e precisamos perder tanto tempo perguntando por ele, até encontrá-lo no meio da multidão!”

Quando cozinheiras se encontram, falam sobre seus patrões; quando escritores alemães se encontram, falam sobre seus editores.”

Como amei esse homem até o 18 de Brumário, e ainda lhe fui devotado até a Paz de Campo Formio, mas quando subiu os degraus do trono foi descendo cada vez mais fundo em valor; e poder-se-ia dizer que ele despencou da escada vermelha!”

Börne

(*) “Konstablerwache: praça em Frankfurt, que em 1833 foi tomada por estudantes revolucionários, planejando explodir o Parlamento alemão.”

UM HOMEM & SUAS COISAS: Discurso sobre a Censura

Agora eu tenho a maior preocupação que, na minha estupidez, eu venha [a] escrever além da conta, e tenha que fugir repentinamente – como haverei de empacotar, na correria, todas essas xícaras e o bule? (…) Na pressa eles poderiam se quebrar e, de modo algum, quero deixá-los para trás. Sim, nós homens somos bichos estranhos! O mesmo homem que coloca em jogo a calma e alegria de viver, ou até mesmo a própria vida, para afirmar sua liberdade de expressão, não quer perder algumas xícaras, e se torna um escravo silencioso para preservar um bule de chá. (…) Chego até a acreditar que o vendedor de porcelanas era um agente austríaco, e que Metternich teria me entulhado de louças para me domesticar. Sim, sim, por isso custou tão pouco, por isso aquele homem era tão convincente. Ah! O açucareiro com a felicidade conjugal foi uma isca tão docinha! (…) Quando se usam meios inteligentes contra mim, eu nunca me enraiveço; só a estupidez e a burrice me são insuportáveis.”

Börne

INIMIZADES METAFÍSICAS

Seu rancor contra Goethe talvez também tenha tido um começo local; eu disse começo e não causa; pois ainda que a circunstância de ambos terem nascido em Frankfurt tenha inicialmente atraído a atenção de Börne a Goethe, o ódio que se inflamou dentro dele contra esse homem, e ardeu cada vez mais impetuosamente, foi só a conseqüência necessária de uma diferença arraizada profundamente na natureza de ambos. Aqui não age uma maledicência mesquinha, mas uma repugnância desinteressada que obedece às pulsões inatas, uma disputa que é tão antiga quanto o mundo, que se manifesta em toda a história da humanidade, e que irrompeu com maior nitidez no duelo que o espiritualismo judaico travou contra o prazer de viver helênico, um duelo que ainda não foi decidido, e que talvez nunca termine: o pequeno nazareno odiava o grande grego, que ainda por cima era um deus heleno.”

Eu digo nazarena, para não utilizar o termo <judeu> ou <cristão>, conquanto ambas as expressões sejam sinônimas para mim, e não sejam usadas para definir uma crença mas um temperamento. <Judeus> e <cristãos> são para mim palavras com significados coincidentes, em oposição a <helenos>, nome que tampouco uso para denominar um determinado povo, mas um direcionamento do espírito e um modo de ver, inato e igualmente ensinado. (…) Desse modo, havia helenos em famílias de pregadores alemães, e judeus que nasceram em Atenas e que talvez descendessem de Teseu. A barba não faz o judeu, ou a trança não faz o cristão, poder-se-ia dizer aqui com razão.”

os nazarenos têm, algumas vezes, um certo bom humor saltitante, uma certa vivacidade cômica de esquilo, até amavelmente obstinada, e doce, e também brilhante, mas à qual logo sucede um turvamento do ânimo; falta-lhes a majestade da satisfação que só encontramos nos deuses conscientes.”

* * *

Ah, que alívio! Enfim eu levo

No Hades uma vida boa!

Vou me embebedar do Letes

Pra esquecer minha patroa.”

ROSA VELHA

(…)

Um pelinho piniquento

Na verruga me atrapalha –

Filha, vá para um convento,

Ou te apruma com navalha.”

O cão ainda abana o rabo, mas morde quem lhe estende a mão.”

judaísmo: doença hereditária e milenar”

Será que o Tempo, deus eterno, um dia

Há de livrar-nos da moléstia escura

Que os pais vão transmitindo para os filhos?

E os netos – hão de ter saúde e tino?”

O conteúdo que um poema encarna

Jamais surgiu num estalar de dedos;

Se demiurgos não criam do nada,

Ah, muito menos os mortais aedos.

(…)

Somente pelo esforço do <poeta>

É que matéria é valorizada.”

* * *

SINFONIA “SATÂNICA”

O sr. Adam, pelo que sei, esteve na Noruega, mas duvido que lá algum feiticeiro conhecedor das runas lhe tenha ensinado aquela cristalina melodia, da qual só se ousa tocar 10 variações, existindo uma 11ª que pode provocar um grande malefício: caso tocada, a natureza inteira entra em comoção, os rochedos e montanhas começam a dançar, e as casas dançam e, dentro, as mesas e cadeiras dançam; o avô puxa a avó para dançar; o cachorro, a gata; e até o bebê pula do berço e dança.”

(*) “Gaetano Vestris (1729-1808): bailarino e mímico italiano que fez carreira na França, vindo a ser mestre de dança de Luís XVI; tão célebre em sua época que teria dito: <só existem três grandes homens na Europa – o Rei da Prússia, Voltaire e eu>; vários de seus filhos tornaram-se bailarinos famosos, entre eles o bastardo Auguste Vestris, que herdou do pai o título de <le dieu de la danse>.”

CONTREDENSE

Não posso deixar de mencionar que a igreja cristã, que acolheu em seu regaço todas as artes e tirou proveito delas, não conseguiu, todavia, fazer nada com a dança, descartando e condenando-a. A dança talvez lembrasse por demais os ofícios religiosos dos pagãos, tanto dos pagãos romanos quanto dos germanos e celtas, cujos deuses migraram para aqueles seres élficos aos quais a crença popular atribui uma miraculosa mania de dançar.” “A dança é maldita, como diz uma piedosa canção popular da Bretanha, desde que a filha de Herodias dançou para o iníquo rei que mandou matar João para lhe agradar. <Quando se vê uma dança, acrescenta o cantor, deves pensar na cabeça sanguinolenta do Batista na baixela, e o desejo demoníaco não poderá seduzir a tua alma!> Quando se reflete com maior profundidade sobre a dança na Académie Royale de Musique, ela aparece como uma tentativa de cristianizar essa arte notoriamente pagã, e o balé francês cheira quase à igreja galicana, quando não ao jansenismo, como todas as manifestações artísticas da grande época de Luís XIV. (…) De fato, a forma e a essência do balé francês são castas, mas os olhos das dançarinas fazem ao passo mais pudico um comentário assaz pecaminoso, e seus sorrisos dissolutos estão em permanente contradição com seus pés. Vemos o contrário com as chamadas danças nacionais, que prefiro mil vezes ao balé da grande ópera. As danças nacionais são freqüentemente sensuais em demasia, quase grosseiras em suas formas, como por exemplo a indiana, mas a sagrada seriedade na face dos dançarinos moraliza essas danças e até as eleva a um culto.”

Um grande dançarino não precisa ser virtuoso”

— Vestris, Gaetano

LIBERTÉ DO POPULACHO / in FEMME FATALE

Essa monotonia infindável está começando a me entediar, e não entendo como um homem pode suportá-la por muito tempo. As mulheres, entendo muito bem. Para elas, desfilar a aparência é o essencial. Os preparativos para o baile, a escolha do vestido, o ato de se vestir, de ser penteada, o sorriso da prova frente ao espelho, em resumo, o brilho e a coqueteria lhes são o principal, e lhes proporcionam o mais deleitoso divertimento. Mas para nós, homens, que democraticamente usamos fraques e sapatos negros (os insuportáveis sapatos!), uma soirée é, para nós, apenas uma fonte inesgotável de tédio misturada com alguns copos de leite de amêndoa e suco de framboesa. Da nobre música, eu não quero nem falar.” “Ninguém deseja mais entreter o outro, e esse egoísmo se manifesta também na dança da sociedade atual.”

Nem sei como devo expressar a tristeza que me assola, quando, nos locais públicos de entretenimento, especialmente no período do Carnaval, observo o povo dançando. Uma música estridente, clamorosa e exagerada acompanha uma dança que em maior ou menor grau assemelha-se ao cancã. E ouço aqui a pergunta: o que é o cancã? Deus do céu, como dar ao Allgemeine Zeitung uma definição do cancã?! Ora: o cancã é uma dança que nunca é dançada na fina sociedade, mas tão-somente em danceterias infames, onde aquele que o dança, ou aquela, é invariavelmente preso por um agente policial e conduzido até a porta.”

Heinrich Heine, 1842 [!!]

os dançarinos sabem, através de variados entrechats irônicos e gesticulações exageradas, manifestar seus pensamentos proscritos, e assim o velamento aparece ainda mais indecoroso do que a própria nudez. Em minha opinião, não é de muita serventia à moralidade que o governo intervenha na dança do povo com tanto armamento; o proibido é o que mais docemente atrai, e o sofisticado, não raro espirituoso, subterfúgio à censura tem conseqüências ainda mais funestas do que a brutalidade autorizada. Essa vigilância sobre o prazer popular caracteriza, aliás, a situação das coisas por aqui e mostra o quanto avançaram os franceses na liberdade.”

Eis que os deuses da paixão

Urram, fazem fuzuê

Dentro do meu coração

Pra Rainha Pomaré

Não a tal do Taiti –

Essa já catequizaram –

Digo aquela, tão bonita

E danada de selvagem.

Duas vezes por semana,

No Mabille² a dama empolga

Os seus súditos, dançando

O cancã, também a polca.

Todo passo é majestoso,

Seus requebros, que beleza!

Das canelas ao pescoço,

Cada palmo é uma princesa –

Ela dança – e em comoção,

Deuses fazem fuzuê

Dentro do meu coração,

Pra Rainha Pomaré!”

¹ Codinome da puta-de-luxo e bailarina Élise-Rosita Sergent (1824-46): “ficou célebre pela dança sensual que estreou no Mabille; segundo o escritor e jornalista Alfred Delvau, sua fama declinou subitamente por ter ousado apresentar a polca no teatro do Palais Royal, ocasião em que foi <abominavelmente vaiada> Depois de sua morte, ganhou muitas homenagens póstumas, na forma de poemas e biografias: “morreu de tuberculose, antes de completar os 22 anos de idade. [É A PRÓPRIA: A DAMA DAS CAMÉLIAS!] Seu nome artístico foi emprestado de uma personalidade da época, a rainha taitiana Pomare IV, também conhecida como Aimata (<comedora de olhos>); convertida [do canibalismo] ao cristianismo por missionários protestantes ingleses, entrou em conflito com a França ao recusar o protetorado francês (Guerra Franco-Taitiana, 1844-46); [Fico admirado com os motivos de jardim-de-infância para os conflitos europeus do séc. XIX! Mas não deveria, a essa altura do campeonato!] o nome dinástico Pomare, usado por 5 governantes taitianos, significa <noite de tosse> (po = <noite>, mare = <tosse>), tendo sido adotado pelo unificador e primeiro rei do Taiti, Tarahoi Vairaatoa (1742-1803), em homenagem à filha mais velha, morta de tuberculose.” A arte real copiou a realidade.

² Praça parisiense de onde teria vindo o cancan.

HIPNOSE, HIGH NO(i)SE

Juan de Flandres

Ela dança. E como gira o corpo!

Cada membro se contorce solto!

Esvoaça – o que será que a impele

Desejar se desprender da pele?

Ela dança. E quando se revira

Num pé só, e pára, e enfim respira,

Braços estirados para o chão –

Protegei, ó Deus, minha razão!

Ela dança. A tal coreografia

Que teria a filha de Herodias

Feito para o rei judeu Herodes,

Tanto ardeu nos olhos dela a morte.

Ela dança. Eu fico alucinado!

O que queres em sinal de agrado?

Tu sorris? Soldados, em revista!

Tragam-me a cabeça do Batista!”

Herodias ou Salomé? Capitu traiu?!

O velório foi sem pompa, e acabou antes do horário.”

No cortejo, só teu cão, e o fiel cabeleireiro.”

Ó rainha dos insultos, vomitaram em tua coroa”

* * *

Uma Filosofia da História: impossível na Antiguidade. Somente o tempo de hoje tem materiais para isso: Vico, Herder, Bossuet – Creio que os filósofos ainda terão de esperar mil anos antes que possam comprovar o organismo da história [nem então] – até lá penso que só isso é presumível: por fundamental considero: a natureza humana e as relações (solo, clima, tradições, guerra, necessidades imprevisíveis e incalculáveis), ambas em seu conflito ou aliança contra o fundo da história, encontram sempre a sua assinatura no espírito, e a idéia, pela qual se deixam representar, age novamente como terceiro sobre elas; isso é fundamentalmente o caso nos nossos dias, também na idade média.”

Os mais altos rebentos do espírito alemão: filosofia e canção – O tempo acabou, com ele a calma idílica, a Alemanha foi impelida ao movimento – o pensamento não é mais desinteressado, em seu mundo abstrato despenca a crua circunstância – A locomotiva das estradas de ferro estremece nosso sentimento, e assim nenhuma canção consegue alvorecer; a fumaça escorraça o pássaro canoro e o fedor dos lampiões a gás empesteia a perfumosa noite enluarada.”

Não compreendemos as ruínas antes de nos tornarmos ruínas nós mesmos”

Essa confissão de que o futuro pertence aos comunistas, eu a faço no tom de enorme medo e preocupação, e esse tom, ah!, não é nenhuma máscara! De fato, somente com horror e susto é que penso no tempo em que esses iconoclastas escuros irão tomar o poder: com seus punhos brutos hão de arrebentar as estátuas de mármore do meu mundo de arte tão querido, esfacelar todas aquelas fantásticas quinquilharias que os poetas tanto amam; derrubar o meu bosque de louros e plantar batatas no lugar; os lírios que não fiam nem trabalham e, no entanto, estão vestidos tão belos como o Rei Salomão, hão de ser arrancados do solo da sociedade, se não quiserem pegar na roca; os rouxinóis, cantores inúteis, hão de ser afugentados, e o meu Livro das Canções será usado, ah!, para embrulhar café ou o rapé das velhotas do futuro – Ah! tudo isso eu prevejo, e uma tristeza indizível se apodera de mim quando penso no declínio com o qual os meus poemas e toda a velha ordem do mundo estão ameaçados pelos comunistas” Tem razão, Heinrich Heine! Não precisamos de bosques de louros, só de batatas!

Eu sou cristão – comprova a certidão “Ich bin ein Christ – wie es im Kirchenbuche”

Que Deus vos dane e mande para o inferno! A cortesia eu devo a meus parentes.”

LENDA DE CASTELO

Em Berlim, lá no dossel

De um castelo medieval,

Vê-se dama e um corcel

Em satisfação carnal.

Dizem que a dita seria

A ilustríssima senhora

Mãe da nossa dinastia;

E que a porra¹ inda vigora.

Sim, de fato, o traço humano

Nela mal se faz notar!

Num monarca prussiano

Predomina o cavalar.

A conversação grosseira,

Os relinchos na risada,

Raciocínio de cocheira –

Asno em cada polegada!

Tu, ó mais jovem rebento,²

És o único cristão;

Pelo bom comportamento,

Não serás um garanhão.”

¹ Aqui tem o sentido de arma de tortura medieval.

² Frederico Guilherme IV

Eu frito ovinhos de formiga

Para comermos de manhã;

Depois eu vou herdar, querida,

Punzins-de-freira¹ da mamã.”

¹ Bolinhos-de-chuva

MORFINA

(…)

Dormir é bom – morrer, melhor –, contudo,

O que eu prefiro: nunca ter nascido.”

O DEUS APOLO

(…)

Canta o jovem louro e toca

Lira delicadamente;

Na freirinha a música provoca

Um calor sem precedente.

O sinal da cruz a freira faz;

Um, dois, três sinais da cruz;

O sinal, contudo, é ineficaz

Ao prazer que a dor produz.”

Marguerite Porète, O Espelho das Almas Simples e Aniquiladas (livro de bruxa)

(*) “Mohel: homem judeu habilitado à prática do Brit milah (circuncisão).”

(*) “Livre-espírito: corrente de misticismo radical com tendências anômicas que se disseminou em várias regiões da Europa, entre os séc. XII e XV, englobando os amalricianos, joaquimitas, valdenses e outros, como a Irmandade do Livre-Espírito, surgida na Renânia, Suábia e Países Baixos, no século XIII, e à qual os beguinos foram associados.”

tão bom quanto morrer pela pátria é ser feliz”

DOIS CAVALEIROS

Krapulinski e Maukaratski,

Dois polacos da Polônia,

Lutam contra a tirania

De Moscou com acrimônia.

(…)

Tal qual Pátroclo e Aquiles,

Alexandre e Hefestião,

Eles são grandes amigos,

Trocam beijos de montão!

(…)

Sim, os dois têm muitos trajes,

Um pra cada cerimônia –

Duas calças e camisas

Que trouxeram da Polônia.”

REI DAVI

Déspota – da vida se despede

Rindo, pois bem sabe o que sucede:

O desmando vai trocar de mão,

Não acaba nunca a servidão.”

AGORA AONDE?

(…)

De fato a guerra se acabou,

Mas não as côrtes marciais,

E aquilo que escreveste outrora,

Dizem, não vai deixar-te em paz.

(…)

Entristecido olho pra cima

Acena-me um montão de estrelas;

Contudo eu não encontro a minha,

Em canto algum consigo vê-la.”

O REI MOURO

(…)

Ela diz: <Boabdil el Chico,¹

Alegra-te amado meu,

Que no abismo da desgraça

Já verdeja o teu laurel.

Não somente o coroado

De vitórias triunfante,

Protegido por aquela

Deusa cega, é que obtém

Glória, mas também o filho

Do infortúnio, derrubado

Pela sorte, sobrevive

Para sempre na memória>.”

¹ Apelido do último rei mouro derrotado e expulso pela monarquia espanhola em 1492.

* * *

ROMANCE ZERO

ME INSURJO CONTRA HEGEL, ESSE PAGÃO!

os panteístas na verdade não passam de ateus envergonhados, que temem menos a coisa do que a sombra que ela projeta na parede, do que o nome. (…) só duas formas de governo, a monarquia absolutista e a república, suportam a crítica da razão ou da experiência; deve-se escolher uma delas; toda a mixórdia que há entre as duas é falsa, insustentável e funesta. Do mesmo modo surgiu a concepção na Alemanha de que se deve escolher entre religião e filosofia, entre o dogma revelado da crença e a última conseqüência da razão, entre o absoluto Deus da Bíblia e o ateísmo.

(…) Não brinquei com nenhum simbolismo nem abjurei a minha razão por completo. Não reneguei nada, nem sequer meus velhos deuses pagãos, dos quais me afastei decerto, mas separando-me com amor e amizade.”

MISERÊ

(…)

Mora nas alturas o dinheiro,

Mas adora adulador rasteiro.

(…)

O preço do pão subiu e muito,

Mas abrir a boca inda é gratuito –

Canta, pois, o cão de algum mecenas

Para te entupir de guloseimas!”

O APAGADO

(…)

Aflige-me a preocupação – Demora a tal ressurreição?

(…)

o que mais quer este meu corpo é uma mulher.

Deve ser loira, de olho azul,

Linda e suave como a luz

Da lua – só a duras penas

Agüento o sol dessas morenas.”

EFEMÉRIDE

Missa alguma irão cantar,

Nem Kadisch irão dizer,

Nada dito e nem cantado

Para mim, quando eu morrer.”

Historinhas de polaco

Que escancaram o riso teu,

Toda noite eu te contava

No dialeto dos judeus.”

Preocupação é como bolha de sabão:

o ruim é quando estoura

Mas dá nada, não!

AMIGOS & DINHEIRO

Brilhando o Sol-Felicidade,

As moscas dançam à vontade.

Os meus amigos me elogiam,

Com eles sempre compartilho

A carne boa do churrasco

E até meu último centavo.

Sumiu a sorte e o meu dinheiro

Vai com o amigo derradeiro;

Na escuridão, a moscaria

Não dança mais com alegria;

Foram-se as moscas e amizades

De braços com a felicidade.”

LEGADO

(…)

Cristão eu lego aos inimigos

Dádivas de agradecimento.

Aos meus fiéis opositores

Eu deixo as pragas e doenças,

A minha coleção de dores,

Moléstias e deficiências.

Recebam ainda aquela cólica,

Mordendo feito uma torquês, [fórceps]

Pedras no rim e as hemorróidas,

Que inflamam no final do mês.

As minhas cãibras e gastrite,

Hérnias de disco e convulsões –

Darei de herança tudo aquilo

Que usufruí em diversões.”

O HOMISLOBO

Israel, que a bruxa má

Metamorfoseou em cão.

(…)

Mas na sexta-feira à tarde,

Nos minutos do crepúsculo,

Cai o encanto, e aquele cão

Recupera a humanidade.

(…)

<Meu amado, hoje ninguém

Vai fumar, porque é Schabat>

(…)

[MASTER CHEF BC]

Cholent, divinal centelha

Filha que nasceu no Elísio!

Assim cantaria Schiller,

Se provasse esse petisco.

Cholent é o manjar dos Céus,

Foi o próprio Deus Senhor

Que passou para Moisés

A receita no Sinai [SENAI!]

(…)

Cholent, ambrosia koscher

Do Deus uno e verdadeiro,

É o maná do paraíso,

E, com ele comparado,

É tão só uma porcaria

Dos diabos a ambrosia

Que na Grécia os simulacros

Do Capeta compartilham.”

MIMI [a gata]

(…)

De instrumentos não carecem,

São sua própria viola e flauta,

As narinas são trompetes,

Os bigodes, sua pauta.”

Berlioz, Le soirée de l’orchèstre

(*) “Capriccio: do italiano = <movimento súbito>, <capricho>; provavelmente de capro (<bode>); tipo de composição musical caracterizada por uma certa liberdade de realização.” Caprichou, hein?!

* * *

Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente. Estava na rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral. (…) Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia. A poesia falará dela, particularmente naqueles versos de Heine [Navio Negreiro]

Machado de Assis, Memorial de Aires (13-05-1908)

DAS SKLAVENSCHIFF

I

Der Superkargo Mynheer van Koek

Sitzt rechnend in seiner Kajüte;

Er kalkuliert der Ladung Betrag

Und die probabeln Profite.

<Der gummi ist gut, der Pfeffer ist gut,

Dreihundert Säche und Fässer;

Ich habe Goldstaub und Elfenbein –

Die schwarze Ware ist besser.

Sechshundert Neger tausche ich ein

Spottwohlfeil am Senegalflusse.

Das Fleisch ist hart, die Sehnen sind stramm,

Wie Eisen vom besten Gusse.

Ich hab zum Tausche Branntewein,

Glasperlen und Stahlzeug gegeben;

Gewinne daran achthundert Prozent,

Bleibt mir die Hälfte am Leben.

Bleiben mir Neger dreihundert nur

Im Hafen von Rio-Janeiro,

Zahlt dort mir hundert Dukaten per Stück

Das Haus Gonzales Perreiro.>

Da plötzlich wird Mynheer van Koek

Aus seinen Gedanken gerissen;

Der Schiffschirurgius tritt herein,

Der Doktor van der Smissen.

Das ist eine klapperdürre Figur,

Die Nase voll roter Warzen –

<Nun, Wasserfeldscherer>, ruft van Koek,

<Wie geht’s meinen lieben Schwarzen?>

Der Doktor dankt der Nachfrage und spricht:

<Ich bin zu melden gekommen,

Dass heute nacht die Sterblichkeit

Bedeutend zugenommen.

Im Durchschnitt starben täglich zwei,

Doch heute starben sieben,

Vier Männer, drei Frauen – Ich hab den Verlust

Sogleich in die Kladde geschrieben.

Ich inspizierte Leichen genau;

Denn diese Schelme stellen

Sich manchmal tot, damit man sie

Hinabwirft in die Wellen.

Ich nahm den Toten die Eisen ab;

Und wie ich gewöhnlich tue,

Ich liess die Leichen wefen ins Meer

Des Morgens in der Fruhe.

Es schossen alsbald hervor aus der Flut

Haifische, ganze Heere,

Sie lieben so sehr das Negerfleisch;

Das sind meine Pensionäre.

Sie folgten unseres Schiffes Spur,

Seit wir verlassen die Küste;

Die Bestein wittern den Leichengeruch

Mit schnupperndem Frassgelüste.

Es ist possierlich anzusehn,

Wie sie nach den Toten schnappen!

Die fasst den Kopf, die fasst das Bein,

Die andern schlucken die Lappen.

Ist alles verschlungen, dann tummeln sie sich

Vernügt um des Schiffes Planken

Und glotzen mich an, als wollten sie

Sich für das Frühstück bedanken.>

Doch seufzend fällt ihm in die Red’

Van Koek: <Wie kann ich lindern

Das Übel? wie kann ich die Progression

Der Sterblichkeit verhindern?>

Der Doktor erwidert: <Durch eigne Schuld

Sind viele Schwarze gestorben;

Ihr schlechter Odem hat die Luft

Im Schiffsraum so sehr verdorben.

Auch starben viele durch Melancholie,

Dieweil sie sich tödlich langweilen;

Durch etwas Luft, Musik und Tanz

Lässt sich die Krankheit heilen.>

Da ruft van Koek: <Ein guter Rat!

Mein teurer Wasserfeldscherer

Ist klug wie Aristoteles,

Des Alexanders Lehrer.

Der Präsident der Sozietät

Der Tulpenveredlung im Delfte

Ist sehr gescheit, doch hat er nicht

Von Eurem Verstande die Hälfte.

Musik! Musik! Die Schwarzen soll’n

Hier auf dem Verdecke tanzen.

Und wer sich beim Hopsen nicht amüsiert,

Den soll die Peitsche kuranzen.>

II

Hoch aus dem blauen Himmelszelt

Viel tausend Sterne schauen,

Sehnsüchtig glänzend, gross und klug,

Wie Augen von schönone Frauen.

Sie blacken hinunter in das Meer,

Das weithin überzogen

Mit phosphorstrahlendem Purpurduft;

Wollüstig girren die Wogen.

Kein Segel flatter am Sklavenschiff,

Es liegt wie abgetakelt;

Doch schimmern Laternen auf dem Verdeck,

Wo Tanzmusik spektakelt.

Die Fiedel streicht der Steuermann,

Der Koch, der spielt die Flöte,

Ein Schiffsjung’ schlägt die Trommel dazu,

Der Doktor blast die Trompete.

Wohl hundert Neger, Männer und Fraun,

Sie jauchzen und hopsen und kreisen

Wie toll herum; bei jedem Sprung

Takmässig klirren die Eisen.

Sie stampfen den Boden mit tobender Lust,

Und Manche schwarze Schöne

Umschlinge wollüstig den nackten Genoss –

Dazwischen ächzende Töne

Der Büttel ist Maître des plaisirs,

Und hat mit Peitschenhieben

Die lässigen Tanzen stimuliert,

Zum Frohasinn angetrieben.

Und Dideldundei und Schnedderedeng!

Der Lärm lockt aus den Tiefen

Die Ungetüme der Wasserwelt

Die dort blödsinnig schliefen.

Schlaftrunken kommen geschwommen heran

Haifische, viele hundert

Sie glotzen nach dem Schiff hinauf,

Sie sind verdutzt, verwundert.

Sie merken, dass die Frühstückstund’

Noch nicht gekommen, un gähnen,

Aufsperrend den Rachen; die Kiefer sind

Bepflanzt mit Sägezähnen.

Und Dideldundei und Schnedderedeng –

Es nehmen kein Ende die Tänze.

Die Haifische baissen vir Ungeduld

Sich selber in die Schwänze.

Ich glaube, sie lieben nicht die Musik,

Wie viele von ihrem Gelichter.

<Trau keener Bestie, die nicht liebt

Musik!> sagt Albions grosser Dichter.

Und Dideldundei und Schnedderedeng –

Die Tänze nehmen kein Ende.

Am Fockmast steht Mynheer van Koek

Und faltet betend die Händer:

<Un Christi willen verschone, o Herr,

Das Leben der Schwarzen Sünder!

Erzürnten sie dich, so weisst du ja,

Sie sind so dumm wie die Rinder.

Verschone ihr Leben um Christi will’n

Der für uns alle gestorben!

Denn bleiben mir nicht dreihundert Stück,

So ist mein Geschäft verdorben.>

* * *

Eu sei que o mundo está repleto

De vício, ignorância, intriga;

Mas já me acostumei, confesso,

A rastejar nesta pocilga.

A máquina do mundo não

Há de pegar-me pra moer –

Só saio em rara ocasião,

E fico em casa com prazer.

Me deixa aqui! Minha mulher

Tagarelando é um licor;

Nos olhos dela, e onde quer

Que vejo, enxergo só amor.

Saúde e um pouco de dinheiro,

Senhor, é tudo que eu te rogo!

Quero com minha companheira

Viver feliz no status quo!”

Uma esfinge de verdade

Não difere da mulher;

Faz-se de frivolidade

A leoa quando quer.

Escuríssima a charada

Dessa esfinge. Nem o tal

Filho-esposo de Jocasta

Decifrava uma igual.

Mas por sorte, o boudoir

Ignora a própria senha;

Se algum dia adivinhar –

Este mundo se desgrenha.”

DESPEDIDA

(…)

Sei que não foi por descaro

Pelo riso em tua cara;

No teu cérebro as lembranças

Ficam onde não alcanças.

Passar bem! – Nem acreditas

Como dói a despedida.

Deus te conserve a alegria

E a cabeça bem vazia!”

Por que se arrasta miserável

O justo carregando a cruz,

Enquanto, impune, em seu cavalo,

Desfila o ímpio de arcabuz?

De quem é a culpa? Jeová

Talvez ele não seja assim tão forte?

Ou será Ele o responsável

Por todo o nosso azar e sorte?

E perguntamos o porquê,

Até que súbito – afinal –

Nos calam com a pá de cal –

Isto é resposta que se dê?”

RATOS RETIRANTES

(…)

1000 kilômetros se arrastam

Os famintos, sem repasto;

Caminhando sobre espinhos

E através dos torvelinhos.

Enfrentando as serranias,

Mar revolto e calmarias;

Uns se afogam, os demais

Nunca olham para trás.

Com focinhos sorrateiros

Fuçam esses companheiros;

A cabeça é sempre igual –

Corte zero, radical.

São vermelhos, têm horror

Dos que crêem no Criador.

Não batizam filho algum,

E a mulher é um bem comum.

Rataiada epicuréia –

Só pensa em pão com geléia;

E renega, quando come,

A imortalidade do homem.

Rato bárbaro e moderno,

Não há gato nem inferno

Que afugente; e sem sustento,

Quer ruir o fundamento.

Arre! Os ratos retirantes

Não estão nada distantes!

Já se escuta o burburinho

Dos roedores a caminho.

Ai de nós! Eles já estão

Se apinhando no portão!

Vereadores e prefeito

Gesticulam contrafeitos.

Soam alto os campanários;

Fazem fila os voluntários:

Vão lutar pela cidade

E a privada propriedade.

Hoje, as preces, meus diletos,

Não vos salvam, nem decretos

Ou disparos de canhão

Vos garantem proteção.

Com floreios de oratória

Não se enfeita esta história.

Silogismo não engana

Uma esperta ratazana.

Quem tem fome filosofa

Com torresmos e farofa

E, dialética, argumenta:

Carne assada com polenta.

Caladinho, o bacalhau

Fala mais ao radical

Que os discursos do Sr.

Quintiliano ou Mirabeau.”

Terrível mal faz à saúde

A nossa Terra, não te iludas;

Tudo que cresce belo e forte,

Aqui, caminha para a morte.

Serão espectros da loucura,

Que vão subindo nas alturas,

Calados, para engravidar

Com sêmen venenoso o ar?

Flores-meninas que, tão logo

Se desabrocham para o sol

Apaixonado, são colhidas,

Por lâmina cruel, da vida.

Heróis, montados no alazão,

Sucumbem a tiros de canhão;

Assanham-se pela coroa

De louro os sapos na lagoa.

Do que brilhava com orgulho

Hoje nem sombra nem barulho;

Em desespero, o gênio parte

Ao meio a lira de sua arte.

Estrelas é que são espertas!

Da Terra nunca chegam perto;

Ocultas em lugar seguro,

Brilham incólumes no escuro.

Felicidade e calmaria

Elas jamais arriscariam,

Para compartilhar conosco

Miséria e todo esse desgosto –”

Pra qualquer lugar do mundo

Que fores, no âmago profundo,

Jaz meu espírito zelota,

Em sonhos, dando cambalhota.

Escutas esta melodia?

Ele é quem toca! – E, de alegria,

Uma pulguinha, em teu decote,

Rebola e dá muito pinote.”

A FLOR DE LÓTUS

Sim, nós dois somos deveras

Um casal muito esquisito;

A mulher é ruim das pernas,

Seu amante é paralítico.

Uma gata que lamenta,

Um doente pra cachorro;

Assim pelo que aparenta

Ambos têm juízo torto.

Ela pôs em sua cabeça

Que é uma flor nenúfar-branca;

Pálido, seu homem pensa

Ser lunífera carranca.

Nas idéias se contentam,

Mas em tudo o que se apraz

Entre a alma e a vestimenta

Vão ficando para trás!

No luar, a flor de lótus

Desabrocha – mas que pena –

Ao invés de um jorro forte

E vital, dão-lhe um poema!”

Sim, temo que te prejudique,

Minha criança delicada,

Tu disputares a largada

Do Grande Prêmio de Afrodite.

Concordo que seja melhor

Tu escolheres um sujeito

Doente para amante, feito

Eu que somente inspiro dó.”

* * *

Depois de ter desferido os golpes mais mortais no significado da poesia romântica na Alemanha, de novo penetrou em mim uma nostalgia infinita pela flor azul na terra encantada do romantismo, e agarrei o alaúde enfeitiçado e cantei uma canção, na qual me entreguei a todos os amáveis exageros, a toda enluarada embriaguez, a toda florescente loucura de rouxinol que tanto amei outrora. Eu sei, foi <o último canto silvestre livre do romantismo>, e fui seu último poeta: comigo se encerra a velha escola lírica dos alemães, enquanto, ao mesmo tempo, a nova escola, a poesia moderna alemã, era por mim inaugurada. Essa dupla relevância há de me ser reconhecida pelos historiadores literários da Alemanha.

Confissões, 1854.”

POEMA-SÍNTESE

No sonho de uma noite de verão,

Onde, ao luar, em branca decadência,

Viam-se os restos – a recordação

Dos tempos de esplendor da Renascença,

(…)

O tempo – ai! – a sífilis pior –

Roubou-lhes a elegância do nariz.

Deitado num sarcófago de mármore,

Intacto, a destacar-se entre as ruínas,

Vê-se, não menos íntegro, o cadáver

De um homem com feições alexandrinas –

(…)

Todo o fulgor do Olimpo em uma leva

De deuses, na tertúlia costumeira;

E, próximo, o casal Adão e Eva –

Pudicos, com folhinhas de figueira.

Ali se via Tróia incendiada,

Helena, Páris e também Heitor;

Judite e Holofernes (sem a espada),

Aarão junto a Moisés, Libertador.

(…)

Ao lado, vinha o burro de Balaão

(A besta que falava maravilhas),

Também se via a prova de Abraão,

E Lot embriagado pelas filhas.

Dava pra ver a dança de Herodias

E a fronte do Batista na bandeja;

O inferno, o Demo e, bem nas cercanias,

A <Pedra> que sustenta a Santa Igreja.

Viam-se ali, talhados com buril,

As artimanhas do deus Jove, o tal

Que como cisne a Leda seduziu,

E a Dânae, como chuva de metal.

Diana, junto às ninfas, no mister

Da caça, e cães dilacerando o intruso;

Hércules, travestido de mulher,

Trabalha com a roca, lãs e o fuso.

Não longe, na montanha do Sinai,

Vê-se Israel entre os rebanhos seus;

No templo, o Deus menino é que se sai

Melhor ao discutir com fariseus.

Contrários justapostos numa pedra:

Da Hélade, o prazer; e da Judéia,

A idéia-Deus! E os dois a hera enreda

Nos arabescos da verdosa teia.

Sublime! Enquanto olhava com espanto

O monumento, em sonho, me dei conta

Que o morto, no sarcófago, era um tanto

Familiar – sou eu que ali desponta!

E em frente ao túmulo, deu na veneta

De enraizar-se flor muito esquisita

(Pétalas cor de enxofre e violeta)

Que de um amor indômito palpita.

O povo a nomeou flor da paixão,

E crê que lá no Gólgota nasceu,

Quando morreu na cruz, pra salvação

Do mundo, o filho único de Deus.

Dizem que a planta dá um testemunho

De sangue, e aquela ferramentaria,

Que sói o algoz usar de próprio punho,

No cálice da flor se enxergaria.

Sim, todos os petrechos da Paixão

Estavam lá – a sala de tortura

Chibata, espinhos pra coroação,

Martelo, pregos e a madeira dura.

A flor cresceu defronte ao mausoléu,

E sobre o meu cadáver se recurva –

Calada, me envolveu no escuro véu,

Me beija, e chora feito uma viúva.

(…)

Não nos falamos, mas meu coração

Ouviu o que calaste – para o amor,

Silêncio é um puro e vívido botão;

Na fala, a língua fica sem pudor.

Ah, como o tal silêncio é linguarudo!

E nada de metáfora gongórica [afetada]

Sem folhas de figueira, ele diz tudo,

Sem métrica e figuras de retórica.

Diálogo insonoro! E quem diria

Que, nesse lero-lero silencioso,

As horas se entretêm na fantasia

Urdida em fios de arrepio e gozo?

O que falamos? Que pergunta estéril!

No escuro, o que discursa um pirilampo?

O riacho, o que murmura sempre sério?

O que sussurra a brisa pelo campo?

Pepitas, o que falam na batéia?

Acaso exala a rosa algum assunto?

Assim, não se pergunte o que proseia,

Ao plenilúnio, a flor com seu defunto!

(…)

Na pedra, assombra a antiga briga hirsuta

De crenças, entre soco e pontapés? –

Agreste, o grito do deus Pã disputa

A láurea contra a Bíblia de Moisés.

A luta não tem fim, pois, na verdade,

O vero odeia o belo e, mais ou menos,

Sempre estará cindida a humanidade

Em dois partidos – bárbaros e helenos.

Mas como os termos de baixo calão

Se esgotam antes do que os desatinos,

Zurrou sozinho o burro de Balaão,

Sobrepujando os santos e divinos!

Ó, como dói – i, ó! – i, ó! – o ouvido!

Quase me deixa doido a horrível grei

De ornejos desse bicho empedernido –

Por fim, soltei um grito – e despertei.”

* * *

ESBOÇOS DE UMA BIOGRAFIA

(*) “Os cerca de 200 judeus de Düsseldorf gozavam o privilégio de viver numa das poucas cidades alemãs onde não eram confinados em gueto. Através da ocupação francesa, seriam ainda beneficiados com a emancipação – anulada, no entanto, quando o Ducado de Berg passou à jurisdição da Prússia, em 1815.”

(*) “Freqüentaria em seguida o liceu preparatório para o renomado Ginásio de Düsseldorf – com muitos clérigos franceses no corpo docente –, onde veio a estudar de 1810 a 1814, aprendendo francês com o severo abade Jean Baptiste Daulnoy [talvez venha daí sua obsessão pela <cabeça do Batista>!], cujas aulas de métrica e prosódia o deixariam para sempre traumatizado:

<Negou-me qualquer sentido para a poesia, e me chamava de bárbaro da Floresta de Teutoburgo. […] Era um refinamento de crueldade que ultrapassava até as torturas da Paixão do Messias, e que nem mesmo ele teria tolerado impassível. Deus me perdoe – eu praguejei contra Deus, contra o mundo, contra os opressores estrangeiros que queriam nos impingir a sua métrica, e por pouco não me tornei um devorador de franceses. Eu teria morrido pela França, mas fazer versos em francês nunca mais!>

Betty Heine, imaginando para o filho uma carreira de grande financista, na esteira dos Rothschild de Frankfurt, planejava seus estudos meticulosamente, fazendo-o aprender <outros idiomas, especialmente inglês, geografia, contabilidade> e até filosofia kantiana, o que lhe rendeu uma repressão do pai:

<Tua mãe te faz estudar Filosofia com o reitor Schallmeyer. Isso é coisa dela. Eu, de minha parte, não gosto de Filosofia, pois é mera superstição, e sou um comerciante, preciso de minha cabeça para os negócios. Podes filosofar o quanto quiseres, mas peço que não fales em público aquilo que pensas, pois irias me prejudicar os negócios, caso meus clientes soubessem que tenho um filho que não crê em Deus; os judeus, principalmente, não comprariam mais velveteens de mim, e são pessoas honestas, pagam pontualmente e também têm o direito de manter a religião. Sou teu pai e, portanto, mais velho do que tu, e mais experiente; assim deves crer em mim quando digo que o ateísmo é um grande pecado.>

(*) “o bloqueio marítimo contra a Inglaterra prejudicou seriamente os negócios do pai Samson Heine. Antes mesmo de receber o certificado de conclusão do colégio, Harry foi enviado à Escola Comercial de Vahrenkampf e, em seguida, a Frankfurt, para ingressar na atividade mercantil. Não tendo, contudo, despertado o interesse do primeiro empregador, os pais resolveram confiá-lo ao mais bem-sucedido membro da família, o banqueiro Salomon Heine, em Hamburgo.” “Após a derrota definitiva de Bonaparte em Waterloo, a Santa Aliança entre as monarquias da Rússia, Áustria e Prússia, sob a regência do príncipe von Metternich, blindava o continente contra possíveis rasgos liberais. No Congresso de Viena, em 1815, havia sido criada a Confederação Alemã, composta por 39 Estados, sob a hegemonia dos impérios austríaco e prussiano. § Salomon Heine não custou a perceber a inaptidão do sobrinho para os negócios.”

(*) “Como se não bastasse a inépcia empresarial, Harry ainda inventou de se apaixonar pela prima Amália – um amor não-correspondido, mas que estimulou o tio a bancar-lhe o estudo de Direito para bem longe do lugar. [!] Em setembro de 1819, dirigiu-se a Bonn, onde deu início a um tumultuado período universitário, que incluiu a Universidade de Göttingen – onde envolveu-se num duelo, acabando suspenso por um semestre e expulso da cidade – e a Universidade de Berlim.”

(*) “O ano de 1819 foi especialmente traumático na vida de Heine: seu pai entrou em bancarrota e a Alemanha foi varrida pela primeira onda de violência antissemita da Era Moderna – as <Arruaças Hep! Hep!> –, que, iniciadas em Würzburg por estudantes e artesãos, se espalharam rapidamente pela Confederação Germânica, atingindo a Holanda, Dinamarca e Finlândia. [nunca a Suíça!]

(*) “O movimento romântico, em que pesem as exceções, descambou para a nostalgia medieval e o reacionarismo místico. Friedrich von Schlegel, um dos mais arrojados e criativos do grupo de Iena, converteu-se ao catolicismo em 1808, mudando-se para Viena, onde passou a redigir memorandos para o príncipe von Metternich. (…) E ainda que o septuagenário Goethe surpreendesse com o erotismo de seu Divã Ocidento-oriental, era todavia, alvo crescente do moralismo biedermeier e dos ataques das jovens gerações, ressentidas com seu alheamento político.” TRISTE FIM, E NADA DE QUARESMA.

(*) “Freqüentou o curso Filosofia da História do Mundo, de Hegel, o mais influente pensador da época, com quem teria contato pessoal; instruiu-se da Antiguidade Clássica com o renomado filólogo Friedrich August Wolf, e assistiu às aulas do jovem lingüista Franz Bopp sobre a poesia indiana, tão em voga nessa época.”

(*) “No ano seguinte, recebeu finalmente o título de Doctor Juris, e tomou uma decisão da qual logo se arrependeria: tornar-se cristão no intuito de ampliar seu leque de opções profissionais. Foi batizado por um pastor evangélico em 28 de junho de 1825, recebendo o nome de Christian Johann Heinrich Heine, nome que jamais divulgou – nem sequer parcialmente – ou permitiu que publicassem, continuando a assinar somente <H. Heine>. O <bilhete de entrada na cultura européia>, como definiu a certidão de batismo, mostrou-se- inútil. Em carta a Moses Moser, desabafou:

<Agora sou odiado por cristãos e judeus. Muito me arrependo de ter me batizado; não vejo no que isso me beneficiou; pelo contrário, desde então só tenho azar – Mas cala-te, és demasiadamente esclarecido para não sorrires disso.>

(*) “Publicado em 1827, o Livro das Canções levaria, no entanto, alguns anos para atingir a enorme popularidade que faria Walter Benjamin considerá-lo um dos 3 últimos livros de poesia a ter impacto no Ocidente, ao lado do Ossian (1765), de MacPherson, e das Flores do Mal (1857), de Baudelaire. Um êxito ainda mais abrangente devido às melodias de Schubert, Schumann, Mendelsohn, Brahms, Grieg, Hugo Wolf, Silcher e tantos outros, que fizeram de Heine um capítulo à parte da história da música: estima-se em cerca de 10 mil as composições feitas a partir de seus poemas, extraídos principalmente da sua primeira e mais famosa coletânea; somente o <Du bist wie eine Blume> viria a ser musicado 451 vezes.” “A capital conservadora e católica Baviera não era o local mais adequado para um judeu com a pecha de jacobino e ateu. Ainda assim, Heine alimentava a esperança de ser nomeado professor extraordinário na Universidade de Munique, por intermédio de seu conterrâneo Eduard von Schenk, então ministro da Cultura, no governo do rei Ludwig I. Em Munique, ele receberia a visita de um jovem admirador, o desconhecido Robert Schumann, então com 18 anos, que mais tarde iria musicar 46 de seus poemas, destacando-se especialmente no ciclo Dichterliebe Op. 48, sobre 16 poemas do <Intermezzo Lírico>.”

(*) “Este, já informado de que não seria nomeado professor em Munique, e interpretando a afronta como parte da conspiração católico-conservadora que abortou sua carreira acadêmica, respondeu, em <Os Banhos de Lucca>, com uma desmontagem arrasadora da poesia e caráter de seu oponente, fazendo ainda alusões – o que ultrapassava em muito as raias do tolerável na época – à homossexualidade de Platen. O escândalo foi gigantesco!

<Depois de uma batalha eu sou a placidez em pessoa, como Napoleão, que sempre se comovia quando, depois da vitória, cavalgava pelo campo de batalha. O pobre Platen! C’est la guerre! Não valia nenhum torneio de zombarias, mas sim a guerra de destruição em massa [isso já existia?]; e apesar de toda a ponderação ainda não posso vislumbrar as conseqüências do meu livro.>

E estas não tardaram, desfavoráveis a ambos. O conde von Platen, coberto de vergonha, buscou refúgio na Itália, onde, em 1835, viria a falecer envenenado numa desastrada automedicação, após escapar a uma epidemia de cólera em Nápoles, onde havia se radicado, inspirando mais tarde o personagem Gustav von Aschenbach, da novela Morte em Veneza de Thomas Mann – escritor, aliás, que admirava os dois poetas. Heine, por sua vez, perdeu vários amigos na polêmica, vendo se fecharem as últimas portas que lhe restavam na Alemanha, o que apressaria a sua ida para a França.”

Em Paris, freqüentou a casa do poderoso barão James de Rothschild, banqueiro que estabilizou as finanças do governo de Luís Filipe, e inspirou a célebre frase de Heine: <Pois o Dinheiro é o Deus do nosso tempo e Rothschild é seu profeta>.”

(*) “No meio musical, conviveu, entre outros, com Rossini, Franz Liszt, Giacomo Meyerbeer, Hector Berlioz e Frédéric Chopin – a quem chamou de <poeta do som>. Em Paris, daria acolhida ao jovem Richard Wagner, que se inspirou em obras suas para escrever o argumento de duas de suas óperas – O Navio Fantasma e Tannhäuser –, uma dívida que fez questão de omitir, quando já era o autor declarado do libelo O Judaísmo na Música, publicado anonimamente em 1850, onde afirmava, entre outras, que o judeu não é capaz, <quer por sua aparência externa, quer por sua linguagem, e muito menos por sua canção, de se comunicar artisticamente conosco>.”

Na arte eu sou supernaturalista. Creio que o artista não pode descobrir todos os seus tipos na natureza, mas que os mais notáveis lhe são revelados, por assim dizer, na alma, como simbólica inata de idéias inatas. Um esteta recente (Carl Friedrich von Rumohr), que escreveu Investigações Italianas, tentou fazer o velho princípio da Imitação da Natureza de novo plausível, ao afirmar: o artista plástico deveria encontrar seus tipos na natureza. Esse esteta, ao erigir uma tal premissa maior para as artes plásticas, não pensou em uma das mais primordiais, ou seja, a arquitetura, cujos tipos imaginamos retroativamente nas ramagens da floresta e nas grutas do penhasco, mas que decerto não encontramos lá primeiramente. Não achavam-se na natureza exterior, mas na alma humana.”

André Breton, Manifesto Surrealista

(*) “Não era o único a escrever sobre os acontecimentos políticos e sociais da França para o público alemão. A dura repressão que se seguiu às revoluções malogradas nos territórios da Confederação Germânica, Itália e Polônia, principalmente, levou milhares de refugiados políticos a Paris, contribuindo para o incremento populacional da cidade, que logo atingiria a cifra de 900 mil habitantes. A porcentagem de alemães não era inexpressiva: calcula-se que pelo menos 60 mil vivessem na metrópole francesa, muitos dos quais conspirando por uma revolução republicana em seu país de origem.”

(*) “Heine jamais revidou publicamente as agressões, o que só fez aumentar o rancor de seu adversário. Após a morte de Börne, em 1837, o poeta dedicou um livro inteiro para um balanço final, onde esmiuçou, com a irreverência costumeira, os pontos de vista, fazendo uma defesa enfática da autonomia da arte, e onde lançou a sua famosa distinção dos homens em <helenos> e <nazarenos>, que seria mais tarde aproveitada por Friedrich Nietzsche.”

(*) “O acerto de contas com Strauss, ocorrido em Paris, no dia 7 de setembro de 1841, não teria, porém, sérias conseqüências para Heine: saiu-se com um tiro de raspão na coxa e casado na igreja católica de Saint-Sulpice com Augustine Crescence Mirat, a bela jovem grisette [jovem sedutora de classe baixa] que ele havia conhecido na Passage de Panoramas, em 1834. Vivia com ela, desde então, num relacionamento ardente e conturbado que ele resolveu oficializar, uma semana antes do duelo, para assegurá-la financeiramente, na eventualidade de sua morte.” “Crescence era uma mulher simplória, temperamental, gastadeira e sem a menor vocação doméstica – um <Vesúvio [desastre] do lar>, segundo Heine. O poeta, que não suportava seu nome verdadeiro, a chamava de Mathilde, para os alemães, e Juliette, para os franceses. Ela não desconfiava da ascendência judaica do companheiro e nem tinha noção exata de sua fama literária, o que era motivo de riso por parte dos amigos de Heine, mas muito o enternecia: <Ela me ama da forma mais pessoal, e a crítica não tem nada a ver com isso!>. Seu inseparável bichinho de estimação, o papagaio Cocotte, era alvo constante do ciúme e irritação de Heine, que, sofrendo de hipersensibilidade auditiva, chegou a atentar contra a vida do pássaro, para em seguida lhe comprar outro. Mathilde sobreviveria ao marido em 27 anos, vindo a falecer, sem nunca ter casado novamente, em 1883, no dia da morte do marido, e rodeada por 60 papagaios.”

Sobre Madame de Staël, De l’Allemagne (1813): “Esse livro sempre me causou impressão um tanto cômica quanto irritante. Aí vejo uma mulher apaixonada com toda a sua turbulência, vejo como esse furacão de saias assola nossa tranqüila Alemanha, como em todo lugar exclama encantada: que silêncio refrescante me envolve aqui! Ela estava queimando na França e veio à Alemanha para se refrescar entre nós. O hálito casto de nossos poetas fez-lhe tão bem nos seios ardentes e ensolarados! Observou nossos filósofos como se fossem diferentes sabores de sorvete, e lambeu Kant como um sorvete de baunilha, Fichte como um de pistache, Schelling como um de arlequim! […] A boa dama viu em nós apenas o que queria ver: uma enevoada terra de espíritos, onde homens incorpóreos, pura virtude, vagueiam por campos nevados, divagando sobre ética e metafísica!”

(*) “No ano seguinte, publicaria na mesma revista, <Da Alemanha desde Lutero>, oferecendo um panorama do pensamento alemão até Hegel, no que é, provavelmente, a mais saborosa e instigante obra de vulgarização filosófica já escrita.” “O momento era mais do que oportuno para um balanço geral: Goethe, o Júpiter das Letras alemãs, havia morrido em março de 1832, pedindo <mais luz!>; e <o grande Hegel, o maior filósofo que a Alemanha produziu desde Leibniz>, 3 meses antes, numa epidemia de cólera, suspirando desconsolado – <só um homem me entendeu, e mesmo ele, não>.

Heine, que havia previsto com alguns anos de antecedência o fim de um período das artes, reafirmou sua posição, partindo para um violento ataque contra a Escola Romântica de seu antigo mestre August von Schlegel. Ele, que havia se arrependido do batismo em 1825, declarava-se então – tal como o faria mais tarde o judeu Ossip Mandelstam – programaticamente <protestante>, frisando que a Revolução era <a grande filha da Reforma>. Numa época em que o gosto por temas medievais havia tornado chic a conversão ao catolicismo, e até impulsionava tentativas de se reverter a secularização do Estado francês, Heine apontava as diferenças fundamentais por trás da atitude romântica em cada um dos lados do Reno:

<A maioria olhou para os túmulos do passado tão-só no intuito de escolher uma fantasia interessante para o carnaval. A moda do gótico, na França, não passou justamente de uma moda, servindo apenas para aumentar o gozo do presente. Deixava-se ondular os cabelos medievalmente compridos, e na mais furtiva observação do barbeiro de que não combinavam com a roupa, mandava-se cortá-los curtos, com todas as idéias medievais que lhe estavam atreladas. Ah! na Alemanha é diferente. Talvez porque lá a Idade Média não está, como entre vós, totalmente morta e apodrecida. A Idade Média alemã não jaz assassinada na cova, mas é reavivada de vez em quando por um fantasma perverso, e adentra em nosso meio à luz do dia, e suga a vida vermelha de nosso peito… Ah! não vedes como a Alemanha é tão pálida e triste? Especialmente a juventude alemã, que até [há] pouco tempo vibrava de entusiasmo? (…) o povo alemão é ele próprio aquele erudito doutor Fausto, é ele próprio aquele espiritualista que através do espírito compreendeu a insuficiência do espírito e clama por prazeres materiais e devolve à carne os seus direitos (…) Por pouco não me dirijo a ele [Goethe] em grego; mas quando percebi que ele compreendia o alemão, contei-lhe – em alemão – que as ameixas no caminho entre Iena e Weimar eram muito saborosas. Logo eu que durante tantas noites de inverno havia remoído o que dizer de sublime e profundo a Goethe quando o visse. E quando finalmente o vi, disse-lhe que as ameixas da Saxônia eram muito saborosas. E Goethe sorriu. Sorriu com os mesmos lábios com os quais beijara outrora Leda, Europa, Dânae, Semele e tantas outras princesas ou ninfas comuns – Les dieux s’en vont. Goethe está morto. (…) o brilho rosa na poesia de Novalis não é a cor da saúde mas da tísica (…) a incandescência púrpura nas ‘peças fantásticas’ de Hoffmann não é a chama do gênio mas da febre (…) a poesia não seria talvez uma doença dos homens, como a pérola, que no fundo não passa da matéria mórbida da qual a pobre ostra padece?>

Nós medimos a terra, pesamos as forças da natureza, calculamos os meios da indústria, e eis que descobrimos que este mundo é grande o bastante; que ele oferece a todos espaço suficiente para cada um construir a cabana de sua felicidade; que este mundo pode alimentar a todos nós adequadamente, se todos trabalharmos, e uns não quiserem viver às custas dos outros; e que não precisamos encaminhar as classes mais populares e pobres para o Céu.”

Que os saint-simonistas se retirem talvez seja muito útil à doutrina. Ela cairá em mãos mais sábias. Especialmente a parte política, a teoria da propriedade, que haverá de ser melhor (sic) elaborada. No que me toca, eu só me interesso mesmo pelas idéias religiosas, que só precisam ser pronunciadas para mais cedo ou mais tarde entrarem na vida.”

<Grandes filósofos alemães, que por acaso lancem o olhar sobre estas folhas, irão dar de ombros elegantemente acerca da forma miserável de tudo o que dou a público aqui. Mas queiram eles levar em conta que o pouco que digo é completamente claro e inteligível, enquanto as suas obras, ainda que tão fundamentadas, incomensuravelmente fundamentadas, tão profundas, estupendamente profundas, são incompreensíveis. Do que vale ao povo o celeiro para o qual não tem a chave? O povo está faminto de saber, e agradece o pedacinho de pão do espírito que partilho com ele honestamente.>

A dissertação trouxe algumas das passagens mais brilhantes do humor heineano, sem ofuscar, todavia, o embasamento teórico e a pertinência de seus argumentos acerca da igreja católica, Reforma, Lutero, Descartes, Locke, Leibniz, Spinoza, Molière, Voltaire, Lessing, Kant, Goethe, Fichte, Schelling e Hegel; idéias que são ainda capazes não só de instruir e entreter o leitor contemporâneo como também de surprendê-lo (sic) através de sua agudeza e originalidade, fazendo-o lamentar que o autor não tenha vivido para discorrer sobre Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein, Adorno e Walter Benjamin:

<Lutero não compreendeu que a idéia do cristianismo, a negação da sensualidade, era por demais contrária à natureza humana para ser totalmente realizável na vida; não compreendeu que o catolicismo era, por assim dizer, uma concordata entre Deus e o Diabo, ou seja, entre espírito e matéria, através da qual a monarquia absoluta do espírito era proclamada em teoria, mas a matéria colocada em posição de exercer na prática todos os seus direitos anulados.>

Lutero criou a língua alemã. Isso aconteceu quando traduziu a Bíblia.”

Purusha irá de novo se casar com Prakriti. Foi através de sua violenta separação, tão engenhosamente narrada no mito indiano, que surgiu o grande dilaceramento do mundo, o mal.”

Não lutamos pelos direitos humanos do povo, mas pelos direitos divinos do homem. Nisso, e ainda em algumas outras coisas, nos distinguimos dos homens da Revolução. (…) Reivindicais trajes simples, costumes abnegados e prazeres sem tempero; nós, pelo contrário, reivindicamos néctar e ambrosia, mantos púrpuras (sic), perfumes caros, volúpia e esplendor, dança sorridente de ninfas, música e comédias.”

No momento em que uma religião requer ajuda da filosofia, seu declínio é inevitável. Ela busca defender-se e vai tagarelando cada vez mais fundo na ruína. A religião, como todo absolutismo, não deve se justificar. Prometeu é acorrentado no rochedo por uma violência calada.”

Ainda que Immanuel Kant, esse grande destruidor no reino dos pensamentos, tenha superado em muito a Maximilian Robespierre no terrorismo, ele compartilha algumas semelhanças com este, o que nos obriga a uma comparação dos dois homens. Primeiro, encontramos em ambos aquela honestidade inclemente, cortante, sóbria e sem poesia. (…) No mais alto grau, porém, mostra-se em ambos o tipo pequeno-burguês – a natureza os destinara a pesar café e açúcar, mas o destino quis que pesassem outras coisas, e colocou, na balança de um, um rei, e, na do outro, um Deus… E eles deram o peso correto!”

Devido à secura de suas abstrações, a filosofia kantiana foi muito prejudicial às belas-artes e letras. Por sorte, ela não se intrometeu na gastronomia.”

É uma circunstância característica, que a filosofia de Fichte tenha sofrido sempre com a sátira. Vi certa vez uma caricatura que representava um ganso fichteano. Ele tinha um fígado tão grande que já não sabia mais se ele era ganso ou fígado. Na barriga estava escrito: Eu = Eu.”

A filosofia alemã é um assunto importante e que diz respeito a toda a humanidade, e só as gerações futuras poderão decidir se haveremos de ser criticados ou louvados por termos elaborado nossa filosofia primeiro do que nossa Revolução. Parece-me que um povo metódico como o nosso precisava começar pela Reforma, e só a partir daí ocupar-se com a filosofia; e somente depois da consumação desta última, passar para a Revolução política. [grande falha!] Acho a ordem bastante razoável. As cabeças, que a filosofia usou para raciocinar, a Revolução poderá depois decepar para o que bem entender. Mas a filosofia jamais poderia ter, se a Revolução tivesse precedido, usado as cabeças que esta decepou.”

O pensamento vai à frente da ação, como o raio do trovão. O trovão alemão é sem dúvida alemão e não muito ágil, e vem se formando devagar; mas ele virá, e quando vós o escutardes troar, como nunca antes troou na história do mundo, sabereis então que ele finalmente atingiu o seu alvo. […] Um drama há de ser encenado na Alemanha que fará a Revolução Francesa parecer um idílio inofensivo.”

<Eu recomendo-lhe essa obra porque contém a quintessência das intenções e esperanças da bagagem com a qual nos ocupamos. Ao mesmo tempo, o produto heineano é uma obra-prima em relação ao estilo e descrição. Heine é a grande cabeça entre os conspiradores.>

Clemens von Metternich

(…) As medidas, contudo, não deixariam de afetar financeiramente o poeta, que, vivendo com uma coquete nada parcimoniosa, e com problemas de saúde cada vez mais constantes, se viu forçado a recorrer à ajuda <familionária> do tio, para usarmos aqui uma de suas palavras-valise; aquela que Fraud dissecou em O chiste e sua relação com o inconsciente. Graças à intercessão de seu irmão Maximilian e do compositor Giacomo Meyerbeer, passou a receber uma pensão de Salomon Heine em 1839.”

Tranqüilizai-vos, jamais entregarei o Reino aos franceses, pelo simples motivo de que o Reno me pertence.”

(*) “Em maio de 1842, a cidade de Hamburgo foi devastada durante 4 dias por um terrível incêndio que destruiu 1/3 do centro antigo, cerca de 1200 prédios, deixando mais de 20 mil pessoas desabrigadas. A catástrofe consumiu todos os documentos relativos à infância e adolescência de Heine (…) A viagem transcorreu sem incidentes, apesar das seqüelas que a doença já lhe trouxera: estava cego de um olho e com dificuldades para andar.”

(*) “O poeta não errou em seu prognóstico: o épico-satírico Alemanha. Um Conto de Inverno é hoje considerado o ápice da poesia política alemã da primeira metade do séc. XIX.”

De tudo, em pessoas, que aqui eu deixo, a herança heineana é a que mais me aflige. Como gostaria de colocá-lo em minha bagagem.”

Marx

(*) “Atribulações bem maiores vieram com a morte de Salomon Heine, naquele mesmo ano: o patriarca partiu sem mencionar em testamento a pensão do sobrinho. As discussões de Heine com o primo Carl Heine azedaram-se depressa, devido às condições inaceitáveis que este impôs para prosseguir no pagamento. O compositor Meyerbeer foi mais uma vez chamado a interceder, e até o jovem advogado Ferdinand Lassalle, futuro fundador da Social-Democracia alemã, atuaria nessa controvérsia familiar que durou até o início de 1847, contribuindo bastante para piorar o já debilitado estado de saúde do poeta.

Muito se tem discutido sobre a natureza da enfermidade que começou a atormentá-lo desde a juventude. O diagnóstico da época, e que o poeta transformaria num expressivo topos poético em sua obra tardia, apontou inequìvocamente para a sífilis. Especialistas posteriores aventaram, sem que nunca se descartasse a doença venérea, outras hipóteses, como tuberculose com subseqüente meningoencefalite, esclerose múltipla, polioencefalite crônica, porfiria aguda intermitente, e até envenenamento por chumbo.” Curioso paralelo com o prontuário de Nie.

O grande Aristófanes do universo, o Aristófanes do Céu, quis demonstrar com toda clareza ao pequeno terráqueo chamado de Aristófanes alemão, como os mais divertidos sarcasmos deste não passam de gracejos sofríveis em comparação com os seus, e o quão deploràvelmente atrás devo ficar, no humor, na zombaria colossal.”

O Deus dileto, que me tortura tão cruel[mente], hei de denunciar à Sociedade Protetora dos Animais.”

(*) “Prostrado numa pilha de colchões, forçado a levantar com o dedo a pálpebra do único olho que lhe restara, recebendo doses cada vez mais fortes de morfina para suportar as dores, continuou a trabalhar incansàvelmente, com o auxílio de secretários, revisando traduções de suas obras, escrevendo cartas, recebendo visitas do mundo inteiro, e, principalmente, compondo os poemas que integrariam sua terceira e mais densa coletânea de poesia – Romanzero –, publicada em 1851. Dividida em 3 livros – <Histórias>, <Lamentações> e <Melodias Hebraicas> –, a obra reunia poemas predominantemente longos, onde a temática judaica se sobressaía ao lado de uma variedade impressionante de cenários, períodos e personagens históricos – o Egito antigo, a Pérsia clássica, a Índia dos marajás, a Paris das grisettes, Hernan Cortez, Montezuma, a Alemanha medieval, Ricardo Coração de Leão, a Espanha da Reconquista, os poetas Firdusi e Jaufre Rudels, exilados poloneses etc.”

(*) “As notícias de que o poeta estaria à beira da morte e as especulações em torno de sua <conversão> ajudaram a alavancar a vendagem do livro, que em apenas 2 meses esgotou 4 edições.”

Não estou cego, infelizmente, como os pais costumam estar para com seus amados pimpolhos. Conheço muito bem os seus defeitos. Meus novos poemas não têm a perfeição artística, nem a intelectualidade interior, nem a força ondulante de meus poemas antigos, mas as matérias são mais atrativas, mais coloridas, e talvez o tratamento também os faça mais acessíveis às multidões, o que poderá proporcionar-lhes sucesso e popularidade duradoura.”

(*) “Em seu último ano de vida, Heine ainda arranjou tempo e <espírito> para uma paixão platônica por uma jovem de 20 anos, envolta numa névoa de mistificações e pseudônimos, que intrigariam os pesquisadores por muito tempo.

Camille Selden, aliás Elise Krinitz, aliás Johanna Christiana Müller, teria se apresentado com o nome de Margareth, em 19 de junho de 1855, para entregar uma encomenda do compositor vienense Johann von Püttlingen, ou, conforme outra versão mais prosaica, atendendo a um anúncio de jornal para leitora e secretária. Ficou imortalizada na literatura com o carinhoso apelido que Heine lhe deu – Mouche (mosca). Mathilde parece ter tolerado o capricho irrealizável de seu esposo moribundo, continuando a merecer todas as suas juras de amor e preocupações.

Mas foi a Mouche que Heine dedicou seu derradeiro poema: um feérico e exuberante retrospecto de sua vida, que talvez leve um leitor de Machado de Assis a suspeitar se o poema não teria inspirado a cena inicial de Memórias Póstumas de Brás Cubas.”

(*) “Nos Estados Unidos – somente lá –, circula a informação bem-intencionada de que o nome original do poeta seria Chaim ben Shimshon. Não há qualquer evidência histórica que a comprove nem indício qualquer de sua plausibilidade.

Já os nazistas, não podendo dispensar <A Lorelei> de um poeta judeu-alemão, propagaram falsamente que o seu verdadeiro nome seria Chaim Bückerburg. (…) O sobrenome <Heine> não passaria de uma transliteração para o alemão da palavra hebraica chajim = vida.

Harry, Heinrich e Henri, por sua vez, são variações de um mesmo nome germânico – Heimrich – que significa: Senhor do Lar.

Se tivesse nascido num país de língua portuguesa, Heine poderia muito bem ter se chamado Henrique Vidal (ou Vital).”

(*) “Em suas Memórias inacabadas, o poeta ironizou o fato de os franceses nunca terem conseguido pronunciar seu nome corretamente. O <Heinrich> (leia-se <RÁIN-[rrr]rirrr>) foi imediatamente substituído por <Henri> (<an-RÍ>); mas o sobrenome <Heine> (<RÁI-nê>), continuaria um problema que nem mesmo um acento na primeira sílaba, adotado nos cartões de visita, pôde resolver: <Para a maioria meu nome é M. Enri Enn, que muitos aglutinam num Enrienne; alguns me chamavam Monsieur Un rien>.

Sr. Um nada.”

Passiflora incarnata.

GLOSSÁRIO:

(PT) bornal: saco com suprimentos; cu; puta.

duft: fragrância

erzürnen: enfurecer

falten: dobrar

gähnen: bocejar

Haifisch: tubarão

Heer: exército, tropa

Himmelszelt: firmamento, abóbada celeste

hopsen: saltitar

Kiefer: presas

klapperdürre: só pele-e-osso, acabado

klirren: batida surda do ferro

Leichengeruch: odor cadavérico

lindern: aliviar

schlucken: tentar engolir

seufzend: aos suspiros, lamurioso

Stahlzeug: material feito de aço

Sterblichkeit: mortalidade

stramm: firme, justo, tenso

Sünder: pecador, desgraçado = SINNER

Ungetüm: monstro

verderben: corromper

verschlungen: complicado

ANTI-DÜHRING – Engels

PREFÁCIO À 1ª EDIÇÃO

O presente trabalho não é, absolutamente, fruto de um ‘impulso interior’. Muito pelo contrário. Quando, há 3 anos, o Senhor Dühring surgia, cheio de rompante, apresentando-se, ao mesmo tempo, como adepto e reformador do socialismo, disposto a trazer o século à luta, alguns amigos da Alemanha expressaram várias vezes o desejo de que eu fizesse, no órgão do partido social-democrata, então o Volksstaat, um estudo crítico da nova doutrina socialista.”

Havia mesmo pessoas que já se julgavam no dever de difundir a doutrina entre os trabalhadores. Finalmente, o Senhor Dühring e seus correligionários punham a seu serviço todos os artifícios da propaganda e da intriga para obrigar o Volksstaat a tomar posição definitiva em face da nova doutrina, que entrava em cena com tão consideráveis pretensões.”

Por outro lado, o Senhor Dühring, como ‘criador de sistema’, não é uma aparição isolada na Alemanha contemporânea. De algum tempo a esta parte, os sistemas de cosmogonia, de filosofia da natureza em geral, de política, economia, etc., proliferam na Alemanha, da noite para o dia, às dúzias, como os cogumelos. Qualquer doutor em filosofia e até mesmo o simples estudante não mais se contentam senão com um sistema integral. Da mesma forma que, no Estado moderno, todos os cidadãos se supõem aptos para julgar as questões em que são chamados a dar voto; da mesma maneira pela qual, em economia política, se considera o comprador com conhecimentos profundos sobre todas as coisas que adquire para o seu sustento; da mesma forma se pretende proceder com respeito à ciência. A liberdade científica consistirá, assim, na possibilidade de cada qual escrever sobre ciência tudo o que nunca aprendeu, dando-o como o único método rigorosamente científico.”

É esse o mais característico e abundante produto da indústria intelectual alemã, ‘barato, sim, porém de má qualidade’, tal como outros produtos nacionais com que o país, infelizmente, não se fez representar na Exposição da Filadélfia. O próprio socialismo alemão, de algum tempo para cá, notadamente após o bom exemplo do Senhor Dühring fez, ultimamente, grandes progressos na arte do ruído de latão e exibe tal ou qual produto batizado de ciência e da qual não contém uma palavra.”

No momento de concluir este prefácio, recebo de uma livraria um anúncio redigido pelo Senhor Dühring, no qual o filósofo promete uma nova obra ‘capital’ intitulada: Novas leis básicas da química e da física nacionais. Tenho pleno conhecimento da insuficiência de meus conhecimentos em física e em química; apesar disso, porém, acredito conhecer bastante o meu caro Dühring, para adiantar, mesmo sem lhe haver lido a obra, que as leis físicas e químicas aí estabelecidas poderão competir, em confusão ou em banalidades com as leis econômicas, cosmológicas e outras que ele até agora descobriu e examinei no meu livro. Só espero que o rigômetro, instrumento construído pelo Sr. Dühring para medir as temperaturas mais baixas, sirva para medir, não temperaturas altas ou baixas, mas simplesmente a arrogante ignorância do Senhor Dühring.

Londres, 11 de junho de 1878.”

PREFÁCIO À 2ª EDIÇÃO

A necessidade de fazer-se desta obra uma 2ª edição foi para mim verdadeira surpresa. A personagem, que neste livro se critica, está hoje inteiramente esquecida. A obra em si mesma não só teve numerosos leitores, quando apareceu em fragmentos no Vorwärts de Leipzig, em 1877 e 78, como dela se tiraram, em separado e integralmente, inúmeros exemplares. Como poderá alguém interessar-se pelo que eu disse há vários anos a propósito do Senhor Dühring?

Devo-o, antes de tudo, à circunstância de que esta obra, como, aliás, quase todos os meus escritos ainda agora em circulação, foi interditada no império alemão logo após a promulgação da lei contra os socialistas. Quem quer que não estivesse preso aos hereditários preconceitos dos funcionários dos países da Santa Aliança deveria claramente prever o efeito de semelhante medida: dupla ou tripla venda para os livros interditados e manifestação de impotência por parte daqueles Senhores de Berlim, que promulgam leis cuja execução não conseguem impor. Realmente, a amabilidade do governo do império forçou-me a novas edições que não poderia satisfazer: como não tenho tempo para corrigir o texto, coisa que seria de desejar, sou obrigado a contentar-me com uma simples reimpressão.”

Assim, a crítica negativa resultou positiva; a polêmica transformou-se em exposição mais ou menos coerente do método dialético e da ideologia comunista defendida por Marx e por mim, numa série de domínios bastante vastos. Esta concepção, desde o seu aparecimento na Miséria da Filosofia de Marx e no Manifesto Comunista, tem atravessado um período de incubação de mais de 20 anos, até este momento em que, com a apresentação d’O Capital, ela alcançou regiões cada vez mais distantes, e, hoje, já fora das fronteiras da Europa, prende a atenção em todos os países em que há proletários e cientistas imparciais.”

Quanto às demais modificações, que desejaria fazer, referem-se principalmente a 2 pontos: primeiramente, à história primitiva da humanidade, assunto de que Morgan só nos deu a chave em 1877. Mas, como, em minha obra As origens da família, da propriedade privada e do Estado tive ocasião de ordenar e expor a matéria por mim reunida desde o aparecimento deste livro, bastará recorrer a esse trabalho ulterior.

Em segundo lugar, teria desejado modificar a parte relativa às ciências naturais. Nota-se ali grande descuido de exposição e há várias coisas que hoje poderiam ser expressas com maior precisão e clareza. Não me arrogando o direito de corrigir, julgo-me na obrigação de fazer esta crítica.

Marx e eu fomos, sem dúvida alguma, os únicos que salvaram da filosofia idealista alemã a dialética consciente, incluindo-a na nossa concepção materialista da natureza e da história. Mas uma concepção da história, a um tempo dialética e materialista, exige o conhecimento das matemáticas e das ciências naturais. Marx foi um consumado matemático: mas, de nossa parte, não pudemos estudar senão fragmentariamente, de quando em quando, as ciências naturais. À medida que ocupações comerciais e a minha mudança para Londres mo foram permitindo, fiz uma completa mise en mue, como diria Liebig, das matemáticas e ciências naturais, tarefa em que empreguei quase 8 anos. Estava eu em meio desse trabalho quando me ocupei do Senhor Dühring e de sua pretensa filosofia da natureza. Se, pois, nem sempre atino com a exata expressão técnica, e se, por vezes, me vejo em alguma dificuldade no domínio das ciências naturais, é naturalíssimo. Por outro lado, a consciência da própria incerteza me fez prudente: ninguém me poderá atribuir erros patentes sobre fatos então conhecidos, nem inexatidão na exposição das teorias professadas na época. A tal respeito, só surgiu um grande matemático pouco conhecido, a queixar-se, numa carta dirigida a Marx, de que eu havia criminosamente atentado contra a honra da XXX. Tratava-se, evidentemente, de que eu, ao fazer a recapitulação das matemáticas e ciências naturais, procurava convencer-me sobre uma série de pontos concretos – sobre o conjunto eu não tinha dúvidas –; de que, na natureza, se impõem, na confusão das mutações sem número, as mesmas leis dialéticas do movimento que, também na história, presidem à trama aparentemente fortuita dos acontecimentos; as mesmas leis que, formando igualmente o fio que acompanha, de começo a fim, a história da evolução realizada pelo pensamento humano, alcançam pouco a pouco a consciência do homem pensante; leis essas primeiramente desenvolvidas por Hegel, mas sob uma forma que resultou mística, a qual o nosso esforço procurou tornar acessível ao espírito, em toda a sua simplicidade e valor universal. Será escusado dizer que a velha filosofia natural – apesar das muitas coisas boas que realmente continha e dos muitos germes fecundos que encerrava(*) – não poderia contentar-nos: conforme se expõe minuciosamente neste livro, consiste-lhe o defeito na forma hegeliana de não reconhecer na natureza nenhum desenvolvimento no tempo, nenhuma ‘sucessão’, mas simplesmente uma ‘coexistência’ (Nacheinandr-Nebeinander). Tal defeito tinha razão de ser, de uma parte, no sistema hegeliano de per si, que não atribuía ao espírito seqüência de desenvolvimento histórico, e, de outro lado, no estado das ciências naturais na época. Assim, Hegel recua, neste ponto, bem para antes de Kant, que, em sua teoria da nebulosa, já punha em foco o problema das origens e cujo descobrimento do obstáculo que, segundo se supunha, as marés criavam ao movimento de rotação da Terra, anunciava já a consolidação do sistema solar. Finalmente, o problema, para mim, consistia, não em impor à natureza leis dialéticas predeterminadas, mas em descobri-las e desenvolvê-las, partindo da mesma natureza.

(*) É bem mais fácil invectivar contra a antiga filosofia da natureza, acompanhando o vulgo profano, como o faz Karl Vogt, do que apreciar sua importância histórica. Ela contém inúmeros absurdos e fantasias, mas não tantas quantas se encerram nas teorias dos naturalistas empíricos da mesma época e já se começa a perceber, desde a vulgarização da teoria da evolução, quanto encerra de bom senso e de inteligência. Assim, Haeckel reconheceu muito justamente os méritos de Treviranus e de Ocken. Este estabeleceu o postulado da biologia baseado na substância colóide primitiva (Urschleim) e sua vesícula primária (Urblaschen), coisas que depois foram chamadas protoplasma e célula. Hegel é, no que lhe concerne especialmente, de muitos pontos de vista, bem superior aos empiristas de seu tempo, que supunham haver explicado todos os fenômenos atribuindo-os a uma força – força da gravidade, força da rotação, força do contato elétrico, etc. – e, na impossibilidade dessas, a uma substância desconhecida, substância luminosa, calorífica, elétrica, etc. As substâncias imaginárias estão hoje mais ou menos abandonadas, mas o ‘charlatanismo das forças’, que Hegel combatia, reaparece como fantasma, por exemplo, no discurso pronunciado por Helmholtz em Innsbrück no ano de 1869. [Esperassem para ver o que o discípulo de Helmholtz iria provocar, hipostasiando até uma libido!] (…) Os filósofos da natureza estão, para a ciência natural conscientemente dialética, na mesma situação em que se acham os utopistas para o comunismo moderno.”

possuímos hoje mamíferos ovíparos, e, se a notícia se confirma, aves que caminham sobre 4 patas. Se a célula impôs a Virchow, há anos, a contingência de resolver a individualidade animal (conseqüentemente humana), numa federação de elementos celulares, este fato ainda mais se complica pela descoberta dos glóbulos brancos do sangue, que circulam à maneira de amebas no corpo dos animais superiores.”

Exatamente por isso, pelo fato de que vão aprendendo a utilizar os resultados de 3 milênios de história filosófica, por isso é que as ciências econômicas se estão emancipando de toda essa pretensa filosofia da natureza, estranha e superior a elas, assim como se vão também emancipando do mesquinho método especulativo, herdado do empirismo inglês.” Que pena que essa tendência não durou muito…

Londres, 23 de setembro de 1885.

INTRODUÇÃO. CAPÍTULO I. GENERALIDADES

(Vejo que Engels faz ‘divisões hegelianas’ nos capítulos do livro!)

Era a época em que, segundo a frase de Hegel, o mundo descobriu que tinha um cérebro.” “o passado merecia apenas comiseração e desprezo. O mundo, até então, havia estado envolto em trevas; para o futuro, a superstição, a injustiça, o privilégio e a opressão seriam substituídos pela verdade eterna, pela eterna justiça, pela igualdade baseada na natureza e por todos os direitos inalienáveis do homem.”

…e o Estado da razão, o contrato social de Rousseau, ajustou-se, como de fato só podia ter-se ajustado, à realidade, convertido numa república democrático-burguesa. Os grandes pensadores do século XVIII, sujeitos às mesmas leis de seus predecessores, não podiam romper os limites que sua própria época traçava.” A gente já não pode porra nenhuma: nem viver a nossa época!

Os novos pensadores descobrem que também o mundo burguês, instaurado segundo os princípios do racionalismo, é injusto e irracional, merecendo, portanto, ser desprezado como um traste inútil, da mesma forma como já o foram o feudalismo e as formas sociais que o precederam. Se, até então, a verdadeira razão e a verdadeira justiça não governaram o mundo, isso se deve a que, segundo o seu modo de ver, ninguém ainda conseguiu alcançá-las.”

O mesmo poderia ter ocorrido há 500 anos e teria sido poupada a humanidade de 500 anos de erros, de sofrimentos e de lutas. Esse modo de ver é, em suma, o de todos os socialistas ingleses e franceses e o dos primeiros socialistas alemães, sem excluir Weitling. O socialismo é a expressão da verdade, da razão e da justiça absoluta, e é suficiente descobri-lo para que se imponha ao mundo por sua própria virtude. E, como a verdade absoluta é independente do espaço, do tempo, do desenvolvimento do homem e da história, só o acaso pode decidir quando e onde se deve revelar o seu descobrimento.”

forçosamente surge um conflito entre as verdades absolutas, não restando outra solução senão a dos atritos ou fusões de umas com as outras. Era, pois, natural e inevitável, que surgisse uma espécie de socialismo eclético e, com efeito, a maior parte dos operários socialistas da França e da Inglaterra tem, nos cérebros, uma mistura pitoresca que admite, aliás, toda uma série de matizes, na qual se fundem os princípios econômicos, as expansões críticas e as representações sociais do futuro, dos diversos fundadores de seitas. Essa mescla é tanto mais fácil de ser composta quanto mais depressa os ingredientes individuais vão perdendo, no curso das discussões, seus contornos agudos e concretos, como se fossem pedras aplainadas pela corrente do rio.”

Fora do estrito campo da filosofia, os franceses souberam também criar obras mestras de dialética, como, por exemplo, O Sobrinho de Rameau, de Diderot, e o estudo de Rousseau Sobre a origem da desigualdade dos homens.”

Se submetermos à consideração especulativa a natureza ou a história humana ou a nossa própria atividade espiritual, encontrar-nos-emos, logo de início, com uma trama infinita de concatenações e de mútuas influências, onde nada permanece o que era nem como e onde existia, mas tudo se destrói, se transforma, nasce e perece. Esta intuição do mundo, primitiva, simplista, mas perfeitamente exata e congruente com a verdade das coisas, foi utilizada pelos antigos filósofos gregos e aparece expressa, claramente, pela primeira vez, em Heráclito: tudo é e não é, pois tudo flui, tudo está sujeito a um processo constante de transformação, de incessante nascer e perecer. Mas esta intuição, por ser exatamente a que reflete o caráter geral de todo o mundo dos fenômenos, não basta para explicar os elementos isolados de que se forma todo esse mundo. E esta explicação é indispensável, pois, sem ela, nem mesmo a imagem total adquirirá sentido exato. Para penetrar nesses elementos, antes de mais nada, precisamos destacá-los de seu tronco histórico ou natural e investigá-los separadamente, cada um de per si, em sua estrutura, causas e efeitos que em seu seio se produzem, etc…”

Os rudimentos das ciências naturais exatas não se desenvolveram até chegar aos gregos do período alexandrino e, muito mais tarde, na Idade Média, com os árabes. Na realidade, a autêntica ciência da natureza data somente da segunda metade do século XV e, a partir de então, não fez mais que progredir com velocidade constantemente acelerada.”

Para o metafísico, as coisas e suas imagens no pensamento, os conceitos, são objetos isolados de investigação, objetos fixos, imóveis, observados um após o outro, cada qual de per si, como algo determinado e perene. O metafísico pensa em toda uma série de antíteses desconexas: para ele, há apenas o sim e o não e, quando sai desses moldes, encontra somente uma fonte de transtornos e confusão. Para ele, uma coisa existe ou não existe. Não concebe que essa coisa seja, ao mesmo tempo, o que é uma outra coisa distinta. Ambas se excluem de modo absoluto, positiva e negativamente, causa e efeito se revestem da forma de uma antítese rígida. À primeira vista, esse método especulativo parece-nos extraordinariamente plausível, porque é o do chamado senso comum. Mas o verdadeiro senso comum, personagem bastante respeitável dentro de portas fechadas, entre as 4 paredes de sua casa, vive peripécias verdadeiramente maravilhosas quando se arrisca pelos amplos campos da investigação.”

Kant começou sua carreira de filósofo transformando o sistema solar estável e de duração eterna de Newton num processo histórico (…) Meio século mais tarde, sua teoria foi confirmada matematicamente por Laplace, e, depois de mais 50 anos, o espectroscópio demonstrou a existência, no espaço, daquelas massas ígneas de gás, em diferentes graus de condensação.” Mas que importa tudo isso? Se com Kant não estamos mais no tempo, mas o tempo está em nós, que NOS importa a teleologia e escatologia do sistema solar, ou sua genealogia?

Não importa que Hegel não tenha resolvido esse problema. Seu mérito, que marcou época, consistiu apenas em o ter colocado. Mas não se trata de um problema que pode ser resolvido apenas por um homem. E, mesmo sendo Hegel, ao lado de Saint-Simon, o cérebro mais universal de seu tempo, seu horizonte estava circunscrito, em primeiro lugar, pela limitação inevitável de seus próprios conhecimentos, e, em segundo, pela dos conhecimentos e observações de sua época, também limitados em extensão e profundidade. A tudo isso deve-se ainda acrescentar uma 3ª circunstância. Hegel era idealista. As idéias de seu cérebro não eram, para ele, imagens mais ou menos abstratas das coisas e dos fenômenos da realidade, mas coisas que, em seu desenvolvimento, se lhe apresentavam como projeções realizadas de uma ‘idéia’, existente não se sabe onde, antes da existência do mundo.” “O sistema Hegel foi um aborto gigantesco, porém o último de sua espécie.”

IGUALMENTE OUSADO E FUNESTO (Não tem lei aquilo que não existe, i.e., a humanidade): “A consciência da total inversão em que o idealismo alemão incorrera, necessariamente, tinha que levar ao materialismo. Mas, note-se bem, não se trata do materialismo puramente metafísico e exclusivamente mecânico do século XVIII. Afastando-se da simples repulsa, candidamente revolucionária, de toda a história anterior, o materialismo moderno vê, na história, o processo de desenvolvimento da humanidade, cujas leis dinâmicas tem por encargo descobrir.”

OH, METAPHYSICS! THEY TRY TO KILL YOU IN EACH GENERATION! “Desde o instante em que cada ciência tenha que se colocar no quadro universal das coisas e do conhecimento delas, já não há margem para uma ciência que seja especialmente consagrada a estudar as concatenações universais. Tudo o que resta da antiga filosofia, com existência própria, é a teoria do pensamento e de suas leis: a lógica formal e a dialética. Tudo o mais se dissolve na ciência positiva da natureza e da história.” Curiosamente, isso se coaduna bastante bem com os <paradigmas científicos> de Popper e Kuhn – não entendo por que eles são ferrenhos adversários do marxismo!

Lançavam-se os alicerces para uma concepção materialista e abria-se o caminho para verificar-se que a existência é quem determina a consciência do homem e não é a consciência quem determina a existência, como se afirmava tradicionalmente.” Diabrura epistemológica: mas então a revolução proletária continuará dependendo dos fatores <da existência> e não da consciência da classe?

Com efeito, o socialismo [tradicional anglo-franco] criticava o regime capitalista de produção existente e suas conseqüências, mas não conseguiu explicá-lo e, portanto, também não o poderia destruir, limitando-se apenas a repudiá-lo, simplesmente, como imoral.”

Era esse, mais ou menos, o sentido com que se apresentavam as coisas no campo do socialismo teórico e da decadente filosofia, quando o Senhor Eugen Dühring veio à cena e anunciou, com o auxílio de tambores e fanfarras, a total subversão da filosofia, da economia política e do socialismo, subversão feita unicamente por ele.

Vejamos, agora, o que o Senhor Dühring promete e… o que cumpre.”

INTRODUÇÃO. CAPÍTULO II. O QUE PROMETE O SR. DÜHRING

Já na primeira página, o Sr. Dühring se nos anuncia como o homem ‘que se outorga a representação desse poder (isto é, a filosofia) em sua época e em todo o seu desenvolvimento próximo previsível’. Ou, por outras palavras, declara-se como o único filósofo verdadeiro dos tempos presentes e de um futuro ‘previsível’. Quem dele se afasta, saiba que se afasta da verdade, Não é o Sr. Dühring o 1º que assim raciocina a seu próprio respeito, mas, excluindo-se Richard Wagner – é o primeiro que o afirma com tranqüilidade.” HAHAAHAHAAHA

além disso, termina suas investigações com um plano socialista completo, pessoal, perfeitamente desenvolvido, da sociedade do futuro, plano que é ‘o resultado prático de uma teoria clara, que se aprofunda até as últimas raízes’ e, portanto, compartilha com a infalibilidade e a virtude de santificação universal, que é o atributo da filosofia dühringuiana, pois, só sob a forma socialista por mim desenvolvida em meu Curso de Economia Política e Social pode uma autêntica propriedade ocupar o posto dessa propriedade aparente e provisória conquistada pela violência. Já sabe o futuro que, quer deseje ou não, terá que se basear, forçosamente, nessa concepção.

Nada nos custaria aumentar essa coleção de elogios dedicados pelo Sr. Dühring ao Sr. Dühring. Mas cremos bastar o que já dissemos para que o leitor tenha algumas dúvidas sobre o fato de ter realmente diante de si um filósofo ou… Não; rogamos ao leitor que reserve sua opinião até conhecer mais de perto o prometido ‘radicalismo’. Se apresentamos todo esse florilégio é porque queríamos simplesmente demonstrar não se tratar de um filósofo e socialista vulgar, desses que se limitam a formular suas idéias deixando que os outros julguem de seu valor, mas de um ser verdadeiramente extraordinário, que afirma possuir a mesma infalibilidade do papa e cuja doutrina, de virtude universalmente santificadora, deve ser aceita, sem discussão, se não se quiser incorrer na mais horrenda das heresias.”

Ou o Sr. Dühring tem razão e, nesse caso, estaremos diante do maior dos gênios de todos os tempos, do primeiro homem sobre-humano, infalível, ou, então, está o Sr. Dühring equivocado, mas, mesmo assim, seja qual for a nossa opinião, se tomássemos em consideração, benevolentemente, a sua boa vontade, como se esta existisse, isso seria para ele a maior das ofensas.”

O SCHOPENHAUERIANO SR. DÜHRING!Leibniz, carente de todo sentido elevado, é o melhor de todos os possíveis filosofadores cortesãos.’ Kant é ainda tolerado. Depois dele, entretanto, tudo virou às avessas, pois vieram as tolices e futilidades, tão sem substância e tão enganosas, dos primeiros epígonos, de um Fichte e de um Schelling … caricaturas monstruosas de incultos filosofastros da natureza … as ‘monstruosidades pós-kantianas’ e as ‘fantasias febris’ que encontram ‘num Hegel’ o seu remate e sua coroação.” Só faltou falar filosofia de bundões!

Os naturalistas não têm tratamento melhor, apesar de ser citado apenas Darwin.” Talvez só Nietzsche tenha tido a estatura para ser essas 3 coisas ao mesmo tempo: do século XIX, relevante e contra Darwin!

Do nosso ponto de vista, o darwinismo, do qual se devem separar, naturalmente, as doutrinas lamarckianas, é uma afirmação de selvageria e um crime de lesa-humanidade.”

[Quanto aos socialistas, u]nicamente Saint-Simon consegue um tratamento bastante passável, uma vez que só lhe é reprovado o ‘exagero’, considerando-se caridosamente a enfermidade de megalomania religiosa de que padecia. Mas, ao chegar a Fourier, o Sr. Dühring perde a paciência.” “O inegavelmente ‘perturbado Fourier’, essa ‘cabecinha infantil’, esse ‘idiota’, nem sequer era socialista; o seu palavreado nada tinha a ver com o socialismo racional; era simplesmente ‘um aborto trabalhado pelo padrão da vida vulgar’.”

E, por fim, ficamos sabendo que Robert Owen ‘tinha idéias pobres e mesquinhas … sua mentalidade tão grosseira no que se refere ao terreno moral … alguns lugares comuns degenerados em idéias confusas … talento de observação absurdo e torpe … O processo mental de Owen não merece sequer o tempo que se gasta com uma crítica séria … A sua vaidade …’ etc., etc. O Sr. Dühring classifica os utopistas, divertindo-se com os seus nomes, com o seguinte desperdício de humor: Saint-Simon, saint (santo), Fourier, fou (louco), Enfantin, enfant (criança). Só lhe faltou acrescentar Owen, oh weh (oh! dor, em alemão), encerrando um período bastante considerável da história do socialismo com uma piada em 4 letras”

Dos julgamentos, que Dühring faz dos socialistas posteriores, limitar-nos-emos a destacar, devido à sua brevidade, os que faz sobre Lassalle e Marx:

Lassalle: ‘Ensaios de vulgarização pedantes e pegajosos … excessos escolásticos … uma mistura monstruosa de teorias gerais e de detalhes mesquinhos … superstição hegeliana absurda e disforme … exemplo repelente … limitação … envaidecimento jactancioso com a mais banal mediocridade … nosso herói judeu … panfletista … ordinário … uma concepção da vida e do mundo absolutamente insustentáveis …’

Marx: ‘Estreiteza de concepções … seus trabalhos e suas conclusões são falhos por si mesmos, isto é, do ponto de vista de teoria pura, do valor permanente, são indiferentes para o nosso objetivo (a história crítica do socialismo), e, no que se refere à história geral sobre as correntes do espírito, pode-se tomá-lo em consideração, no máximo, como um sintoma da influência atingida por um ramo do escolasticismo sectário moderno [HAHAAHA!] … impotência e incapacidade de concentração e ordenação … deformação de pensamento e de estilo, maneiras de linguagem pouco dignasvaidade anglicana … engano … concepções áridas, que, na realidade nada mais são do que rimas bastardas da fantasia histórica e lógica … processos desonestos … vaidade pessoal … [a anglicana era apenas coletiva?] maneiras insolentes … impertinências … frasezinhas engenhosas [a raiva realmente passou para o estilo da escrita!] e tolices … erudição mesquinhaum retrógrado na filosofia e na ciência.’

PARTE 1. FILOSOFIA. CAPÍTULO III. CLASSIFICAÇÃO. APRIORISMO.

Com efeito, coloquemos a Enciclopédia de Hegel, com todas as suas fantasias febris, junto às verdades definitivas e inapeláveis do Sr. Dühring. Ao que o Sr. Dühring chama de esquemática geral do mundo, Hegel chama de lógica. O que o primeiro aplica à natureza como esquemas, o segundo o faz com as categorias lógicas e daí temos a filosofia da natureza, e, finalmente, a sua aplicação ao mundo do homem, que, em Hegel, se chama filosofia do espírito. Como vemos, a ‘ordem lógica interna’ da hierarquia dühringuiana nos encaminha diretamente, ‘com absoluta espontaneidade’, à Enciclopédia de Hegel, donde foi tirada com tal fidelidade que faria chorar de ternura ao judeu errante da escola hegeliana, o professor Michelet, de Berlim.”

Se, ao chegar a um período qualquer do progresso humano, se tornasse possível construir um sistema definitivo e determinado das concatenações universais, tanto no físico como no espiritual e histórico, ter-se-ia encerrado o ciclo dos conhecimentos humanos e, uma vez que a sociedade se sujeitasse a esse sistema, levantar-se-ia uma barreira a todo o desenvolvimento histórico futuro, o que seria um contra-senso, um absurdo.”

É indubitavelmente certo que os conceitos das matemáticas puras regem independentemente da experiência concreta de qualquer indivíduo, ainda que essa virtude não pertença exclusivamente às matemáticas, o que é fato comum comprovado por todas as ciências e, mais ainda, a todos os fatos em geral, cientificados ou não. Os pólos magnéticos, a composição da água por 1 átomos de hidrogênio e 1 de oxigênio, o fato de que Hegel está morto e de que o Sr. Dühring está vivo, são fatos que existem independentemente de minha experiência ou da experiência de outras pessoa, e mesmo independentemente da experiência do Sr. Dühring, assim que ele dormir o sono dos justos. O que não é certo é que as matemáticas puras são entendidas pela inteligência apenas com as suas próprias criações e imaginações. De onde são tirados os conceitos de número e figura, senão do mundo real?” “Tiveram que existir objetos que apresentassem uma forma, e cujas formas pudessem ser comparadas entre si, para que pudesse surgir o conceito de figura.” “Mas, como acontece em todos os campos do pensamento humano, ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as leis abstraídas do mundo real se vêem separadas desse mundo real do qual nasceram, consideradas como se fossem alguma coisa à parte, como se fossem leis vindas de fora e às que o mundo se deveria ajustar. Assim aconteceu com a sociedade e o Estado e assim acontecera, num determinado momento, com as matemáticas puras, que serão aplicadas ao mundo, apesar de nele ter sua origem e de não representar mais do que uma parte de suas formas de síntese.”

PARTE 1. FILOSOFIA. CAPÍTULO IV. ESQUEMÁTICA DO MUNDO

No sujeito, o Sr. Dühring diz-nos que o ser, como universal, compreende tudo e no predicado afirma intrepidamente que nada, então, existe fora dele. Que colossal idéia ‘criadora de sistema’!” “E assim ‘as coisas do além não têm mais lugar, uma vez que o espírito aprendeu a discernir o que existe na sua universalidade homogênea’. Eis uma batalha do espírito comparada com a qual Austerlitz e Iena Sadow e Sédan desaparecem

inteiramente.”

Não é bastante que me resolva eu a classificar uma escova de sapatos na classe dos mamíferos para que a mesma, como que por encanto, apresente glândulas mamárias. A unidade do ser, ou seja, aquilo que justifica a redução à unidade no pensamento, é, pois, justamente o que era mister demonstrar”

“‘Começo pelo que existe. Penso. pois, sobre o que tem existência real. A idéia do que existe constitui uma unidade. Mas o pensamento e o que existe têm que estar de acordo, correspondem-se, <coincidem>. Portanto, o que existe é também, na realidade, unitário. Donde se conclui que o sobrenatural não existe.’ Se o Sr. Dühring nos tivesse falado assim, sem subterfúgios, ao invés de nos apresentar os dogmas anteriormente citados, sua ideologia se tornaria compreensível. Querer demonstrar a realidade de um resultado mental qualquer por meio da identidade entre o que se pensa e o que existe é, de fato, uma das fantasias febris mais loucas de… Hegel.”

O mais cômico nessa história é que o Sr. Dühring, para provar a não-existência de Deus por meio do conceito do ser, lança mão da prova ontológica da existência de Deus. Diz essa prova: quando pensamos em Deus, nós o concebemos como a soma de todas as perfeições. Ora, a soma de todas as perfeições implica, antes de tudo, na existência, pois um ser inexistente é necessariamente imperfeito. Devemos, pois, incluir a existência no número das perfeições de Deus. Logo, necessariamente, Deus existe. É esse, tal qual, o raciocínio do Sr. Dühring: quando ideamos o ser, ideamo-lo como conceito uno. O que se compreende num só conceito é uno. O que existe não corresponderia, portanto, ao seu conceito se não constituísse uma unidade; Deus, portanto, não existe, etc.”

Temos que nos afastar, um só milímetro que seja, desse simples fato fundamental de que todos os objetos têm em comum a existência para que, desde logo, comecem a surgir aos nossos olhos suas diferenças.” “É necessário levar-se em conta que a existência começa a ser um problema a partir dos limites de nosso círculo visual.”

O ser … não é esse ser puro que, idêntico a si próprio, igual a si mesmo, é desprovido de qualquer propriedade concreta que não representa efetivamente senão uma contra-imagem do nada ou da ausência da idéia.”

[Mas é] somente a partir desse ser nada que se desenvolve o estado atual do mundo, diferenciado, mutável, apresentando já uma evolução, um processo de formação; e é somente depois de termos compreendido isso que chegamos a encontrar, de novo, sob essa transformação perpétua, ‘o conceito do ser universal idêntico a si mesmo’.”

Comparemos agora essa ‘nítida classificação dos esquemas gerais’ e esse ‘ponto de vista verdadeiramente crítico’, com as ingenuidades, as grosserias e os sonhos febricitantes de Hegel.”

Do reino da insensibilidade não se passa ao da sensação, apesar de toda a continuidade quantitativa, a não ser por um salto qualitativo do qual … podemos dizer que se diferencia infinitamente da simples variação de graus de uma só e mesma propriedade”

E, não contente com haver tomado de empréstimo o seu esquematismo daquele dentre os seus predecessores que ele mais calunia, o Sr. Dühring, depois de ter ele próprio dado o exemplo referido acima, de uma passagem brusca da quantidade em qualidade, tem a ousadia de falar de Marx nestes termos: ‘Como é cômico vê-lo (a Marx) referir-se a essa Idéia confusa e nebulosa de Hegel, de que a quantidade se transforma em qualidade!’

Do ser, Hegel passa à substância, à dialética. Aí, trata das determinações reflexas de seus antagonismos e contradições internas (por exemplo, negativo e positivo), depois chega à causalidade ou relação de causa e efeito, finalizando com o estudo da necessidade. Outra coisa não faz o Sr. Dühring. Onde Hegel escreve ‘teoria da substância’, o Sr. Dühring traduz por ‘propriedades lógicas do ser’.”

Quando, pois, o Sr. Dühring diz de si próprio: ‘nós, que não filosofamos de uma gaiola para fora’, ele quer dizer, sem dúvida, que filosofa dentro da gaiola

PARTE I. FILOSOFIA. FILOSOFIA DA NATUREZA. CAPÍTULO V. O TEMPO E O ESPAÇO

Essas proposições são literalmente copiadas de um livro bastante conhecido que apareceu, pela 1ª vez, em 1781 e que se intitula Crítica da Razão Pura” “Portanto, ao Sr. Dühring cabe unicamente a glória de ter batizado uma idéia de Kant, com o nome de ‘lei do número determinado’ e de ter descoberto a existência de um tempo onde ainda não existia tempo, mas sim apenas o mundo. Quanto ao resto, isto é, quanto àquilo que, na análise do Sr. Dühring, tem algum sentido, ao subentender ‘nós’, na expressão ‘Encontramos’, quer se referir a Immanuel Kant; a atualidade das descobertas do Sr. Dühring tem apenas 95 anos.” HAHAHAHAHAA

Mas acontece que Kant não considera, de modo algum, a tese acima como provada por sua demonstração. Ao contrário, na página seguinte sustenta e prova que o mundo não tem começo no tempo nem limite no espaço e justamente nisso é que reside a antinomia, a contradição irredutível, segundo a qual podemos provar tanto uma tese como a sua contrária.”

A série infinita adaptada ao mundo espacial é uma linha tirada em direção ao infinito, a partir de um ponto determinado, numa direção determinada. Isso exprime, mesmo remotamente, a infinidade do espaço? Pelo contrário: bastam 6 linhas tiradas a partir desse ponto único, em 3 direções opostas, para circunscrever as direções do espaço e teríamos assim 6 dimensões. Kant o compreendeu tão bem que não foi senão indiretamente, por um rodeio, que ele transportou a sua série numérica para o mundo espacial. O Sr. Dühring, pelo contrário, força-nos a admitir 6 dimensões no espaço e, logo depois, esquecendo-se do que afirmou, não encontra palavras para exprimir a sua indignação contra o misticismo matemático de Gauss que não queria contentar-se com as 3 tradicionais dimensões do espaço!” “A supressão da contradição seria o fim da infinidade. Hegel já o havia visto muito bem e é por isso que trata aos que se dedicam a fantasiar sobre essa contradição com um merecido desprezo.”

Esse Deus e esse Além, que o Sr. Dühring pretendia haver eliminado tão galhardamente de sua ‘esquemática do universo’, ele próprio os reintroduz, reforçados e aprofundados, em sua filosofia da natureza.”

PARTE I. FILOSOFIA. FILOSOFIA DA NATUREZA. CAPÍTULO VI. COSMOLOGIA, FÍSICA, QUÍMICA

A teoria sobre a gênese dos mundos atuais, pela rotação das massas nebulosas, foi o maior progresso que a astronomia fez desde Copérnico. Pela primeira vez abalou-se a idéia de que a natureza não teria história no tempo. Até então, acreditava-se, os corpos celestes se moviam, constantemente, desde a sua origem, nas mesmas órbitas invariáveis; e se bem fosse admitido que sobre cada um dos corpos celestes os seres orgânicos individuais pereciam, entendia-se que essa morte não afetava em nada às espécies e aos gêneros. A natureza estava, de fato, visivelmente empenhada num movimento perpétuo: mas esse movimento parecia não ser mais que a repetição incessante dos mesmos fenômenos. Nessa concepção, que correspondia inteiramente ao método filosófico metafísico, Kant abriu a primeira brecha, e isso de maneira tão científica que a maior parte dos argumentos empregados por ele tem, ainda hoje, um grande valor. É certo que a teoria de Kant não é, ainda agora, rigorosamente mais que uma hipótese. Mas o sistema cosmológico do próprio Copérnico não conseguiu ser senão uma hipótese, até hoje; e, depois que as investigações espectroscópicas, derrubando todos os argumentos contrários, apresentaram a prova evidente de que existem tais massas gasosas ígneas no firmamento, a oposição científica à teoria de Kant foi reduzida ao silêncio. O Sr. Dühring não pode, igualmente, construir o seu mundo, sem apelar para um estado de nebulosidade precedente, mas ele vinga-se exigindo que lhe demonstrem o sistema mecânico dessa nebulosa e, como não pôde ser atendido, investe contra essa demonstração com toda a espécie de epítetos desdenhosos.”

Observemos, de passagem, que, na ciência da natureza, a massa de névoa de Kant, que é designada atualmente pelo nome de nebulosa primitiva, não deve ser tomada, como é fácil compreender, senão num sentido relativo. Quando dizemos que ela é nebulosa primitiva, por um lado, queremos dizer que nela está a origem dos corpos celestes existentes e que ela é, por outro lado, a mais antiga forma de matéria a que podemos, até agora, remontar. O que absolutamente não exclui, mas, pelo contrário, supõe que a matéria tenha atravessado, antes da nebulosa primitiva, uma série infinita de outras formas.”

A unidade de matéria e força mecânica, à qual damos o nome de meio universal, é uma fórmula por assim dizer lógico-real, da qual nos valemos para designar o estado da matéria idêntico a si próprio, como fase prévia de todas as etapas da evolução que possamos estabelecer.”

A fórmula lógico-real, não é senão uma fraca tentativa de utilizar, na ‘filosofia da realidade’, as categorias hegelianas do em-si (Ansich) e para-si (Fürsich). Na primeira categoria reside, para Hegel, a identidade primitiva das antíteses ainda latentes e embrionárias, ocultas numa coisa, num fenômeno, num conceito; na segunda, manifestam-se a diferenciação e a separação desses elementos ocultos e começa o seu conflito.”

Nunca, em parte alguma, existiu, nem pode existir, matéria sem movimento. Movimento no espaço absoluto, movimento mecânico de pequenas massas em qualquer dos mundos existentes, vibrações moleculares sob a forma de calor, de corrente elétrica ou magnética, de análise e síntese químicas, vida orgânica: em qualquer uma dessas formas de movimento, ou em várias ao mesmo tempo, é que se encontra, no mundo, cada átomo de matéria, em cada instante determinado.” “O movimento não pode, por conseqüência, ser criado ou destruído, como também não pode ser a própria matéria, e é a isso que a antiga filosofia (Descartes) se refere quando afirma que a quantidade de movimento existente no mundo é sempre a mesma.”

restaria ainda a dificuldade de se saber, em primeiro lugar, como o mundo foi carregado de forças. Visto que nem hoje os fuzis se carregam por si próprios; em segundo lugar, era preciso saber qual foi o dedo que apertou o gatilho. Por mais que mudemos a direção, por voltas e voltas, pelos ensinamentos do Sr. Dühring, chegamos sempre ao dedo… da Providência.”

Essa explicação é naturalmente uma hipótese, como, aliás, toda a teoria mecânica do calor, pois que ninguém, até agora, viu uma molécula e, muito menos, uma molécula vibrátil. Esta hipótese está cheia de defeitos como, aliás, toda a teoria térmica que é ainda bastante nova; mas pode, pelo menos, explicar os fenômenos sem entrar em contradição com a lei segundo a qual o movimento não se perde, nem se cria, ao mesmo tempo em que é capaz de explicar, com clareza, a existência do calor no curso de suas metamorfoses. O calor latente ou retidão não é, de maneira alguma, um impulso para a teoria mecânica do calor. Pelo contrário, essa teoria dá, pela primeira vez, uma explicação racional dos fenômenos e torna-se estranho que os físicos continuem a dar ao calor, transformado numa outra forma de energia molecular, o qualificativo antiquado e impróprio de ‘calor retido’.” “Quanto mais avançamos na filosofia da natureza do Sr. Dühring, mais nos parecem inconcebíveis e inconsistentes todas as tentativas de explicar o movimento pela imobilidade ou de encontrar a ponte pela qual o que está em repouso e é puramente estático poderia por si mesmo passar ao dinâmico, ao movimento.”

Volta a se dar aqui a mesma história que acima se deu com Kant: o Sr. Dühring arranja, não importa que velha banalidade arqui-conhecida, cola sobre ela uma etiqueta de Dühring e chama as coisas de ‘resultado e concepções essencialmente originais … idéias criadoras de sistema … ciência radical …’

uma coisa há que o Sr. Dühring pode afirmar com segurança: ‘O ouro existente no universo existiu necessariamente sempre na mesma quantidade e não pode, assim como a própria matéria universal, aumentar ou diminuir’. Mas o que podemos comprar com esse ‘ouro’, o Sr. Dühring infelizmente não nos diz.”

PARTE I. FILOSOFIA. FILOSOFIA DA NATUREZA. CAPÍTULO VII. O MUNDO ORGÂNICO

No interior da órbita da vida, os saltos tornam-se cada vez mais raros e imperceptíveis. Desse modo é Hegel, mais uma vez, quem deve corrigir o Sr. Dühring.” “Para qualquer lado que volvamos os olhos, encontramos, nas afirmações do Sr. Dühring, grosserias hegelianas que ele põe sem nenhum constrangimento a serviço de sua ciência radical.”

O próprio Sr. Dühring, que, à menor tendência ‘espiritista’ em outrem, explode numa indignação moral sem limites, afirma-nos com certeza que ‘as sensações instintivas foram criadas, em primeiro lugar, graças à satisfação que está ligada a seu funcionamento’.”

Ora, Darwin não sonhou sequer em dizer que a origem da idéia da luta pela existência era a teoria de Malthus. O que ele diz é que a sua teoria da luta pela existência é a teoria de Malthus aplicada a todo o mundo vegetal e animal. Por maior que fosse o deslize cometido por Darwin de aceitar, na sua ingenuidade, a teoria malthusiana, vê-se logo, a um primeiro exame, que, para se perceber a luta pela existência na natureza – que aparece na contradição entre a multidão inumerável de germes engendrados pela natureza, em sua prodigalidade, e o pequeno número desses germes que podem chegar à maturidade, contradição que, de fato, se resolve em grande parte numa luta – às vezes extremamente cruel – pela existência, não há necessidade das lunetas de Malthus. E, assim como a lei que rege o salário conservou o seu valor muito tempo depois de estarem caducos os argumentos malthusianos sobre os quais Ricardo a baseava – a luta pela existência pode igualmente ter lugar na natureza sem nenhuma interpretação malthusiana.”

Se se tivesse procurado, no esquematismo interno da procriação, qualquer princípio de modificação substantiva, teria sido muito racional, porquanto é uma idéia bastante natural a de harmonizar o princípio da gênese geral com o da reprodução sexual, e a de conceber, de um ponto de vista superior, o que se chama de geração espontânea, não como o contrário da reprodução, mas precisamente como um caso de produção.’ E o homem que pôde redigir semelhante tolice, não hesita em censurar Hegel pela sua ‘gíria’.”

Não temos, contudo, o direito de esquecer que, ao tempo de Lamarck, a ciência estava muito longe de dispor de materiais suficientes para poder resolver a questão da origem das espécies a não ser como uma antecipação a sua época, ou, por assim dizer, de uma maneira profética. Sem contar a massa enorme de materiais de zoologia e de botânica, anatômicos e descritivos, que foram reunidos a partir dessa época, surgiram depois de Lamarck 2 ciências inteiramente novas e de importância decisiva neste terreno, que estudam – uma a evolução dos germes vegetais e animais (embriologia) – e outra os vestígios orgânicos conservados nas diversas camadas da crosta terrestre (paleontologia). Com efeito, descobriu-se que existe uma coincidência entre a evolução gradativa, segundo a qual os germes orgânicos se tornam organismos adultos, e a série cronológica das plantas e animais que aparecem sucessivamente na história da terra. E foi precisamente essa coincidência que deu à teoria da evolução a sua base mais sólida. Mas a teoria da evolução é ainda bastante nova e, por conseqüência, está fora de qualquer dúvida que as pesquisas ulteriores devem modificar notavelmente as idéias atuais, inclusive as que são estritamente darwinistas, sobre o processo da evolução das espécies.”

Finalmente, ele nos adverte contra o abuso das palavras metamorfose e evolução. Segundo ele, a idéia de metamorfose é um conceito vago e a idéia da evolução só pôde ser admitida na medida em que se pôde verdadeiramente provar a existência das leis que a regem. E aconselha-nos a substituir ambas as palavras pelo termo ‘composição’ e então tudo irá bem. É sempre a mesma história: as coisas continuam como são e o Sr. Dühring mostra-se todo satisfeito se lhes mudamos o nome.

Faremos uma grande confusão se falarmos na evolução do pinto dentro do ovo, porque não conhecemos a ciência das leis que regem esse processo. Para esclarecer, devemos substituir, apenas, a palavra ‘evolução’ pela palavra ‘composição’. Não diremos mais: ‘essa criança desenvolve-se magnificamente’, mas sim, ‘essa criança compõe-se esplendidamente’. E podemos felicitar o Sr. Dühring pelo fato de, não contente com enfileirar-se dignamente ao lado do autor do Anel dos Niebelung, no que se refere ao alto conceito que tem de si mesmo, ainda não lhe fica atrás como ‘compositor’ do futuro.” HAHAHAHAHAHAHA!

PARTE I. FILOSOFIA. FILOSOFIA DA NATUREZA. CAPÍTULO VIII. O MUNDO ORGÂNICO (CONCLUSÃO)

Não existe átomo, como se sabe, para a gravitação ou qualquer outra forma dinâmica, mecânica, ou física, mas somente para a ação química.”

O núcleo celular estrangula-se primeiramente em seu centro; o estrangulamento que separa os 2 lóbulos do núcleo torna-se cada vez mais acentuado; por fim, separam-se e formam 2 núcleos celulares independentes. O mesmo processo que se dá com os núcleos estende-se à célula: cada um dos 2 núcleos torna-se o centro de um agregado de matéria celular: os agregados são ligados por um fio cada vez mais delgado até que se separam, passando a viver como 2 células independentes. É pela repetição de tais desdobramentos que a bolha germinal do ovo animal, depois que se processa a fecundação, engendra, pouco a pouco, todo o novo organismo”

Como vemos, o Sr. Dühring, no seu exemplo de caracterizar a vida, ‘no sentido estrito e rigoroso do termo’, apresenta 4 critérios inteiramente contraditórios de vida, que se excluem uns aos outros, sendo que condena à morte não só todo o reino vegetal, mas ainda cerca de metade do reino animal.”

Portanto, o característico de todos os seres animais é o de serem capazes de ter sensações, isto é, terem percepções subjetivamente conscientes dos estados pelos quais atravessam. A verdadeira linha divisória entre a planta e o animal está ali onde se realiza o salto para a sensação. E esse limite é tão claro e resiste tanto a deixar-se apagar pelas conhecidas formas intermediárias que, justamente essas formações exteriormente indistintas ou indetermináveis são as que se convertem numa necessidade lógica.”

Primeira, advertiremos que já Hegel dizia (Filosofia da Natureza, pág. 351, nota diferencial) que ‘a sensação é a differentia specifica, a característica absoluta do animal’.”

Em segundo lugar, ouvimos falar, pela primeira vez, de formações intermediárias exteriormente indistintas ou indeterminadas (delicioso patuá) entre o reino animal e o vegetal. (…) E tudo isso sugere ao Sr. Dühring a necessidade lógica de fixar uma característica diferencial que, ao mesmo tempo, afirma ser insustentável.”

Em terceiro lugar, temos mais uma ‘criação e livre imaginação’ do Sr. Dühring ao afirmar que a sensação está sempre, psicologicamente, ligada à existência de um sistema nervoso qualquer, ‘por mais simples que seja’. (…) Não é senão a partir dos vermes que o encontramos regularmente e o Sr. Dühring é o primeiro a afirmar que, nesses animais, a ausência de sensação provém do fato de não terem nervos.”

Deve-se admitir que o animal provém, por evolução, da planta? Semelhante pergunta só poderia ser feita por um homem que nada entende nem do que é um animal, nem do que é uma planta.”

A mudança de substâncias que se realiza por meio de uma esquematização plasticamente modeladora (pode-se saber o que é isso?) continua sendo um caráter distintivo do processo vital propriamente dito.’ É tudo o que nos ensina sobre a vida.”

Entende-se pela expressão corpos albuminóides, aqueles de que trata a química moderna, que compreende, sob esse nome, todos os corpos complexos, cuja composição é análoga à da albumina normal e que também têm, às vezes, o nome de substâncias protéicas ou proteínas. Essa definição de vida não agrada aos homens, pois a albumina normal é, de todas as substâncias afins, a mais inanimada, a mais passiva, sendo, como a gema do ovo, uma simples substância nutritiva para o germe em gestação. Mas enquanto não nos adiantarmos mais na composição química dos corpos albuminóides, essa denominação será ainda a melhor, por ser a mais geral de todas.” “As definições têm sempre um valor científico muito precário. Para se ter um conhecimento verdadeiramente completo do que é a vida, seria preciso relacionar todas as formas em que ela se manifesta, desde a inferior até a superior. Mas, para uso corrente, tais definições são bastante cômodas, havendo casos em que não se pode dispensá-las.”

E, assim, o universo cósmico subjetivo não é mais estranho para nós que o universo objetivo. A constituição desses 2 reinos deve ser concebida segundo um tipo harmônico; temos assim os elementos iniciais de uma teoria da consciência cujo alcance é mais do que terrestre.”

Passemos adiante!”

PARTE I. FILOSOFIA MORAL E DIREITO. CAPÍTULO IX. VERDADES ETERNAS

Abstemo-nos de dar algumas amostras do guisado de tolices e sentenças oraculares, ou seja, do simples charlatanismo que o Sr. Dühring serve a seus leitores em 50 páginas como sendo a ciência radical dos elementos da consciência. Não citaremos senão esta: ‘Quem não é capaz de pensar senão com a ajuda da linguagem não tem a menor idéia do que significa pensamento original e verdadeiro’. Segundo essa afirmativa, os animais são os pensadores mais originais e mais verdadeiros, pois o seu pensamento jamais é perturbado pela intromissão da linguagem. A dizer verdade, vê-se bem nos pensamentos dühringuianos e na linguagem que os exprime, quanto eles se adaptam mal a uma linguagem qualquer, e, por outro lado, como a linguagem, pelo menos a alemã, se ajusta com dificuldade a esses pensamentos.”

4 capítulos depois (da obra do Sr. Dühring, isto é)…

Mas, por outro lado, será sempre uma concepção própria à ampliação benfazeja dos nossos horizontes, o representarmos a vida individual e social, em outros astros, como baseada, necessariamente, na contextura fundamental e geral de um esquema que … não pode ser suprimido nem cancelado por nenhum ser que atue de modo inteligente.”

Já, por si mesma, a dúvida permanente é um estado doentio de fraqueza e não faz senão manifestar um desolado confusionismo que às vezes procura dar-se a aparência de alguma solidez, na consciência sistemática de sua nulidade. Em matéria de moral, a negação dos princípios universais apega-se às diversidades geográficas e históricas dos costumes e dos princípios morais; e, confessando-se a necessidade inevitável do mal e do perverso em moral, acredita-se livre da obrigação de reconhecer a comprovada vigência e a ação eficaz de padrões morais coincidentes. [!!!] Esse ceticismo dissolvente, que se exerce não contra tal ou qual falso ensinamento objetivo, mas contra a própria capacidade que tem o homem de obedecer a uma moralidade consciente, atinge mesmo alguma coisa pior que o puro niilismo. [!!!] … Ele tem a ilusão de, facilmente, poder governar o seu tumultuoso caos de noções morais desagregadas e de poder abrir as portas ao Capricho destituído de princípios. Mas seu erro é imenso, pois é suficiente que se recordem as aventuras inevitáveis da razão na verdade e no erro. para que se reconheça, revelada por essa analogia, que a falibilidade das leis naturais não exclui necessariamente a possibilidade de saber encontrar o caminho exato.”

E quando digo conhecimento humano, não é que tenha qualquer intenção de ofender aos habitantes dos outros astros, que não tenho a honra de conhecer; mas é que os animais também têm um conhecimento, embora não seja nunca soberano; o cão, por exemplo, terá o seu dono por um Deus, o que não impede que esse Senhor seja o maior canalha do mundo.”

O OTIMISMO DE ENGELS: “Assim, pois, quando eu digo que esse pensamento de todos os homens, inclusive os vindouros, sintetizado no meu espírito, é soberano, capaz de conhecer, de modo absoluto, o mundo real, desde que a humanidade subsista o tempo necessário para isso e que não se produza, nem nos órgãos nem nos objetos do conhecimento, modificação capaz de limitar esse conhecimento, estarei dizendo uma coisa banal e, além disso, estéril. Porque o resultado mais precioso dessa idéia seria tornarmo-nos extremamente desconfiados quanto aos nossos conhecimentos atuais, posto que estamos, segundo toda a probabilidade, ainda quase no início da história da humanidade, tendo as gerações que nos corrigirão de ser seguramente muito mais numerosas que aquelas cujos conhecimentos – não poucas vezes um olímpico desprezo – somos capazes de corrigir.”

Nesse sentido, podemos dizer que o pensamento humano é ao mesmo tempo soberano e não-soberano e a sua capacidade cognoscitiva é ao mesmo tempo limitada e absoluta. Soberano e absoluto quanto à sua capacidade, sua vocação, suas possibilidades, sua meta histórica final: não soberano e limitado, quanto à sua aplicação concreta e à realidade de cada caso particular.”

Ao introduzir as grandezas variáveis e ao estender a sua variabilidade até o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, as puritanas matemáticas cometeram o pecado original, morderam a maçã do bem e do mal, que lhes abriu um caminho de grandes triunfos, mas também de grandes erros.” “Mas é ainda pior o que se dá com a astronomia e a mecânica, sem falarmos da física e da química: nelas, o cientista move-se dentro de um turbilhão de hipóteses que o assaltam, de todos os lados, como um enxame de abelhas.”

átomos (…) e se a interferência das ondas luminosas não é uma fábula, não há a menor esperança de que possamos algum dia chegar a ver esses tão interessantes objetos com os nossos próprios olhos.”

Incomparavelmente mais difícil é o terreno em que pisamos em geologia, ciência que estuda, por sua própria natureza, e em primeiro lugar, fenômenos que não só não assistimos, como também não foram assistidos por nenhum outro homem, em época alguma. Aqui, a procura de verdades definitivas inapeláveis é extraordinariamente penosa, e de rendimento escassíssimo, além do mais.”

A segunda categoria de ciências é a das que têm a seu cargo a investigação dos fenômenos que ocorrem nos organismos vivos.” “Pense-se na imensa sucessão de fases intermediárias que foi preciso percorrer-se, desde Galeno até Malpighi, para tornar clara uma coisa tão simples como a circulação do sangue nos mamíferos” “De vez em quando, e com muita freqüência, aparece uma descoberta, como esta da célula, que nos obriga a submeter a uma total revisão as noções que considerávamos verdades definitivas e inapeláveis no campo da biologia e a deixar de lado, para sempre, inúmeras delas.”

Mas as verdades eternas saem perdendo ainda mais no 3º grupo de ciências, as ciências históricas, aquelas que investigam, na sua sucessão histórica e nos seus resultados atuais, as condições de vida dos homens, as relações sociais, as formas do Direito e do Estado, com as suas superestruturas ideal, filosófica, religiosa, artística, etc.”

As espécies animais e vegetais continuam sendo, de modo geral, as mesmas do tempo de Aristóteles. O mesmo não acontece na história da sociedade, na qual as repetições de situações, desde que ultrapassamos a pré-história da humanidade, a chamada Idade da Pedra, são a exceção e não a regra.”

Ainda mais: quando conseguimos conhecer, uma vez ou outra, a íntima ligação que existe entre as modalidades de vida, sociais e políticas, de uma época, isso acontece, em regra geral, quando essas formas estão já semi-decadentes e caminham para a morte.”

Entretanto, é notável que seja este precisamente o campo em que, com maior freqüência, deparamos com pretensas verdades eternas, verdades definitivas e inapeláveis, etc. Considerar verdades eternas que 2 + 2 = 4, que os pássaros têm bico, e outras coisas deste gênero, não mais pode ocorrer a quem abrigue a secreta intenção de estabelecer o princípio das verdades eternas de modo geral, para deste princípio extrair deduções sobre a existência, também no campo da história humana, de verdades eternas, como sejam, uma moral eterna, uma justiça eterna, etc., com os mesmos títulos de legitimidade e o mesmo alcance que as verdades matemáticas e as aplicações dessas verdades.” “Centenas e milhares de vezes tais coisas já se passaram, de tal modo que se tem que ficar assombrado, de que haja ainda homens que sejam bastante ingênuos para acreditar, já não digo nas plataformas dos outros, mas nas suas próprias.”

Sabemos já que a negação, ou, mais ainda, a simples dúvida a respeito das verdades eternas é um ‘estado de debilidade doentia’, um ‘desesperado confusionismo’, uma ‘nulidade’, um ‘nada’, ‘ceticismo desagregador’, ‘ainda pior que o simples niilismo’, um ‘caos de confusão’, e não sei quantas outras delicadezas do mesmo gênero. Já se sabe que os profetas não precisam molestar-se em realizar investigações críticas e científicas, pois lhes basta fulminar-nos com seus raios morais.”

e, como sabemos, todos os livros que se escreveram ou que continuam sendo preparados sobre lógica demonstram completamente que também neste campo não abundam, como muitos acreditam, as verdades eternas e inapeláveis.”

Tomemos, como exemplo, a conhecida lei de Boyle, segundo a qual, permanecendo invariável a temperatura, varia o volume dos gases na razão inversa da pressão a que estão submetidos. Regnault descobriu que esta lei não era aplicável a certos casos. Se tivesse sido um ‘filósofo da realidade’, deveria ter dito: a lei de Boyle é mutável; não é, portanto, uma autêntica verdade, ou seja, não é uma verdade, mas sim um erro. Mas com isso teria cometido um erro muito maior que o existente na citada lei; a rocha granítica de sua verdade teria desaparecido como se fosse um torrão de areia na imensidade de seu erro; teria convertido o seu resultado originariamente exato num erro tal que, comparada com ele, a lei de Boyle, apesar da poeira de erros a ela aderida, resplandeceria como uma grande verdade. Mas Regnault, como cientista que de fato era, não se deixou levar por semelhantes puerilidades, tendo continuado a pesquisar, até descobrir que a lei de Boyle era apenas aproximadamente certa e que deixava de sê-lo, sobretudo na presença de gases que, quando submetidos à pressão, se tornavam fluidos, ou, mais concretamente, a lei deixava de ser certa a partir do momento em que a pressão se aproximava do ponto de fluidez. A lei de Boyle só se mantinha exata dentro de certos limites. Mas, dentro destes limites, era absoluta, definitivamente verdadeira? Nenhum físico se atreverá a afirmar semelhante coisa. Responderá unicamente que esta lei é efetiva e exata dentro de certos limites de pressão e temperatura e para determinados gases; e mesmo dentro destes limites admitirá a possibilidade de que o seu campo de aplicação se restrinja mais ainda ou que a sua fórmula se modifique como resultado de posteriores investigações.

(*) [Nota de Engels] Posteriormente à data em que escrevi o trecho acima, parece ter-se confirmado essa hipótese. Segundo as últimas pesquisas feitas por Mendelelef e Bogusky, com aparelhos de maior precisão, todos os verdadeiros gases revelaram relações variáveis entre pressão e volume; o coeficiente de expansão do hidrogênio tinha sido positivo, em todas as pressões aplicadas até então (diminuía o volume com maior lentidão conforme aumentava a pressão); no ar da atmosfera e em todos os demais gases investigados, foi descoberto um ponto morto de pressão, de tal modo que, nos casos de pequena pressão, aquele coeficiente era positivo, convertendo-se em negativo com o aumento de pressão. Assim, a lei de Boyle, embora utilizável ainda, praticamente, precisará ser completada, de acordo com os resultados das pesquisas, por toda uma série de leis especiais. (Atualmente – 1885 – já sabemos, além disso, que não existem, de modo algum, ‘verdadeiros’ gases, pois que todos podem ser reduzidos ao estado fluido).”

As idéias do bem e do mal variaram tanto de povo para povo, de geração para geração, que, não poucas vezes, chegam a se contradizer abertamente.” “Que espécie de moral nos pregam hoje? Temos, em primeiro lugar, a moral cristã-feudal, que nos legaram os velhos tempos da fé e que se divide, fundamentalmente, numa moral católica e numa moral protestante, com toda uma série de variações e subdivisões que vão desde a moral católica dos jesuítas e a moral ortodoxa dos protestantes, até uma moral de certo modo liberal e tolerante. E, ao lado dessas, temos a moderna moral burguesa e, ao lado da moral burguesa moderna, a moral proletária do futuro.”

AH, ENGELS! “Que esta evolução se processa sempre, em largos traços, da mesma forma no campo da moral como no dos demais ramos do conhecimento humano e sempre num sentido de progresso, é o que nos parece indubitável.”

o fato de que o tipo de gato, que é encontrado nessa espécie animal com a falsidade que o caracteriza, pode ser comparado com a contextura de certos caracteres humanos, colocados, assim, no mesmo plano que esses bichos … O mal não é, pois, nada misterioso, a menos que se queira farejar alguma coisa de místico na existência do gato ou na dos felinos em geral.” “Goethe cometeu um erro imperdoável quando, em seu Fausto, apresentou Mefistófoles na forma de um cão negro, em vez de dar-lhe a figura de um gato.”

PARTE I. FILOSOFIA MORAL E DIREITO. CAPÍTULO X. A IGUALDADE

Esses 2 homens de encomenda são patrimônios de todo o século XVIII. Já os conhecemos em 1754 no Discurso sobre a desigualdade do homem, de J.J. Rousseau, onde – seja dito entre parênteses – se demonstra, também ‘axiomaticamente’, o contrário do que o Sr. Dühring afirma. Tornamos a nos encontrar com eles, desempenhando um papel de relevo, na economia política, desde Adam Smith até Ricardo, embora já não sejam, nesse assunto, completamente iguais, pois que exercem ofícios diferentes – geralmente os de caçador e pescador – e trocam entre si os seus produtos. Mas o século XVIII se utiliza, de um modo quase exclusivo, desses personagens, a título de ilustração e exemplo; a originalidade do Sr. Dühring consiste em tornar esse método puramente ilustrativo como método fundamental aplicável a toda a ciência da sociedade e como critério para o estudo de todas as manifestações históricas.”

A aceitação voluntária da servidão é encontrada em toda a Idade Média e, na Alemanha, chega mesmo até a Guerra dos 30 Anos. Quando, na Prússia, depois das derrotas de 1806 e 1807, foi abolida a servidão e com ela a obrigação imposta ao nobre feudal de zelar pelos seus súditos, em casos de miséria, enfermidade ou velhice, dirigiram-se os camponeses ao rei para suplicar que os deixasse continuar como servos, pois, de outro modo, quem iria cuidar deles e ampará-los na miséria?”

Mas deixemos por um momento este assunto e suponhamos que nos tenha convencido a axiomática do Sr. Dühring e que estejamos verdadeiramente entusiasmados com a absoluta equiparação das 2 vontades, com a ‘soberania humana geral’, com a ‘soberania do indivíduo’, verdadeiras expressões maravilhosas ao lado das quais o ‘Único’, de Max Stirner, com todas as suas propriedades, fica obscurecido, embora também a ele seja devida uma parte modesta da criação.”

Ali, onde homem e animal formam uma só pessoa, pode-se perguntar, em nome de uma 2ª pessoa completamente humana, se a sua conduta pode, neste caso, ser a mesma que teria sido frente a pessoas exclusivamente humanas, digamos assim … Começamos por supor 2 pessoas moralmente desiguais, uma das quais tem, de certo modo, um pouco do caráter das bestas, e, dessa forma, criamos um esquema fundamental aplicável a todas as relações que podem, de acordo com essa diferença, ser encontradas … entre os grupos humanos e dentro deles.”

procure entender o atormentado libelo que o Sr. Dühring apresenta (…) dá voltas e mais voltas, deslizando por sendas tortuosas, como um jesuíta”

Assim, a igualdade também termina ali onde 2 pessoas são ‘moralmente desiguais’. Então, para que esse esforço todo no sentido de reunir 2 seres humanos absolutamente idênticos, se sabemos que não existem 2 pessoas que sejam moralmente iguais? Pois é o Sr. Dühring quem nos diz que a desigualdade consiste em que uma delas é pessoa humana, enquanto que a outra tem dentro de si uma qualquer coisa de besta.” “A classificação dos homens em 2 bandos nitidamente distintos e separados, o dos humanos e os dos bestiais, os bons e os maus, os cordeiros e os lobos, somente pode ser admitida pela filosofia da realidade e pelo cristianismo, com a diferença de que este é mais conseqüente, pois cria um juiz universal, que tem a seu cargo a tarefa da classificação de cada indivíduo num dos 2 grupos.”

Quando, no verão de 1873, o general Kauffmann caiu, como um vendaval, sobre a tribo tártara dos jomudas, incendiou suas tendas, massacrou, ‘à boa maneira caucasiana’, como rezava a ordem, as mulheres e as crianças, invocava ele também a necessidade inevitável de submeter a vontade ‘desviada e hostil’ daqueles selvagens, para reduzi-los aos ‘vínculos coletivos’, afirmando que os meios postos em prática por ele eram os mais eficazes para conseguir tal coisa; e já se sabe, além do mais, que os fins justificam os meios. O que verificamos é que o general conquistador era um pouco menos cruel, pois não lhe ocorria, além de tudo, rir-se dos jomudas, enganando-os com a fábula de que, ao exterminá-los, como ‘compensação’, não fazia mais que render homenagem à sua própria vontade, acatando-a como ‘igualmente legítima’. Neste conflito, os eleitos são ainda, em última instância, os filósofos da realidade, que dizem agir de conformidade com a verdade e a ciência, e que portanto são chamados a definir o que quer dizer a superstição, o preconceito, a brutalidade, o que são as tendências malignas do caráter e quando é que devem ser indicadas a dominação e a força como meios de compensação.”

No fato de ver implícito na pena um direito próprio do criminoso é que se reconhece e se honra a este como um ser racional (Hegel, Filosofia do Direito, § 100, nota).”

Não precisamos ver como, pouco a pouco, vai o Sr. Dühring navegando para as águas tranqüilas da construção de seu Estado socialitário do futuro, no qual teremos oportunidade, numa manhã de bom tempo, de fazer-lhe uma visita. Basta-nos o que foi dito atrás para compreender que a completa igualdade entre as 2 vontades fica liquidada desde o momento e no ponto exato em que qualquer uma delas chegue a desejar alguma coisa. Compreendemos, desse modo, que, desde o momento em que deixam de ser vontades humanas como tais e passam a ser vontades reais, individuais, acabou-se a igualdade das vontades de 2 homens reais e concretos. Compreendemos que a infância, a loucura, o que ele chama de bestialidade, a suposta superstição, os preconceitos denunciados, a presumida incapacidade de um lado e o prurido de humanidade de outro, o domínio da verdade e das ciências, ou seja, que a mínima diferença do ponto de vista qualitativo entre as 2 vontades, ou no tocante à inteligência que as orienta, justificam uma desigualdade que pode chegar até a submissão. Para que continuar, quando já o próprio Sr. Dühring pulveriza tão radicalmente, em seus próprios fundamentos, o seu edifício da igualdade?”

Foram precisos muitos milhares de anos e, de fato, passaram, antes que aquela idéia primitiva da igualdade relativa inspirasse, como um corolário, a idéia da igualdade dentro da sociedade e do Estado, e muito mais tempo seria preciso até que esta dedução se impusesse como algo evidente e natural.”

A invasão do ocidente da Europa pelos germanos varreu por vários séculos toda idéia de igualdade, levantando, pouco a pouco, uma hierarquia social e política tão complicada como até então não se conhecera; entretanto, ao mesmo tempo, a invasão germânica arrastava consigo, para o mesmo movimento histórico. todos os países do ocidente e do centro da Europa, criando, pela primeira vez, uma área compacta de cultura e sobre esta área erigindo também pela 1ª vez na história, um sistema de Estados predominantemente nacionais, que se influenciavam e se contrapunham uns aos outros.”

Além disso, no bojo da Idade Média feudal, entrou em gestação a classe chamada a proclamar quando atingisse a idade madura, o postulado da igualdade humana moderna: a burguesia.” Esses artesãos são cheios de artes!

O comércio extra-europeu, que até então se realizava somente entre a Itália e os portos do Levante, torna-se extensivo agora à América e à Índia e logo ultrapassa em importância o intercâmbio entre muitos países europeus e mesmo o comércio interior destes países. O ouro e a prata da América inundaram a Europa e penetraram, como um ácido corrosivo, em todos os poros, fendas e vácuos da sociedade feudal.”

A passagem do artesanato para a manufatura pressupõe a existência de um certo número de operários livres – livres, de um lado, dos entraves gremiais e, de outro, donos dos meios de explorarem, por si próprios, a sua força de trabalho – capazes de estabelecer contrato com o fabricante, vendendo-lhe a sua força de trabalho, e que, portanto, sejam capazes de contratar de igual para igual.”

Por todas as partes se erguiam privilégios locais, barreiras alfandegárias para cada produto, leis de exceção de todo o gênero, prejudicando o comércio não só dos estrangeiros e dos habitantes das colônias, mas até, muitas vezes, de categorias inteiras dos próprios súditos do país; por todas as partes, inúmeros privilégios gremiais barravam-lhes o caminho e se antepunham ao desenvolvimento da manufatura.”

Embora proclamado este postulado da igualdade de direitos no interesse da indústria e do comércio, não havia mais remédio senão torná-lo extensivo também à grande massa de camponeses que, submetida a todas as nuanças de vassalagem, que chegava até a servidão completa, passava a maior parte de seu tempo trabalhando gratuitamente nos campos do nobre senhor feudal, além de ter de pagar a ele e ao Estado uma infinidade de tributos.” “E como a sociedade não vivia mais num império mundial como o romano, mas sim dividida numa rede de Estados independentes, que mantinham entre si relações de igualdade e tinham chegado a um grau quase burguês de desenvolvimento, era natural que aquelas tendências adquirissem um caráter geral, ultrapassando as fronteiras dos Estados, e era natural, portanto, que a liberdade e a igualdade fossem proclamadas direitos humanos. Para compreender o caráter especificamente burguês de tais direitos humanos, nada mais eloqüente que a Constituição norte-americana, a primeira em que são definidos os direitos do homem, na qual, ao mesmo tempo, se sanciona a escravidão dos negros, então vigente nos Estados Unidos, e se proscrevem os privilégios de classe, enquanto que os privilégios de raça são santificados.”

E ao movimento da igualdade burguesa acompanha, também, como a sombra ao corpo, o movimento da igualdade proletária.” “Os proletários colhem a burguesia pela palavra: é preciso que a igualdade exista não só na aparência, que não se circunscreva apenas à órbita do Estado, mas que tome corpo e realidade, fazendo-se extensiva à vida social e econômica. E, desde que a burguesia francesa, sobretudo depois da Grande Revolução, passou a considerar em primeiro plano a igualdade burguesa, o proletariado francês coloca, passo a passo, as suas próprias reivindicações, levantando o postulado da igualdade social e econômica, e, a partir dessa época, a igualdade se converte no grito de guerra do proletariado, e, muito especialmente, do proletariado francês.”

Este postulado da igualdade não é mais que uma explosão do instinto revolucionário e somente isso é que o justifica. Outras vezes, no entanto, nasce esse postulado como reação contra o postulado de igualdade da burguesia e tira dele muitas conseqüências avançadas, mais ou menos exatas, sendo utilizado como meio de agitação para levantar os operários contra os capitalistas, usando para isso frases tomadas dos próprios capitalistas e, considerado desse aspecto, se organiza e cai por terra esse postulado juntamente com essa mesma liberdade burguesa.” “abolição das classes”

Como vemos, a idéia da igualdade, tanto na sua forma burguesa como na proletária, é, por si mesma, um produto histórico que somente podia tomar corpo em virtude de determinadas condições históricas, as quais, por sua vez, tinham por trás de si um grande passado. Está longe, pois, de ser uma verdade eterna. E se alguma coisa é atualmente evidente para o grande público – num ou noutro sentido – se, como diz Marx – alguma coisa ‘possui já a completa estabilidade de um preconceito popular’, não há de ser devido à sua verdade axiomática, mas por ser resultado da difusão generalizada e da permanente atualidade das idéias do século XVIII. Portanto, se o Sr. Dühring pode se dar ao luxo de colocar os seus 2 homens a viver num plano de igualdade, isso se dá, pura e simplesmente, porque para o povo, devido a esse preconceito, parece essa igualdade ser a coisa mais natural do mundo. Não esqueçamos que o Sr. Dühring chama de filosofia natural à sua filosofia, por ser proveniente de toda uma série de coisas que parecem a ele naturalíssimas.”

PARTE I. FILOSOFIA MORAL E DIREITO. CAPÍTULO XI. LIBERDADE E NECESSIDADE

Comecei por dedicar-me ao estudo da jurisprudência e não só consagrei a ela os 3 anos usuais da preparação teórica universitária, como ainda mais 3 anos da prática judicial, ocupados por um constante estudo, principalmente destinado a aprofundar o seu conteúdo científico … Também enfrentaria seguramente a crítica das instituições de direito privado e suas correspondentes imperfeições jurídicas, com idêntico domínio da matéria, se não estivesse certo de conhecer todos os pontos fracos desta especialidade, da mesma forma que conhecia os seus pontos fortes.”

os estudos jurídicos primários do Sr. Marx, tão descuidados, segundo ele mesmo confessa”

Mas observemos de perto os conscienciosos estudos especializados e o profundo domínio da ciência, adquirido por nosso jurista, durante os 3 anos de prática judiciária.”

O Ministério Público, mergulhado no direito nacional prussiano, passou por alto, da mesma forma que o Sr. Dühring, a diferença essencial que distingue o preceito francês, concreto e preciso, da confusa imprecisão da norma prussiana, e, desse modo, pretendeu envolver Lassalle num processo tendencioso, tendo saído fragorosamente derrotado. Afirmar que o direito processual francês, assim como o prussiano, admite uma absolvição de instância, uma ‘meia-absolvição’, exige uma audácia que só se pode permitir em quem desconhece completamente o moderno direito francês. O direito francês admite apenas, com relação ao processo penal, uma absolvição ou uma condenação – não há meio termo.” “Não temos outro remédio senão concluir que o Sr. Dühring ignora, de modo absoluto, o único Código Civil moderno que se baseia nas conquistas sociais da Grande Revolução Francesa e que traduz estas conquistas para a linguagem jurídica: o moderno direito francês.” “o Sr. Dühring ignora completamente não apenas o único direito moderno, o direito francês, como demonstra mesmo idêntica incultura com respeito ao único direito germânico que se desenvolveu até os nossos dias, estendendo-se aos 4 cantos do mundo, fora de qualquer influência romana: o direito inglês.”

O que poderá significar o mundo de língua inglesa com o amálgama pueril de sua linguagem, ao lado de nosso vigoroso e antiquíssimo idioma?’ Basta-nos responder a isto com as palavras de Spinoza: ‘Ignorantia non est argumentum’.

Depois do que acabamos de expor, somos forçados a concluir que os conscienciosos estudos especializados do Sr. Dühring se reduziram a 3 anos de esforços teóricos consagrados ao Corpus Juris e outros 3 anos de preocupações práticas ao nobre Direito Nacional Prussiano. Estudos bastante meritórios, sem dúvida, e que são suficientes para um respeitabilíssimo juiz distrital ou para um senhor advogado prussiano. Mas quando se deseja criar uma filosofia do direito que seja válida para todos os mundos e todos os tempos, achamos que não seria demais acumular um pequeno conhecimento das instituições jurídicas de países como a França, a Inglaterra e os Estados Unidos da América, que representaram na História, e ainda representam, um papel bastante diferente que o direito desse recanto da Alemanha onde floresce o direito nacional prussiano.”

Também o anti-semitismo, tendo ou não importância e que é levado a extremos ridículos, merecendo o entusiasmo do Sr. Dühring, nos demonstra a mesma qualidade, se não especificamente prussiana, pelo menos característica de uma determinada região da Prússia: o Leste do Elba.”

O socialismo é a única força capaz de fazer frente a Estados de população com uma forte mescla judia.’ (Estados de mescla judia! Que linguagem!)”

o direito nacional prussiano, esse código ilustrado do despotismo patriarcal, escrito num alemão que se parece com o que aprendeu o Sr. Dühring, código que parece estar cheio da era pré-revolucionária, pelas suas glórias morais, pelo seu estilo vago e pela falta de consciência jurídica, bem como pelos açoites que adotava como meio de tortura e como pena.”

A liberdade seria, pois, a linha média entre a razão e o instinto, entre a inteligência e a irreflexão; poder-se-ia determinar o grau de liberdade, em cada indivíduo, de modo empírico, por meio de uma ‘equação pessoal’, para dizê-lo em linguagem astronômica.”

Essa 2ª definição da idéia da liberdade, que se choca flagrantemente com a 1ª, não é mais do que uma fraca vulgarização da filosofia hegeliana. Foi Hegel o primeiro que soube expor de um modo exato as relações entre a liberdade e a necessidade.”

O livre arbítrio não é, portanto, de acordo com o que acabamos de dizer, senão a capacidade de decisão com conhecimento de causa. Assim, pois, quanto mais livre for o juízo de uma pessoa com relação a um determinado problema, tanto mais nítido será o caráter de necessidade determinado pelo conteúdo desse juízo; ao contrário, a falta de segurança que, baseada na ignorância, parece escolher, livremente, entre um mundo de possibilidades distintas e contraditórias, está demonstrando, desse modo, justamente a sua falta de liberdade, está assim demonstrando que se acha dominada pelo objeto que pretende dominar.”

O fogo, obtido dessa forma, foi que permitiu ao homem o domínio sobre uma força da natureza, emancipando-o definitivamente das limitações do mundo animal. A máquina a vapor não poderá jamais representar um passo tão gigantesco na história do homem, por mais que apareça, ante nossos olhos, como a representação de todas essas gigantescas forças produtivas a ela incorporadas e sem as quais não seria possível instaurar um regime social livre de todas as diferenças de classe, no qual desapareçam as preocupações com relação aos meios de subsistência individual e se possa falar, pela primeira vez, de uma liberdade verdadeiramente humana, de uma vida em harmonia com as leis naturais que conhecemos.”

para essa filosofia, a história, focalizada concretamente, se divide em 2 grandes épocas, a saber: 1) do estado da matéria idêntica a si mesmo até a Revolução Francesa; e 2) da Revolução Francesa até o Sr. Dühring.” HAHAHAHA

Os poucos milênios a que se pode remontar a recordação histórica, por meio de documentos originais, para estabelecer a estrutura da humanidade até os nossos dias, não significam grande coisa, quando se pensa na série de milênios que ainda estão por vir … O gênero humano, considerado como um todo, é ainda muito jovem, e, quando chegar o dia em que as documentações científicas retrospectivas possam operar com dezenas de milhares e não apenas com milhares de anos, o caráter espiritualmente pueril e incipiente de nossas instituições ter-se-á imposto, indiscutivelmente, como sendo uma hipótese evidente sobre a nossa época, que será, então, considerada como a mais primitiva das antiguidades.” “É preciso que se seja um Richard Wagner filósofo – embora sem o mesmo talento – para não se compreender que todos os desprezos, que se costumam lançar sobre a história humana anterior aos nossos dias acabam por se voltar, necessariamente, contra o próprio resultado final de suas investidas, a chamada filosofia da realidade.”

É preciso viver a vida, a vida íntegra. O Sr. Dühring nos proíbe apenas duas coisas: ‘a imundície e o uso do tabaco’ e as bebidas e alimentos que ‘provocam sensação de nojo ou contêm qualquer outra qualidade contrária às sensações delicadas’. Mas como, no seu curso de economia, o Sr. Dühring dedica uma série de ditirambos à destilação de aguardente, devemos por isso entender que a sua proibição não é extensiva a estas bebidas, mas somente ao vinho e à cerveja. Proíbe-nos, também, o uso da carne e essa proibição eleva a filosofia da realidade àquelas alturas em que se colocou, em seu tempo, com tanto êxito, Gustav Strouve: nas alturas da mais pura futilidade.”

PARTE I. FILOSOFIA DIALÉTICA. CAPÍTULO XII. QUANTIDADE E QUALIDADE

a contradição na realidade, a névoa que parece levantar-se dos pretendidos mistérios da lógica, demonstrando a inutilidade do incenso que se gastou, aqui e ali, em homenagem ao fetiche de barro da dialética da contradição, grosseiramente talhado e burilado na esquemática dos antagonismos do mundo.”

Na sua História Crítica, o Sr. Dühring focaliza, de um modo completamente diferente, a dialética da contradição e nela, principalmente, a doutrina de Hegel: ‘Na lógica hegeliana, ou melhor, na teoria do logos, o contraditório não reside no pensamento, que, por sua própria natureza, só pode ser representado como função subjetiva e consciente, mas que existe objetivamente e pode ser apalpado, digamos, de um modo corporal, nas coisas e nos próprios fenômenos; ou seja, o contra-senso não é de fato uma combinação impossível de pensamentos, mas sim uma potência real. A realidade do absurdo é o primeiro artigo de fé na unidade hegeliana da lógica e da falta de lógicaQuanto mais contraditório, mais verdadeiro, ou melhor, quanto mais absurdo, mais verossímil. Esta máxima, que nem sequer é nova, pois provém da teologia da revelação e da mística, é a expressão pura e simples do chamado principio dialético.’

Considerando-se o papel de suma importância que a chamada dialética da contradição tem desempenhado na filosofia, desde os gregos antigos até os filósofos atuais, mesmo um adversário um pouco mais forte do que o Sr. Dühring sentir-se-ia na obrigação de lançar contra ela argumentos que não fossem apenas uma afirmação e umas tantas injúrias.”

A inteligência que só sabe pensar metafisicamente não pode, de modo algum, passar da idéia do repouso à idéia do movimento, porque o obstáculo da contradição lhe barra o caminho. Para os que assim pensam, o movimento é, como contradição, alguma coisa de totalmente inconcebível.” “E, se o simples movimento mecânico, a simples mudança de um para outro lugar, contém uma contradição, suponha-se então a série de contradições que estarão contidas nas formas superiores de movimento da matéria, e, em particular, na vida orgânica e na sua evolução.” “ao cessar a contradição, cessa a vida e sobrevém a morte.”

Não há uma contradição no fato de que uma grandeza negativa não possa ser quadrado de nenhuma outra, embora toda grandeza negativa multiplicada por si mesma dê um quadrado positivo? A raiz quadrada de -1 é, pois, não somente uma contradição, mas simplesmente uma contradição absurda, um verdadeiro contra-senso. Entretanto, é, em muitos casos, o resultado necessário de uma operação matemática exata; onde estariam mesmo as matemáticas, tanto as elementares como as superiores, se lhes fosse proibido operar com a raiz quadrada de -1?”

Quando se tem conhecimento de como se reduziu a ‘teoria do ser’ de Hegel a esta vulgaridade de forças que se movimentam em direção determinada, mas não por um processo de contradições, o melhor que se tem a fazer é evitar cuidadosamente qualquer aplicação de um tal lugar comum. § Um outro pretexto em que se apoia o Sr. Dühring para dar vazão à sua cólera anti-dialética é O Capital de Marx.”

Embora já naquela época incorresse no deslize de confundir a dialética marxista com a hegeliana, não tinha ainda perdido por completo a capacidade de distinguir o método dos resultados conseguidos por meio dele, nem tampouco o dom de compreender que, para refutar de um modo concreto estes resultados, não basta lançar por terra, de um modo geral, o método.

Mas a verdadeira surpresa que nos tinha reservado o Sr. Dühring é a de que, do ponto de vista marxista, ‘em última análise tudo é uno’, ou seja, que, para Marx, por exemplo, capitalistas e operários assalariados, regimes de produção feudal, capitalista e socialista, ‘tudo é uno’ e acabamos, no fim de contas, por concluir que Marx e o Sr. Dühring são também uno e o mesmo. Para não cair em tal tolice e em semelhante simplismo, não temos mais que um caminho, que é o de supor que, pronunciando a palavra ‘dialética’, o Sr. Dühring se vê transportado automaticamente para um estado de irresponsabilidade, no qual, partindo de uma idéia de balbúrdia e confusão, acaba por achar que tudo é a mesma coisa, parecendo-lhe que é ‘um todo’ tudo quanto diz e faz.”

Faz com Marx exatamente a mesma coisa que com Darwin. Constrói um Marx imaginário, feito à medida de suas forças, para poder, logo depois, triunfar sobre ele.”

Assim, por exemplo, em O Capital de Marx, toda a seção 4a., dedicada ao estudo da produção da mais-valia relativa ao âmbito da corporação, da divisão do trabalho, e da manufatura, da maquinaria e da grande indústria, contém inúmeros casos de simples mudanças quantitativas que fazem transformar-se a qualidade e, de mudanças quantitativas que fazem com que se transforme a qualidade das coisas podendo-se dizer, portanto, para usar uma expressão que tanta indignação provoca no Sr. Dühring, que a quantidade se converte em qualidade e vice-versa. Temos, por exemplo, o fato de que a colaboração de muitas pessoas, a fusão de muitas forças numa só força total, cria, como diz Marx, uma ‘nova potência de forças’ que se diferencia, de modo essencial, da soma das forças individuais associadas.”

A teoria molecular, aplicada à química moderna e desenvolvida cientificamente pela primeira vez por Laurent e Gerhardt, descansa nesta mesma lei.” M.

Trata-se das séries homólogas de combinações de carbono, muitas das quais já são conhecidas, cada uma delas tendo a sua própria forma algébrica sintética. Assim, pois, se, do mesmo modo que os químicos, chamarmos um, átomo de carbono de C, um átomo de hidrogênio de H, um átomo de oxigênio de O e por n o número dos átomos de carbono encerrados em cada combinação, podemos expor as fórmulas moleculares de algumas dessas séries, do seguinte modo:

Série da parafina normal: CnH2n + 2

Série de álcoois primários: CnH2n + 20

Série dos ácidos graxos monobásicos: CnH2nO2

Se tomarmos como exemplo a última dessas séries e adotarmos, sucessivamente, n = 1, n = 2, n = 3, etc., teremos os seguintes resultados (deixando de pôr os isômeros):

ácido fórmico – CH2O2 – ponto de ebulição: 100° – ponto de fusão: 1°

ácido acético – C2H4O2 – ponto de ebulição: 118° – ponto de fusão: 17°

ácido propriônico – C3H6O2 – ponto de ebulição: 140° – ponto de fusão: —

ácido butírico – C4H8O2 – ponto de ebulição: 162° – ponto de fusão: —

ácido valeriânico – C2H10O2 – ponto de ebulição: 175° – ponto de fusão: –,

e assim sucessivamente, até chegar ao:

ácido melíssico (C30H60O2), que não se funde até os 80° e não tem ponto de ebulição pela simples razão de que esse ácido se decompõe ao se evaporar. Temos, pois, aqui, toda uma série de corpos qualitativamente distintos, formados pela simples adição quantitativa de elementos que são, além do mais, agregados sempre na mesma proporção. Esse fenômeno ainda se torna mais claro quando todos os elementos, que entram na composição, variam na mesma proporção e na mesma quantidade, como acontece com a série das parafinas normais (CnH2n+2). A primeira fórmula é o metano (CH4), que é um gás; a fórmula mais elevada que se conhece é o hecdecano (C16H34), corpo sólido formado por cristais incolores, que se funde a 21°, e que só atinge o seu ponto de ebulição a 278°. Em ambas as séries basta acrescentar CH2 ou seja, 1 átomo de carbono e 2 de hidrogênio, à fórmula molecular do membro anterior da série para que se tenha um corpo novo; donde se conclui que uma mudança puramente quantitativa da fórmula molecular faz surgir um corpo qualitativamente diferente.”

Napoleão descreve o combate travado entre a cavalaria francesa, cujos soldados eram pouco afeitos à equitação, mas que eram, no entanto, disciplinados, e os mamelucos, cuja cavalaria era a melhor do seu tempo para os combates individuais, mas que eram indisciplinados. Eis o que nos diz Napoleão: ‘Dois mamelucos sobrepujavam, indiscutivelmente, a 3 franceses; 100 mamelucos faziam frente a 100 franceses; 300 franceses venciam 300 mamelucos e 1000 franceses derrotavam, inevitavelmente, 1500 mamelucos’. Da mesma forma que, em Marx, a soma do valor de troca tinha que alcançar um limite mínimo determinado, embora variável, para se converter em capital, vemos que, na descrição napoleônica, o destacamento de cavalaria tem que alcançar um determinado limite mínimo para que a força da disciplina que se encerra na ordem unida de combate, e no emprego das forças, com base num só plano, possa se manifestar e se desenvolver até o ponto de poder aniquilar massas numericamente superiores de uma cavalaria irregular, composta de melhores montarias e de soldados tão bravos pelo menos quanto os outros.”

PARTE I. FILOSOFIA DIALÉTICA. CAPÍTULO XIII. NEGAÇÃO DA NEGAÇÃO

SEM MISERICÓRDIA DE NÓS, ENGELS JÁ ABRE O CAPÍTULO COM UM PETARDO DE LONGO ALCANCE DO SENHOR DããRING: “Este esboço histórico (o da gênese da chamada acumulação primitiva do capital, na Inglaterra) é, até agora, o que há de melhor, relativamente, no livro de Marx, e ainda poderia ter sido melhor se não se apoiasse na agudeza erudita e, além disso, na dialética. Recorre à negação da negação de Hegel para que ponha a seu serviço, na falta de meios mais claros e melhores, os seus serviços de parteira, ajudando-o a fazer brotar o futuro das entranhas do passado. A abolição da propriedade individual, que se processou, por esse modo, a partir do século XVI, é a primeira negação. Esta será seguida por outra, caracterizada como negação da negação e, portanto, como a restauração da ‘propriedade individual’, mas de uma forma mais elevada, baseada na propriedade comum do solo e dos instrumentos de trabalho. O fato de o Sr. Marx qualificar, em seguida, esta nova ‘propriedade individual’ também com o nome de ‘propriedade social’ revela a unidade hegeliana de caráter superior, na qual a contradição, conforme se verifica, fica cancelada; ou seja, de acordo com o já conhecido jogo de palavras, a contradição se mantém, ainda que superada. A expropriação dos expropriadores é, de acordo com isso, o resultado automático da realidade histórica, em suas circunstâncias materiais externas … Naturalmente, nenhuma pessoa que reflita deixar-se-á convencer só por terem sido invocados os disparates de Hegel, e a negação da negação nada mais é que um dos tantos, da necessidade de se implantar a comunidade da terra e dos capitais … Além disso, a nebulosa ambigüidade das idéias de Marx [Kant e os astrônomos póstumos conheciam essa nebulosa? Onde ela fica?] não surpreenderá a quem já sabe que ela pretende rimar com a dialética de Hegel, tomando-a como sua base científica, ou melhor, tomando como conclusão o absurdo a que nos querem levar. Para quem desconhece estes trechos, advertiremos que a primeira negação é, em Hegel, a idéia do pecado original do Catecismo e a segunda é a idéia de uma unidade superior que conduz à redenção do homem. E, sobre uma farsa desse gênero, tomada à religião, não se pode, facilmente, fundar a lógica dos fatos. O Sr. Marx se obstina em permanecer no mundo nebuloso de sua propriedade ao mesmo tempo individual e social, deixando que os seus adeptos resolvam por si esse profundo enigma da dialética.”

O Sr. Dühring nos diz que é ‘um mundo nebuloso’ e, ainda que pareça estranho, dessa vez ele está com a razão. O pior é que, como sempre, não é Marx que vive extraviado nesse mundo nebuloso, mas, de fato, é o próprio Sr. Dühring. Com efeito, como já vimos, o seu desembaraço no manejo do método hegeliano do ‘delírio’ permitiu-lhe definir, sem dificuldade, o que conteriam os volumes ainda não publicados de O Capital, e ainda aqui lhe é fácil retificar Marx de acordo com Hegel, atribuindo-lhe a unidade superior de uma propriedade sobre a qual Marx não disse uma só palavra.”

Para qualquer pessoa que saiba ler, isto significa que a propriedade coletiva se tornará extensiva à terra e aos demais meios de produção, e a propriedade individual se limitará aos produtos, ou aos objetos destinados ao consumo. E, para que essa idéia possa ser compreendida mesmo por crianças que tenham 6 anos, Marx, na página 40, fala de ‘uma associação de homens livres que trabalham com meios comuns de produção e que despendem suas forças de trabalho individuais, conscientemente, como uma força de trabalho social’, isto é, de uma associação organizada de forma socialista, e acrescenta: ‘O produto coletivo da associação é um produto social. Uma parte desse produto volta a servir como meio de produção. Continua sendo social. Mas uma outra parte é absorvida como meio de vida pelos membros da associação. Deve, portanto, ser distribuída entre eles.’ Isto está mais do que claro e até mesmo uma cabeça hegelianizada, como a do Sr. Dühring, deveria compreendê-lo.”

Mas parece que chegou o momento em que o Sr. Dühring também se converte de quantidade em qualidade.”

Nas páginas 791 e seguintes, [Marx] expõe os resultados finais das investigações econômicas e históricas, que constam das 50 páginas anteriores, sobre a chamada acumulação primitiva do capital. Antes de sobrevir a era capitalista, dominava, pelo menos na Inglaterra, a pequena indústria baseada na propriedade privada do operário sobre os meios de produção. A chamada acumulação primitiva do capital se caracterizou, nestas condições, pela expropriação desses produtores imediatos, isto é, pela abolição da propriedade privada, baseada no trabalho do próprio produtor. Efetivou-se tal coisa porque aquele regime de pequena indústria era compatível somente com as proporções mesquinhas e primitivas da produção e da sociedade, engendrando, tão logo os meios materiais de produção atingiram um certo grau de progresso, a sua própria destruição. Esta destruição, que consistiu na transformação dos meios individuais e dispersos de produção em meios de produção socialmente concentrados, constitui a pré-história do capital. A partir do momento em que os operários se transformam em proletários, em que as suas condições de trabalho passam a ter a forma do capital, a partir do instante em que o regime capitalista de produção começa a se mover por sua própria conta, a socialização do trabalho e a mudança do sistema de exploração da terra e dos demais meios de produção, e que, portanto, há a expropriação dos proprietários privados individuais, é preciso, para continuarem progredindo, que seja adotada uma nova forma.”

Cada capitalista devora muitos outros. E, ao mesmo tempo em que alguns capitalistas expropriam muitos outros, desenvolve-se, em grau cada vez mais elevado, a forma cooperativa do processo de trabalho, a aplicação técnica e consciente da ciência, sendo a terra cultivada mais metodicamente, os instrumentos de trabalho tendem a alcançar formas que são manejáveis unicamente pelo esforço combinado de muitos, economizam-se os meios da produção, em sua totalidade, ao serem aplicados pela coletividade come meios de trabalho social, o mundo inteiro se vê envolvido na rede do mercado mundial, e, com isso, o regime capitalista passa a apresentar um caráter internacional cada vez mais acentuado. E, deste modo, enquanto vai diminuindo progressivamente o número dos magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta, no pólo oposto, proporcionalmente, a pobreza, a opressão, a escravização, a degradação e a exploração. Mas, ao mesmo tempo, cresce a revolta da classe operária e esta se torna cada dia mais numerosa, mais disciplinada, mais unida e organizada pelo próprio método capitalista de produção. O monopólio capitalista transforma-se nas grilhetas do regime de produção que com ele e sob as suas normas floresceu. A concentração dos meios de produção e a socialização do trabalho chegam a um ponto em que se tornam incompatíveis com a sua envoltura capitalista. E a envoltura se desagrega. Soou a hora final da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados.”

Vemos, assim, que Marx, ao encarar esse fenômeno como um caso de negação da negação, não tem em mente a idéia de demonstrá-lo, por meio desse argumento, como um fenômeno de necessidade histórica. Pelo contrário: somente depois de haver provado historicamente o fenômeno que já se passara parcialmente e que terá necessariamente que se desenvolver daqui por diante, é que o define como um fenômeno sujeito em sua realização, a uma determinada lei dialética.”

A lógica formal também é, antes de mais nada e acima de tudo, um método de perscrutar novos resultados progressivos do conhecido ao desconhecido. [e não um expediente meramente probatório]”

As matemáticas elementares, que operam com grandezas constantes, se movem, pelo menos em termos gerais, dentro das fronteiras da lógica formal; as matemáticas das grandezas variáveis, cujo setor mais importante é o cálculo infinitesimal, não são, em essência, nada mais que a aplicação da dialética aos problemas matemáticos. (…) Mas, a rigor, quase todas as demonstrações das matemáticas superiores, a começar pelas introdutórias ao cálculo diferencial, são falsas do ponto de vista das matemáticas elementares.” “Querer provar alguma coisa, pela simples dialética, a um metafísico [formalista do pensamento] tão declarado como o Sr. Dühring, seria perder tempo, e seria tão infrutífero como aconteceu quando Leibniz e seus discípulos quiseram provar, aos matemáticos de sua época, as operações do cálculo infinitesimal. (…) Aqueles cavalheiros foram, entretanto, pouco a pouco, pelo menos aqueles que sobreviveram àquela etapa, se rendendo à nova doutrina, embora resmungando, não por que esta convencesse, mas por que a verdade se impunha cada dia com mais força. O Sr. Dühring anda pelos 40, conforme sua própria informação, e podemos garantir que passará pela mesma experiência que aqueles matemáticos, se alcançar a idade avançada, como é, aliás, nosso desejo.”

Tomemos, por exemplo, um grão de cevada. Todos os dias, milhões de grãos de cevada são moídos, cozidos, e consumidos, na fabricação de cerveja. Mas, em circunstâncias normais e favoráveis, esse grão, plantado em terra fértil, sob a influência do calor e da umidade, experimenta uma transformação específica: germina. Ao germinar, o grão, como grão, se extingue, é negado, destruído, e, em seu lugar, brota a planta, que, nascendo dele, é a sua negação. E qual é a marcha normal da vida dessa planta? A planta cresce, floresce, é fecundada e produz, finalmente, novos grãos de cevada, devendo, em seguida ao amadurecimento desses grãos, morrer, ser negada, e, por sua vez, ser destruída. E, como fruto desta negação da negação, temos outra vez o grão de cevada inicial, mas já não sozinho, porém ao lado de 10, 20, 30 grãos. Como as espécies vegetais se modificam com extraordinária lentidão, a cevada de hoje é quase igual à de 100 anos atrás. Mas tomemos, em vez desse caso, uma planta de ornamentação ou enfeite, por exemplo, uma dália ou uma orquídea. Se tratarmos a semente e a planta que dela brota com os cuidados da arte da jardinagem, obteremos como resultado deste processo de negação da negação não apenas novas sementes, mas sementes qualitativamente melhoradas, capazes de nos fornecer flores mais belas; cada repetição deste processo, cada nova negação da negação, representará um grau a mais nesta escala de aperfeiçoamento. E um processo semelhante se dá com a maioria dos insetos, como, por exemplo, com as mariposas. Nascem, estas, também, do ovo, por meio da negação do próprio ovo, destruindo-o, atravessando depois uma série de metamorfoses até chegar à maturidade sexual, se fecundam e morrem por um novo ato de negação, tão logo se consume o processo de procriação, que consiste em pôr a fêmea os seus numerosos ovos. Por enquanto nada mais nos interessa, nem que não apresente o processo a mesma simplicidade noutras plantas e animais, que não produzem uma, mas várias vezes, sementes, ovos ou crias, antes que lhes sobrevenha a morte; a única coisa que nos interessa é demonstrar que a negação da negação é um fenômeno que se dá realmente nos 2 reinos do mundo orgânico, o vegetal e o animal. E não somente nestes reinos. Toda a geologia não é mais que uma série de negações negadas, uma série de desmoronamentos de formações rochosas antigas, sobrepostas umas às outras, e de justaposição de novas formações. A sucessão começa porque a crosta terrestre primitiva, formada pelo resfriamento da massa fluida, vai-se fracionando pela ação das forças oceânicas, meteorológicas e químico-atmosféricas, formando-se, assim, massas estratificadas no fundo do mar. Ao emergir, em certos pontos, as matérias do fundo do mar à superfície das águas, parte destas estratificações se vêem submetidas novamente à ação da chuva, às mudanças térmicas das estações, à ação do hidrogênio e dos ácidos carbônicos da atmosfera; e a essas mesmas influências se acham expostas as massas pétreas fundidas e logo depois esfriadas que, brotando do seio da terra, perfuram a crosta terrestre. Durante milhares de séculos vão-se formando, dessa forma, novas e novas camadas que, por sua vez, são novamente destruídas em sua maior parte e, algumas vezes, são utilizadas como matéria para a formação de outras novas camadas. Mas o resultado é sempre positivo em qualquer hipótese: a formação de um solo onde se misturam os mais diversos elementos químicos num estado de pulverização mecânica, que permite o desenvolvimento da mais extensa e variada vegetação.

Com as matemáticas ocorre exatamente o mesmo fato. Tomemos uma qualquer grandeza algébrica, por exemplo a. Se a negarmos, teremos -a (menos a). Se negarmos esta negação, multiplicando -a por -a, teremos +a², isto é, a grandeza positiva da qual partimos, mas num grau superior, elevada à segunda potência. Mas aqui não nos interessa que a este resultado () se possa chegar multiplicando a grandeza positiva a por si mesma, pois a negação negada é algo que se acha tão arraigado na grandeza a² que esta encerra, sempre e de qualquer modo, 2 raízes quadradas, a saber: a do a e a do -a.” “Entretanto é maior ainda a evidência com que se nos apresenta a negação da negação na análise superior, nessas ‘somas de grandezas ilimitadamente pequenas’ que o próprio Sr. Dühring considera como as supremas operações das matemáticas e que são as que vulgarmente chamamos de cálculo diferencial e integral.”

não restando, portanto, de x e y nada mais que sua razão ou proporção, despojada, por assim dizer, de toda a base material, reduzida a uma relação quantitativa da qual se eliminou a quantidade dy/dx, isto é, a razão ou proporção das 2 diferenciais de x e y, se reduz, portanto, a 0/0, mas esta fórmula nada mais é que a expressão da fórmula y/x.” “Pois bem, que fizemos neste problema, além de negar as grandezas x e y, mas negá-las não nos descartando delas, que é o modo pelo qual a filosofia formal nega a metafísica, mas sim negando-as de um modo que se ajusta à realidade da situação? Substituímos as grandezas x e y pela sua negação, chegando, assim, em nossas fórmulas ou equações a dx e dy. Isso feito, seguimos nossos cálculos operando com dx e dy como grandezas reais, embora sujeitas a certas leis de exceção e ao chegar a um determinado momento, negamos a negação, isto é, integramos a fórmula diferencial, obtendo novamente, em vez de dx e dy, as grandezas reais x e y. (…) teremos resolvido o problema contra o qual se debateram, em vão, por outros caminhos, a geometria e a álgebra elementares.

O mesmo acontece com a História. Todos os povos civilizados têm em sua origem a propriedade coletiva do solo. E, em todos esses povos, ao penetrar numa determinada fase primitiva, o desenvolvimento da agricultura, a propriedade coletiva converte-se num entrave para a produção. Ao chegar a este momento, a propriedade coletiva se destrói, se nega, convertendo-se, após etapas intermediárias mais ou menos longas, em propriedade privada. Mas, ao chegar a uma fase mais elevada de progresso no desenvolvimento da agricultura, fase essa que se alcança justamente devido à propriedade privada do solo, esta, por sua vez, se converte num obstáculo para a produção, conforme hoje se observa no que se refere à grande e à pequena propriedade. Nestas circunstâncias, surge, por força da necessidade, a aspiração de negar também a propriedade privada e de convertê-la novamente em propriedade coletiva. Mas esta aspiração não tende exatamente a restaurar a primitiva propriedade comunal do solo, mas a implantar uma forma multo mais elevada e mais complexa de propriedade coletiva que, longe de criar uma barreira ao desenvolvimento da produção, deverá acentuá-lo, permitindo-lhe explorar integralmente as descobertas químicas e as invenções mecânicas mais modernas.” Não subestime o homem: ele consegue embrulhar até a própria dialética!

UM ERRO DE ENGELS: SUBESTIMAR PLATÃO E CONGÊNERES: “A filosofia antiga era uma filosofia materialista, porém primitiva e rudimentar. Esse materialismo não seria capaz de explicar claramente as relações entre o pensamento e a matéria. A necessidade de se chegar a conclusões claras a respeito desse problema, levou à criação da teoria de uma alma separada do corpo e logo depois se passou à afirmação da imortalidade da alma e, por fim, ao monoteísmo. Desse modo, o materialismo primitivo se via negado pelo idealismo. Mas, com o desenvolvimento da filosofia, também o idealismo se tornou insustentável e, por sua vez, teve de ser negado pelo materialismo moderno. Este não é, entretanto, como negação da negação, a mera restauração do materialismo primitivo, mas, pelo contrário, corresponde à incorporação, às bases permanentes deste sistema, de todo o conjunto de pensamentos, que nos provêm de 2 milênios de progressos no campo da filosofia e das ciências naturais e da história mesma destes 2 milênios. Não se trata já de uma filosofia, mas de uma simples concepção do mundo, de um modo de ver as coisas, que não é levado à conta de uma ciência da ciência, de uma ciência à parte, mas que tem, pelo contrário, a sua sede e o seu campo de ação em todas elas. Vemos, pois, como a filosofia é, desse modo, ‘cancelada’,¹ isto é, ‘superada ao mesmo tempo que mantida’; superada, com relação à sua forma; conservada, quanto ao seu conteúdo.” A fé hegeliana no PROGRESSO ainda se encontrava no marx-engelismo, subsumida na superação do Estado em vez de na confirmação do Estado burguês, obviamente.

¹ Tudo isso que estamos vivendo hoje deve ser uma maldita maldição! As palavras têm poder!

Pois ali onde o Sr. Dühring não vê mais que ‘um jogo de palavras’ se esconde, para quem sabe ver as coisas, um conteúdo e uma realidade.”

Finalmente, até a teoria rousseauniana da igualdade, que tem apenas um eco apagado e falseado nas futilidades do Sr. Dühring, foi incapaz de se constituir sem os serviços de parteira da negação da negação hegeliana: e isto, mais de 20 anos antes do nascimento de Hegel. Longe de se envergonhar de tal coisa, essa teoria exibe, quase ostensivamente, em sua 1ª versão, a marca de suas origens dialéticas. No estado de natureza e de selvageria, os homens eram iguais; e como Rousseau considera já a linguagem uma deturpação do estado de natureza, tem razão quando aplica o critério da igualdade, assim como, ao mesmo tempo, pretendeu classificar, hipoteticamente, os homens-bestas sob a designação de ‘álalos’ (seres privados de fala). Mas estes homens-bestas, iguais entre si, levavam sobre os outros animais a vantagem de serem animais perfectíveis, de terem capacidade de desenvolvimento; eis onde está, segundo Rousseau, a fonte da desigualdade. Rousseau vê, assim, no nascimento da desigualdade um progresso, mas este progresso é contraditório, pois implica, ao mesmo tempo, num retrocesso.”

Para o poeta, o ouro e a prata, assim coma para o filósofo o ferro e o trigo, civilizaram o homem e arruinaram o gênero humano” Rousseau

Todas as instituições que nascem nas sociedades, no decorrer do processo de civilização, se convertem no inverso de sua primitiva finalidade.”

O paradoxo: “frente ao déspota, todos os homens são iguais, pois todos se reduzem a zero.”

Ao chegar a essa fase, o grau máximo de desigualdade é o ponto final que, fechando o ciclo, toca já o ponto inicial do qual partimos: ao chegar a este ponto, todos os homens são iguais, pelo fato de serem nada e, como súditos, têm todos, como única lei, a vontade de seu Senhor” Não lembrava de que Rousseau fosse tão genial também em seu tratado político (que li pela última vez em 2009), acostumado que estou apenas com sua imagem recente, a do grande educador.

A mesma força que o susteve, o derruba, e tudo se passa, de acordo com uma causa adequada e de acordo com a ordem natural”

a liberdade superior do contrato social. (…) É a negação da negação.” Idealista, i.e..

Em Rousseau, já nos encontramos, pois, com um processo quase idêntico ao que Marx desenvolve em O Capital. Além de todas as expressões dialéticas que são exatamente as mesmas empregadas por Marx, encontramos também processos antagônicos por natureza, cheios de contradições, contendo a transmutação de um extremo em seu contrário (…) Assim, já em 1754, Rousseau, que ainda não se podia exprimir pela nomenclatura hegeliana, estava, 23 anos antes do nascimento de Hegel, devorado até a medula pela peste da filosofia hegeliana, pela dialética da contradição, pela teoria do logos, pela teologia, etc., etc. E quando o Sr. Dühring, reduzindo a zero a teoria rousseauniana da igualdade, opera com os seus 2 homenzinhos triunfais, se vê forçado a deslizar por um plano perigoso, que o leva, irremediavelmente, para a negação da negação da qual está querendo fugir. (…) É divertido ver como, além de ampliar de modo benéfico o nosso horizonte visual, o próprio Sr. Dühring acaba cometendo, também, sem que se dê conta, contra a sua augusta pessoa, o horrendo crime que é o de incorrer na intolerável negação da negação.”

Quando se diz que todos esses processos têm de comum a negação da negação, o que se pretende é englobar a todos, sob esta lei dinâmica, sem se prejulgar, no entanto, de modo algum, o conteúdo concreto de cada um deles. [respondendo aos que dizem que o socialismo pretende aplicar o cálculo diferencial aos homens, hahaha!] Esta não é a missão da dialética, que tem apenas por incumbência estudar as leis gerais que presidem à dinâmica e ao desenvolvimento da natureza e do pensamento.”

Negar, em dialética, não consiste pura e simplesmente em dizer não, em declarar que uma coisa não existe, ou em destruí-la por capricho. Já Spinoza dizia: Omnis determinatio est negatio, toda determinação, toda demarcação é, ao mesmo tempo, uma negação.” “Ao se moer o grão de cevada, ou ao se matar o inseto, está-se executando, inegavelmente, o 1º ato, mas torna-se impossível o 2º. Portanto, cada espécie de coisas tem um modo especial de ser negada, que faz com que a negação engendre um processo de desenvolvimento, acontecendo o mesmo com as idéias e os conceitos.” “Não basta que saibamos que a muda de cevada e o cálculo infinitesimal se encontram sob as leis da negação da negação, para que possamos cultivar com sucesso a cevada ou para que possamos realizar operações de diferenciação ou integração, da mesma maneira que não nos é suficiente conhecer as leis que regem a determinação do som, pelas dimensões das cordas, para que saibamos tocar violino.” “Isso não obsta, porém, a que os metafísicos pretendam demonstrar que, se nos empenharmos em raciocinar sobre a negação da negação, somente poderemos utilizar este processo.” O tamborilar dos dedos no instrumento é uma negação da negação prática!

Muito antes de saber o que era dialética, o homem já pensava dialeticamente, da mesma forma por que, muito antes da existência da palavra escrita, ele já falava. Hegel nada mais fez que formular nitidamente, pela 1ª vez, esta lei da negação da negação, lei que atua na natureza e na História, como atuava, inconscientemente, em nossos cérebros, muito antes de ter sido descoberta. E se o Sr. Dühring fica aborrecido com um tal nome, e quer realizar o processo, sem que ninguém saiba que o está realizando, ainda é tempo de inventar um nome melhor.”

PARTE I. FILOSOFIA DIALÉTICA. CAPÍTULO XIV. CONCLUSÃO

Acabamos o estudo da Filosofia. Trataremos, a seguir, de outras fantasias contidas no Curso para, finalmente, examinarmos os característicos da revolução que o Sr. Dühring introduz no terreno do socialismo. Que nos havia prometido o Sr. Dühring? Tudo. E o que finalmente cumpriu? Absolutamente nada.” “apenas um eco charlatanesco e infinitamente desbotado da Lógica de Hegel”

No estudo da natureza orgânica tivemos oportunidade de ver que a filosofia da realidade, após condenar a luta pela existência e a seleção natural, de Darwin, como ‘um caso de selvageria cometida contra a humanidade’, permitia que estas teorias se esgueirassem novamente pela porta dos fundos, como fatores ativos da natureza, embora de 2ª classe. O Sr. Dühring soube endossar, além disso, no campo da biologia, uma ignorância que, desde que se tornaram habituais as conferências de vulgarização científica, já não é fácil encontrar e que, mesmo entre as senhoritas de boa sociedade, ter-se-ia que procurar com uma lanterna.”

Não consegue nem expor a sua filosofia da realidade sem insinuar ao leitor a sua repugnância contra o tabaco, contra os gatos e os judeus.” “Os pobres restos de sabedoria que nos oferece a respeito de assuntos próprios de filisteus como, por exemplo, o do valor da vida e o melhor meio de gozá-la, tem um tal caráter de vulgaridade que bastam para explicar, perfeitamente, a cólera de seu autor contra o Fausto de Goethe. Com efeito, o Sr. Dühring, não poderá perdoar jamais a Goethe, o fato de ter criado, como herói de seu drama, um ser tão imoral como Fausto, em vez de pôr em seu lugar um ilustre filósofo da realidade, como o seria Wagner.” HAHAHAHAHAHAHAAH!

Em resumo, a filosofia da realidade não é mais que, afinal de contas, para usar uma expressão de Hegel, ‘a mais vulgar lama do lamaçal alemão’, com uma fluidez e uma transparência feitas de lugares-comuns, que só pode ser tornada mais turva e mais densa com os coágulos oraculares que o seu autor nela dissolve.” “E este homem, que tanta propaganda faz de suas artes e mercadorias, ao som de fanfarras, como o mais vulgar camelô de feira, por detrás de cujas frases grandiloqüentes não se encontra nada, mas absolutamente nada, este homem tem a ousadia de chamar de charlatães a figuras como Fichte, Schelling e Hegel, o mais humilde dos quais seria, ao seu lado, um gigante! Há charlatanismo, sim: mas onde e por parte de quem?”

PARTE II. ECONOMIA POLÍTICA. CAPÍTULO I. OBJETO E MÉTODO

DIRIA QUE ERA UM ERRO TIPOGRÁFICO, MAS A EXATA REPETIÇÃO DO COMEÇO DESTE CAPÍTULO EM RELAÇÃO AO COMEÇO DO CAPÍTULO PASSADO SE JUSTIFICA, E ENGELS A USOU SEM DÓ: “Acabemos o estudo da Filosofia. Trataremos, a seguir, de outras fantasias contidas no Curso para, finalmente, examinarmos os característicos da revolução que o Sr. Dühring introduz no terreno do socialismo. Que nos havia prometido O Sr. Dühring? Tudo. E o que finalmente cumpriu? Absolutamente nada.”

A produção pode desenvolver-se sem a troca, mas esta pressupõe, sempre, necessariamente, a produção, pelo próprio fato de que o que se trocam são os produtos. Cada uma destas funções sociais sofre a influência de um grande número de fenômenos exteriores, sendo que essa influência é subordinada, em grande parte, a leis próprias e específicas. Mas, ao mesmo tempo, a produção e a troca se condicionam, a cada passo, reciprocamente e influem de tal modo uma sobre a outra, que se pode dizer que são a abcissa e a ordenada da curva econômica.” “Os habitantes da Terra do Fogo não conhecem a produção em grande escala, assim como não conhecem o comércio mundial, nem tampouco as letras de câmbio que circulam a descoberto e os inesperados craques de Bolsa.” “A Economia Política é, portanto, uma ciência essencialmente histórica. A matéria sobre que versa é uma matéria histórica, isto é, sujeita a mudança constante. Somente depois de investigar as leis específicas de cada etapa concreta de produção e de troca, como conclusão, nos será permitido formular, a título de resumo, as poucas leis verdadeiramente gerais, aplicáveis à produção e à troca, quaisquer que sejam os sistemas.”

As velhas comunidades naturais, a que nos referimos atrás, puderam viver milhares de anos, como aliás ainda perduram em nossos dias entre os índios e muitos eslavos, antes que o comércio com o mundo exterior engendrasse em seu seio as diferenças de patrimônio que deveriam acarretar a sua disposição. Ao contrário, a moderna produção capitalista, que não conta mais de 300 anos e que não se impôs mesmo depois da implantação da grande indústria, isto, é, até há uns cem anos, provocou, no entanto, durante este curto período, muitos antagonismos no regime de distribuição – de um lado a concentração de capitais em poucas mãos e, de outro, a concentração das massas não possuidoras nas cidades mais populosas – de tal modo que estes antagonismos necessariamente a farão perecer.”

Enquanto um regime de produção está-se desenvolvendo em sentido ascensional, pode contar até mesmo com a adesão e a admiração entusiasta dos que menos beneficiados sairão com o regime de distribuição ajustado a ele. Basta que se recorde o entusiasmo dos operários ingleses ao aparecer a grande indústria. E mesmo depois que este regime de produção já consolidado, constitui, na sociedade de que se trata, um regime normal, continua-se mantendo, em geral, algum contentamento com a forma de distribuição e, se se ergue alguma voz de protesto, é das fileiras da classe dominante que ela sai (Saint-Simon, Fourier, Owen), sem encontrar nem mesmo algum eco no seio da massa explorada. Há de passar algum tempo – e encaminhar-se o regime de produção, já francamente pela vertente da decadência, deve este regime já ter sido superado em parte, devem ter desaparecido, em grande proporção, as condições que justificam a sua existência, estando mesmo tomando tal vulto o seu sucessor – para que a distribuição, cada vez mais desigual, seja considerada injusta, para que a voz da massa clame contra os fatos do passado junto ao tribunal da chamada justiça eterna. Claro está que este apelo à moral e ao direito não nos faz avançar cientificamente nem uma polegada; a ciência econômica não pode encontrar, na indignação moral, por mais justificada que ela seja, nem razões nem argumentos, mas simplesmente sintomas.”

A cólera provocada no poeta tem a sua razão de ser quando se trata de descrever esses males e abusos, ou de atacar os ‘harmonizadores’ que pretendem negá-los ou atenuá-los em benefício da classe dominante mas, para compreender como a cólera prova pouco em cada caso, basta que se considere que, até hoje, em todas as épocas da História, houve matéria de sobra para alimentar os seus impulsos.” Creio que Marx & Engels diriam no mundo de hoje: vê-se que apesar de toda a decadência abissal e contínua, recrudescida em relação a nossos escritos originais, o sistema de produção mantém-se de pé. Algo deve ter escapado de nossas análises, posto que se fôra necessidade que o regime devera ceder neste período, cederia, sem falta. Parece que algo no motor da História indica que a máquina da transformação conseguiu ser parada ou desacelerada consideravelmente, e isso integra quase que uma lei interna do Capital. Nada podemos fazer, não é hora de revolução – se ela ocorre localmente, o sistema de produção em outras partes poderá sufocá-la. E claro está que não ocorrerá globalmente, pois os centros de concentração do poder capitalista não permitiriam, mesmo se houvesse um desejo da maioria massacrante da população.

Tudo o que até hoje possuímos de ciência econômica se reduz quase exclusivamente à gênese e ao desenvolvimento do regime capitalista de produção. Ela parte da crítica dos restos das formas feudais de produção e de troca, põe em relevo a necessidade de fazer desaparecer estes restos, substituindo-os por formas capitalistas, desenvolve as leis do regime capitalista de produção, com as suas formas correspondentes de troca no seu aspecto positivo, i.e., do ponto de vista em que contribuem para fomentar os fins gerais da sociedade e conclui com a crítica socialista do regime de produção do capitalismo, o que quer dizer com a exposição das leis que presidem o seu aspecto negativo, com a demonstração de que este regime de produção por força de seu próprio desenvolvimento, se aproxima de um ponto em que a sua existência se torna impossível.”

um antagonismo sempre mais profundo entre alguns capitalistas, cada vez em menor número, porém cada vez mais ricos, e uma massa de operários assalariados, cada vez mais numerosa e em geral, também mais desfavorecida e mal-retribuída” E cada vez mais grupos intermediários cães de guarda do Capital, às vezes sem acesso a nenhum filé mignon.

Para compreender em todo o seu alcance esta crítica da Economia burguesa, não era suficiente conhecer a forma capitalista de produção, de troca e de distribuição. Era preciso investigar e trazer à comparação, embora apenas em seus traços mais gerais, as formas que a precederam e que, em países menos avançados, coexistem ainda com aquela. Até hoje, esta investigação e este estudo comparativo foram realizados somente por Marx, e devemos, portanto, a seus trabalhos, quase que exclusivamente, o que até agora se pode esclarecer com relação à teoria econômica pré-burguesa.

Embora tivesse nascido, nos fins do século XVIII, em algumas cabeças geniais, a Economia Política, no sentido restrito, tal como a apresentam os fisiocratas e Adam Smith, é essencialmente um fruto do século XVIII, figurando entre as conquistas dos grandes racionalistas franceses dessa época, participando, portanto, de todas as vantagens e todos os inconvenientes do tempo. O que dissemos dos racionalistas podemos aplicar também aos economistas desse século. A nova ciência não era, para eles, uma expressão das circunstâncias e das necessidades da época em que viviam, mas, sim, um reflexo da razão eterna: as leis da produção e da troca, descobertas por eles, não possuem uma forma condicionada historicamente, com a qual se deviam revestir essas atividades, mas outras tantas leis naturais eternas, derivadas da natureza humana. Mas o homem que eles tinham em conta era, na realidade, simplesmente o homem da classe média daqueles tempos, do qual depressa deveria brotar o homem burguês moderno, reduzindo-se a sua natureza apenas a fabricar e a comerciar, sob as condições historicamente condicionadas de então.”

Instituições como a escravidão e a exploração do trabalho assalariado, às quais se vêm unir, como sua irmã gêmea, a propriedade baseada na força, devem ser investigados como formas constitutivas econômico-sociais, de autêntico caráter político, formando as mesmas, no mundo atual, o quadro fora do qual não se poderiam revelar os efeitos das leis naturais da Economia.”

Assim, desligada já, felizmente, a distribuição de todo o contato com a produção e a troca, pode, então, realizar-se, por fim, o grande acontecimento.”

Um homem, na qualidade de indivíduo, ou seja, desligado de toda a conexão com quaisquer outros homens, não pode ter deveres. Não há, para ele, outros imperativos que o de sua vontade.’ Quem há de ser este homem, desligado de seus deveres e concebido como indivíduo isolado a não ser o fatal ‘proto-judeu Adão’ ainda no paraíso, despido de todo o pecado, pela simples razão de não ter com quem cometê-lo? Mas também a este Adão, da Economia da realidade, está reservado o seu pecado original. Ao lado dele surge, não uma Eva de longos cabelos encaracolados, mas um segundo Adão. E imediatamente Adão adquire deveres e logo os desrespeita. Em vez de estreitar contra o peito o seu irmão, como um seu igual, submete-o logo ao seu domínio, escraviza-o. E este primeiro pecado, este pecado original da escravidão, é o pecado cujas conseqüências ainda vêm sendo sentidas por toda a história do mundo, e tal é a causa por que esta história não valha, segundo o Sr. Dühring, nem uma cadelinha qualquer.”

versão semi[ó]tica da bíblia

…embora tenhamos de reconhecer que ninguém disputará ao Sr. Dühring a glória de ter construído o pecado original da maneira mais original do mundo: com 2 homens.” HAHAHAHAHA

Entre o estado da igualdade e o da anulação de uma das partes, ao lado da onipotência e da participação ativa da outra, medeia toda uma série de graus que os fenômenos da história universal se encarregaram de preencher [os fenômenos se encarregam de preencher, não os homens!] com uma pitoresca variedade. Uma vista de olhos universal sobre as diferentes instituições do direito e da injustiça históricos, torna-se aqui uma condição prévia essencial”

Não foi o Capital que inventou a mais-valia. Onde quer que uma parte da sociedade possua o monopólio dos meios de produção, o operário, livre ou escravo, não tem outro remédio senão acrescentar ao tempo de trabalho, para o seu sustento, uma quantidade de trabalho excedente, destinada a produzir os meios de vida para o proprietário dos meios de produção, quer se trate de um kalokagathos [nobreza] ateniense, um teocrata etrusco, um civis romanus (cidadão romano), quer de um barão da Normandia, um escravagista americano, um senhor feudal da Valáquia, um proprietário de terras moderno ou de um moderno capitalista.” O Capital

O que fica faltando para que haja mais-valia no sentido do capital é a reinversão na melhoria dos próprios meios de produção (alavancagem, aceleração do montante da mais-valia, que nas sociedades tradicionais permanece ‘fixa’).

O nosso Adão, agora convertido em Robinson, põe a trabalhar o segundo Adão, ou seja, o ‘Sexta-feira’. Porém, como ‘Sexta-feira’ há de se prestar a trabalhar mais do que o necessário para o seu sustento? Esta pergunta parece que foi também respondida, em parte, pelo menos, por Marx. Entretanto, a resposta de Marx é demasiado prolixa para os nossos 2 homens. Resolve-se o assunto com mais facilidade. Robinson ‘oprime’ o ‘Sexta-feira’, espolia-o ‘como um escravo ou instrumento, posto ao serviço econômico’, e somente o sustenta ‘na qualidade de instrumento’ [dá-lhe ração e lições de catequese!]. Com esta novíssima ‘manobra criadora’, mata o Sr. Dühring 2 coelhos com uma só cajadada. Em 1º lugar, poupa-se ao trabalho de explicar-nos as diversas formas de distribuição que se sucedem na história, com suas diferenças e suas respectivas causas. Basta que se saiba que todas estas formas são reprováveis, pois todas elas descansam na opressão, na violência – sobre isso teremos oportunidade de falar mais adiante. Em segundo lugar, desloca toda a teoria da distribuição do terreno econômico para o da Moral e do Direito, ou seja, do terreno dos fatos materiais concretos e decisivos para o das opiniões e sentimentos mais ou menos flutuantes.” “Como vemos, em 1868, a propriedade privada e o trabalho assalariado eram instituições naturais e necessárias e, portanto, justas. Em 1876, eram ambas, pelo contrário, resultado da violência e do roubo, e portanto, injustas. Não é nada fácil saber o que será considerado moral e justo, dentro de alguns anos, por um gênio tão vertiginoso como esse! Se quisermos, assim, estudar a distribuição das riquezas, será melhor que nos restrinjamos às leis reais e objetivas da Economia, e não às idéias momentâneas, mutáveis e subjetivas do Sr. Dühring, no que diz respeito ao Direito e à injustiça.”

Os místicos da Idade Média, aqueles que sonhavam com a proximidade do reino milenar, já tinham consciência dessa injustiça, a consciência da injustiça dos antagonismos de classe. Nos primórdios da história moderna, há uns 350 anos, ergueu-se a voz de Thomas Munzer, clamando contra esta injustiça. O mesmo grito novamente ressoa e perde-se na Revolução Inglesa e na Revolução burguesa da França. O grito, que até 1830 não tinha comovido ainda as massas trabalhadoras e oprimidas, encontra hoje eco em milhões de homens, abalando um por um, todos os países, na mesma ordem e com a mesma intensidade com que, nesses países, se vai desenvolvendo a grande indústria, e chega a atingir, no decurso de uma geração, uma força tal que pode desafiar todos os poderes coligados contra ele, estando mesmo seguro da vitória definitiva num futuro próximo.” Como é doloroso ler tudo isso em 2021…

Neste fato material e tangível, que se impõe, dentro de limites mais ou menos claros, através de uma irresistível necessidade, nos cérebros dos proletários vítimas da exploração, nesse fato e não nas idéias e maquinações de um erudito especulador sobre o Direito e a Justiça, é que se evidencia a certeza de que o socialismo moderno terá de triunfar.” Triste.

PARTE II. ECONOMIA POLÍTICA. CAPÍTULO II. TEORIA DA VIOLÊNCIA

A configuração das relações políticas é historicamente fundamental, e as dependências econômicas nada mais são que um efeito ou caso especial, sendo, portanto, sempre, fatos de segunda ordem. Muitos dos sistemas socialistas modernos têm, como princípio diretivo, a aparência de uma relação totalmente inversa, que salta aos nossos olhos, fazendo com que os estados econômicos surjam, digamos, das subordinações políticas. Esses efeitos de 2ª classe existem, sem dúvida, como tais, e são especialmente sensíveis nos tempos atuais; [isso não seria sinal de que você deveria estudar melhor o tema?] mas o elemento primário deve ser encontrado no poder político imediato e não no poder econômico indireto.” “Em nenhum dos 3 tomos de sua obra, apesar de tão volumosos, pode ser encontrada a mais leve intenção de demonstrá-la ou de refutar a opinião contrária a sua. Ainda que os argumentos fossem baratos como amoras, o Sr. Dühring não nos forneceria nenhum em apoio a sua tese.”

A crença de que os atos políticos dos chefes e do Estado são um fator decisivo da História é uma crença tão antiga como a própria historiografia e a ela se deve particularmente o fato de que saibamos tão pouco a respeito da silenciosa evolução que impulsiona realmente os povos e que se oculta no fundo de todas as cenas ruidosas. Esta crença presidiu toda a História antiga até que, na época da Restauração, os historiadores burgueses lhe assestaram o primeiro golpe. O que é original é que o Sr. Dühring ignore tudo isso, como de fato o ignora.”

É preciso que se seja um Sr. Dühring para se poder imaginar que os impostos cobrados pelos Estados não são mais que ‘efeitos de 2ª ordem’ e que o ‘agrupamento político’ de nossos dias, que coloca, de um lado, a burguesia poderosa e, de outro, o proletariado oprimido, chegou a existir graças a si mesmo, e não como conseqüência dos ‘fins de subsistência’ dos burgueses dominantes, ou seja, pela produção de lucro e acumulação do Capital.”

antes de se instituir a escravidão, para que esta seja mesmo possível, é mister que a produção tenha alcançado já um certo grau de progresso e que, na distribuição, tenha sido atingido um certo grau de desigualdade. E, para que o trabalho dos escravos possa converter-se em regime de produção predominante em toda a sociedade, é preciso que, nesta, a produção, o comércio e a acumulação de riquezas se tenham desenvolvido num grau já muito superior.”

Sabemos que, nos tempos da guerra dos persas, o número de escravos se elevava, em Corinto, a 460 mil, e, em Egina, a 470 mil, chegando a haver 10 escravos para cada cidadão livre. É evidente que para chegar a este estado de coisas, não bastava usar a ‘violência’, mas, pelo contrário, devia fazer falta uma indústria artística e artesanal muito desenvolvida, ao lado de uma extensa rede comercial. Nos Estados Unidos da América a escravidão não descansava nem no uso da violência, nem na existência da indústria inglesa do algodão. Nas regiões não-algodoeiras e que não se dedicavam, como os Estados litorâneos, à manutenção de escravos, destinados aos Estados algodoeiros, foi-se extinguindo a escravidão por si mesma, sem apelar para a violência, pela simples razão de que não era rendosa.” Mas descansava sobre a existência da indústria do algodão noutra parte, ora!

O despotismo oriental e a constante mudança de poderes, de uns para outros povos nômades conquistadores, não puderam violar, durante milênios, este regime primitivo de comunidade. Em compensação, a destruição gradual de sua indústria doméstica natural, pela concorrência com os produtos da grande indústria, vai conduzindo este regime, cada vez mais aceleradamente, para a sua dissolução.”

Nem mesmo a formação de uma aristocracia natural, como a que se instituiu entre os celtas e os germanos e na região hindu dos Cinco Rios, baseada no regime da propriedade coletiva do solo, surge, de forma alguma, baseada na violência, mas sim de modo espontâneo e por força do costume.”

Para que o ladrão possa se apropriar de bens alheios, é evidente que a instituição da propriedade privada já deve estar consagrada e em vigor em toda a sociedade; ou seja, a violência poderá, sem dúvida alguma, transformar o estado possessório, mas, entretanto, não engendrará nunca a instituição da propriedade.”

A luta da burguesia contra a nobreza feudal é a luta da cidade contra o campo, da indústria contra o proprietário de terras, da economia baseada no dinheiro contra a economia natural, e as armas decisivas que, nestas lutas, empregou o burguês foram simplesmente os seus recursos de poder econômico, constantemente reforçados por meio do desenvolvimento da indústria, a princípio artesanal e mais tarde manufatureira, e pela difusão do comércio. Durante toda esta luta, o poder político [se] formou ao lado da nobreza, com a única exceção de um período em que o poder real julgou conveniente utilizar a burguesia contra a nobreza, para contrabalançar uma camada com a outra. Mas, a partir do momento em que a burguesia, embora impotente politicamente, começou a ser perigosa, graças ao seu poderio econômico cada vez maior, a monarquia voltou a aliar-se com a nobreza. provocando, assim, primeiro na Inglaterra e logo depois na França, a revolução da burguesia.”

[Na França, p]oliticamente, a nobreza era tudo e a burguesia era nada. Socialmente, a burguesia era já a classe mais importante dentro do Estado, ao passo que a nobreza tinha perdido já todas as suas funções sociais, embora continuasse cobrando as rendas com que ainda eram remuneradas essas funções desaparecidas.” “hoje a burguesia já não está muito longe da posição que a nobreza ocupava em 1789, pois que de fator de progresso foi-se convertendo, pouco a pouco, num fator, não apenas socialmente inútil, mas até nocivo ao desenvolvimento da sociedade” “Este resultado da atuação e da conduta da burguesia não corresponde, de modo algum, a sua vontade; muito pelo contrário, foi cedendo ante o impulso de uma força irresistível, contra a sua vontade e contra as suas intenções, simplesmente porque as suas próprias forças produtivas ultrapassaram os quadros de sua direção e empurraram a sociedade burguesa inteira”

PARTE II. ECONOMIA POLÍTICA. CAPÍTULO III. TEORIA DA VIOLÊNCIA (continuação)

Mas, que saibamos, a violência não é capaz de criar dinheiro. A única coisa que ela sabe é arrebatar o que já foi criado, o que também de pouco nos servirá, como já o sabemos pela pungente experiência dos famosos 5 bilhões da França.”

A indústria não perde o seu caráter de indústria por se destinarem os seus produtos a destruir e não a criar os objetos.” “As armas de fogo foram, por isso, desde o primeiro momento, manejadas pelas cidades e pela monarquia em ascensão, que nelas se apoiava para lutar contra a nobreza feudal. As muralhas de pedra das fortalezas feudais, até então inexpugnáveis, renderam-se frente aos canhões dos burgueses e as balas dos mosquetes da burguesia trespassaram as armaduras dos cavaleiros.” “O desenvolvimento da burguesia fez com que passassem para o 1º plano, como armas decisivas da guerra, a infantaria e a artilharia, tendo esta forçado a criação de uma nova seção, dentro da indústria de guerra, até então desconhecida: a da engenharia militar.

As armas de fogo desenvolveram-se com grande lentidão. Os canhões continuavam pesados, os mosquetes não perdiam sua forma tosca, apesar de muitos inventos que o modificaram em detalhes. Foi preciso que se passassem 300 anos até que fosse inventado um fuzil que pudesse ser utilizado por toda a infantaria. Até os começos do século XVIII, o fuzil de espoleta, armado de baioneta, não eliminou definitivamente a lança, como arma de infantaria. As antigas tropas pedestres eram formadas pelos elementos mais vis da sociedade, que eram sujeitos a uma rigorosa instrução, mas não representavam nenhuma segurança e só conseguiam manter-se disciplinados à custa de pancada. (…) a única forma de luta na qual podiam estes soldados utilizar o novo fuzil era a tática de linha, que alcançou a sua máxima perfeição sob o comando de Frederico II. Esta tática consistia em formar toda a infantaria do exército num grande quadrado de 3 filas, capaz de se mover somente em bloco na ordem de batalha; o que no máximo se permitia era que uma das 2 alas avançasse ou recuasse um pouco. Toda essa massa disforme e lerda só podia movimentar-se ordenadamente num terreno completamente plano e, mesmo assim, com grande lentidão de movimentos (à razão de 75 passos por minuto). Não se podia pensar em mudar a ordem de batalha durante o combate, e uma vez que entrava em fogo a infantaria, a vitória ou a derrota podiam ser decididas de golpe, rapidamente.” Primitivo como o futebol na era Friedenreich!

Contra estas linhas desmanteladas e tontas se levantaram, na guerra da independência norte-americana, as guerrilhas dos rebeldes que, embora sem estar instruídos, disparavam com muito mais pontaria com as suas carabinas e, além disso, como lutavam por seus próprios interesses, não se precisava temer que desertassem, como costuma acontecer com as tropas mercenárias. E estas guerrilhas não davam aos ingleses a satisfação de enfrentá-los com este, em linha regular de combate, nem a campo aberto, operando, pelo contrário, em grupos soltos, manobrando com muita rapidez e sob a proteção dos bosques. A linha, tornada impotente teve de sucumbir frente a um inimigo invisível e inatacável e surgiu a tática dos atiradores: uma tática nova, fruto de um novo material humano.

A obra iniciada pela Revolução Americana foi levada a termo, ainda no terreno militar, pela Revolução Francesa. Frente aos treinados exércitos mercenários da coalizão, a França podia apenas levantar as suas massas, trazidas de toda a nação, numerosas mas pouco bem-instruídas. Com estas massas tratava-se de proteger Paris, isto é, de defender uma determinada zona e, nestas condições, não podiam os combates abertos de massa garantir sozinhos o triunfo. Para tal resultado, não bastava também a tática de guerrilhas. Era preciso inventar uma forma nova para empregar as massas, e esta forma foi a coluna. A marcha em coluna e a sua disposição de combate permitiam ainda a tropas pouco treinadas que se deslocassem bastante ordenadamente e com certa rapidez de movimentos (à razão de 100 passos e até mais, por minuto), permitiam que se rompessem as rígidas formas das velhas linhas, lutando-se em qualquer terreno, mesmo quando desfavorável para as linhas, que se agrupassem as tropas do modo mais conveniente para cada caso, podendo-se barrar, cortar o caminho e fatigar as linhas inimigas, combinando a ação regular com a ação das guerrilhas dispersas, e distraindo o inimigo até que chegasse o momento de se lançar sobre ele e de se romper a sua frente com as massas de reserva. Este novo método de luta, baseado na ação combinada de guerrilhas de colunas e no agrupamento do exército em divisões e corpos de exército independentes, integrados por todas as armas, método de luta que Napoleão utilizou e desenvolveu perfeitamente em seu aspecto estratégico e tático, surgiu, como vimos, imposto pela necessidade, precisamente na ocasião em que se transformava o material humano militar com a Revolução Francesa. Mas também pressupunha 2 condições técnicas muito importantes. A 1ª era a invenção, por Gribeauval, de carretas mais leves para os canhões de campanha, de modo a permitir a estes deslocar-se rapidamente. A 2ª, o arqueamento das escopetas de caça, que até então vinha sendo aplicado apenas no sentido de alargar o diâmetro dos canhões, quando aplicado à culatra dos fuzis, e permitir que se apontasse a um homem isolado, sem se disparar ao acaso. Este invento foi implantado na França em 1767, e podemos dizer que, sem ele, não teria sido possível equiparar eficientemente os atiradores.

O sistema revolucionário, que consistia em armar o povo, foi logo substituído pelo recrutamento obrigatório (trocado pelo resgate em dinheiro, no caso dos ricos) e adotado pela maioria dos grandes Estados do continente. A Prússia foi o único país que pretendeu estender aos quadros da reserva, em grandes proporções, a força militar do povo. E foi, além disso, o primeiro Estado a adotar em toda a sua infantaria a novíssima arma, o fuzil carregado pela culatra, depois de ter usado, por pouco tempo, o fuzil de carga dianteira, aperfeiçoado e adaptado para a guerra, entre 1830 e 1860. Tais foram as 2 inovações a que se deveram os triunfos prussianos de 1866.

Na guerra franco-prussiana, enfrentaram-se, pela primeira vez, 2 exércitos equipados com fuzis carregados pela culatra, ambos instruídos, em essência, nas formações táticas que já eram utilizadas no tempo do velho fuzil de espoleta. Nada mais os diferenciava, a não ser que os prussianos, adotando a coluna de companhia, se esforçavam por criar uma forma de luta mais adequada ao novo armamento. Quando, porém, em 18 de agosto, perto de St. Privat, a Guarda Prussiana quis tomar a sério a ordem de batalha de sua coluna de companhia, os 5 regimentos mais empenhados na ação perderam, em 2h, mais de 1/3 de seus efetivos (178 oficiais e 5114 homens). A partir deste momento, a coluna de companhia foi condenada a desaparecer como forma de luta, da mesma maneira que a coluna de batalhão e a linha. Abandonou-se toda e qualquer intenção de continuar expondo, ao fogo dos fuzis inimigos, formações cerradas e, a partir dessa época, os alemães passaram a guerrear somente em densas guerrilhas, naqueles mesmos enxames de tropas em que a coluna se abria, dispersando-se por si mesma, geralmente sob a chuva das balas inimigas, tática que o comando combatia como sendo contrária aos regulamentos. Uma outra inovação foi a adoção do passo rápido de marcha sob o alcance do fogo inimigo, como sendo a única forma de movimento. Novamente o soldado voltava a se mostrar mais inteligente que o oficial, descobrindo instintivamente a única forma de luta que, desde então, pôde vingar, sob o fogo do fuzil carregado pela culatra, e impondo-a, triunfalmente, apesar de todas as resistências do comando.” Ou seja: mais de meio século depois, o exército prussiano se aprimorou com táticas nada novas, provindas dos civis destreinados da revolução francesa. Época romântica dos conflitos armados; e no entanto Nietzsche já a considerava o tipo de guerra dos últimos homens, dos fracos e covardes.

A guerra franco-prussiana representa, na história militar, um ponto de transição que ultrapassa em importância a todos os precedentes. Em primeiro lugar, as armas adquirem um tal grau de aperfeiçoamento que nenhum progresso possível é já capaz de revolucionar este setor.” Calma!!

Quando já se dispõe de canhões capazes de alvejar um batalhão tão logo seja divisado a olho nu à distância, e fuzis que permitem fazer o mesmo tendo como objetivo um homem isolado e nos quais se demora menos tempo em carregar que em fazer a pontaria, todos os progressos que possam ainda ser feitos nas artes da guerra são de menor importância. Neste aspecto, podemos dizer que a era do progresso está mais ou menos terminada, pelo menos em sua parte essencial.”

ANTECEDENTES DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL: “Em 2º lugar, a guerra obrigou todos os grandes Estados do continente a implantar o sistema rigoroso da reserva do tipo prussiano, com isso trazendo para os seus ombros uma carga militar que os levará à ruína dentro de poucos anos. Os exércitos se converteram na principal finalidade dos Estados, como um fim em si mesmo. Os povos existem hoje só para fornecer soldados e para sustentá-los. O militarismo domina e devora a Europa.” “Por outro lado, o serviço militar vai generalizando-se cada vez mais e com isso não faz mais que familiarizar com o emprego das armas todo o povo, ou seja, tornando-o capaz, mesmo contra a sua vontade, de impor, num determinado momento, a sua vontade à camarilha militar governante.”

Chegado este momento, os exércitos dos príncipes se converterão em exércitos do povo, a máquina se negará a continuar funcionando e o militarismo perecerá, engolido pela dialética de seu próprio desenvolvimento. E o que não pôde conseguir a democracia burguesa de 1848, precisamente porque era burguesa, e não proletária – infundir às massas trabalhadoras uma vontade ajustada à sua situação de classe –, conseguirá o socialismo, infalivelmente. E pelo fato de consegui-lo, matará em suas raízes o militarismo e os exércitos permanentes.”

Somente um povo de caçadores como o americano poderia de novo pôr em prática a tática dos atiradores. E os americanos não eram caçadores por capricho, mas por causas puramente econômicas, exatamente da mesma forma por que hoje, por causas também puramente econômicas, esses mesmos yankees – pelo menos aqueles que vivem nos Estados mais antigos – se converteram em lavradores, industriais, navegantes e comerciantes, que já não se dedicam à caça no desbravamento das selvas virgens, mas que, em troca, sabem como ninguém se mover com desenvoltura no campo da especulação, no qual aplicaram também a sua tática de massas.”

Até que ponto a tática da guerra depende atualmente do estado da produção e dos meios de comunicação do país, que o exército tem em sua retaguarda, é coisa que qualquer suboficial, por pouco instruído, poderá explicar ao Sr. Dühring.”

Passando dos exércitos de terra à marinha, veremos que somente os últimos 20 anos constituem uma verdadeira revolução neste aspecto da guerra.” “A princípio era uma camada muito delgada; 4 polegadas de espessura já se considerava uma blindagem pesadíssima. Mas os progressos da artilharia alcançaram e ultrapassaram esta defesa. Para cada nova espessura da blindagem era inventado um novo canhão sempre mais pesado que a perfurava com maior facilidade. Chegamos assim às espessuras de couraças de 10, 14, e 24 polegadas (a Itália se dispõe a construir um barco encouraçado com chapas de 3 pés de espessura), de um lado, e, de outro, aos canhões de 25, 35, 80 e até 100 toneladas (20 quintais de peso), capazes de lançar a distâncias antes inconcebíveis cargas de 300, 400, 1700 e até 2000 libras.” “O barco de guerra de hoje é um vapor gigantesco com chapa torneada, de 8 ou 9 mil toneladas de calado e 6 a 8 mil cavalos de força, com torres giratórias, e 4 ou, no máximo, 6 canhões pesados, e uma proa terminada em aríete por debaixo da linha de flutuação para pôr a pique os barcos inimigos; é todo ele uma máquina gigantesca, na qual a força de vapor não somente permite um deslocamento muito mais rápido, como também toda uma série de movimentos antes desconhecidos, tais como a direção do navio da ponte do comando, o manejo do leme, a rotação das torres, a direção e o carregamento dos canhões, a sucção da água, o arriar e içar dos botes – operação que se realiza, também às vezes, a vapor – etc. E o duelo entre a blindagem dos navios e o alcance dos canhões está muito longe de terminar, a ponto de que, geralmente, quando sai um navio dos estaleiros, já é antiquado e não mais corresponde às exigências que presidiram a sua construção.” “Todos os barcos encouraçados turcos, quase todos os russos e a maioria dos alemães, foram construídos na Inglaterra. As chapas blindadas de alguma eficácia quase que só são fabricadas em Sheffield. Das 3 fábricas de fundição da Europa, montadas em condições de fornecer canhões mais pesados, 2 correspondem à Inglaterra (Woolwich e Elswick) e a 3ª à Alemanha (Krupp).” “Ninguém ficará tão desesperado com esta nova situação como a própria violência, isto é, o Estado, que chega à conclusão de que um navio lhe custa hoje tanto como antes uma pequena esquadra, tendo por fim que se resignar com o fato de que estes navios caríssimos sejam logo considerados obsoletos, perdendo, portanto, o seu valor antes de fazer-se ao mar.” “De nosso lado, não temos por que nos indignar pelo fato de que, no duelo que se está desenrolando entre as placas blindadas e os canhões, o navio vai aperfeiçoando-se, até que termine por atingir uma perfeição tal que se torne definitivamente inexeqüível e inútil para a guerra.” O impasse das bombas nucleares só que aplicado às frotas perfeitas: duas armas de ataque e defesa máximos, que não conseguiriam danificar uma à outra; ou que forçosamente só o fariam sob o preço de também se ver naufragar.

o militarismo, como qualquer outra manifestação histórica, perecerá, devido às conseqüências de seu próprio desenvolvimento.”

Mas para que perder tempo com todas estas demonstrações? Que na próxima guerra marítima se entregue o Alto Comando ao Sr. Dühring e veremos como ele destruirá todas as frotas de encouraçados, escravizados pela ‘situação econômica’, sem utilizar torpedos ou outras armas do mesmo gênero, mas simplesmente apelando para a sua ‘força imediata’

PARTE II. ECONOMIA POLÍTICA. CAPÍTULO IV. TEORIA DA VIOLÊNCIA (conclusão)

quando, nos últimos tempos da República Romana, os proprietários dos grandes blocos de terra, os latifundiários, expulsaram os camponeses de seus lotes, substituindo-os por escravos, foi ao mesmo tempo substituída a agricultura pela criação de gado, semeando, como já predizia Plínio, a ruína da Itália (latifundia Italian perdidere).”

Os colonos da Frisia, [Frígia?] da Baixa Saxônia, de Flandres, e do Baixo-Reno, os que cultivavam, a leste do Elba, a terra arrebatada aos eslavos, trabalhavam como lavradores livres, sob um estatuto muito favorável e sem estarem sujeitos a ‘nenhum tipo de vassalagem’. Na América do Norte, a grande maioria das terras foi aberta ao cultivo pelo trabalho de agricultores livres, enquanto que os grandes proprietários do Sul, com seus escravos e seus métodos de exploração, esgotaram o solo até o ponto de não dar mais nada, exceto pinho”

Na Austrália e na Nova Zelândia, fracassaram até agora todas as tentativas do governo inglês para a instauração artificial de uma aristocracia de fazendeiros.”

esse grande proprietário de terras, que começa por desbravar o solo e por submeter a natureza ao seu domínio, por meio de seus escravos ou vassalos, não é mais que uma pura criação da fantasia do Sr. Dühring. Longe disso, ali onde aparece esse grande proprietário de terras, como aconteceu na Itália, não é precisamente para desbravar e iniciar o cultivo das terras incultas, mas, muito ao contrário, para converter em pastos as terras cultivadas pelos camponeses, despovoando e arruinando regiões imensas.”

Para cada acre de terras comunais que os grandes proprietários cultivaram na Inglaterra, converteram, na Escócia, pelos menos 3 acres de terras cultivadas em pasto de ovelhas” Ou seja: terra destinada à agropecuária é muito mais improdutiva que a destinada à agricultura. Dir-se-ia que é inevitável a expansão do agronegócio devido ao aumento da população e à necessidade de carne; e que coisas como batatas poderiam ser facilmente adquiridas por importação. Mas numa economia de terceiro mundo, que destina também a carne à exportação (Brasil), isso é um desastre para a população, majoritariamente pobre. Ironicamente, grandes pastos só existem porque havia múltiplas pequenas propriedades destinadas ao cultivo, anteriormente, nessas mesmas regiões.

Se o Sr. Dühring, ao afirmar que o domínio do homem sobre o homem é, em termos gerais, a condição prévia do domínio da natureza pelo homem, e com isto quer dizer apenas que todo o nosso atual estado econômico, o grau de desenvolvimento a que chegaram a agricultura e a indústria, são apenas o resultado de uma história social que se veio desenvolvendo por antagonismos de classe, por relações entre o poder e a vassalagem, nesse caso está afirmando alguma coisa que é já, desde a publicação do Manifesto Comunista, um velho lugar comum. Trata-se precisamente de explicar as origens dessas classes e as relações do poder, e o Sr. Dühring não sabe nos oferecer mais que a repisada explicação da ‘violência’, mas essa palavra não nos faz dar nem um passo para a frente. O simples fato de que os dominados e explorados tenham sido, em todos os tempos, uma legião muito mais numerosa do que a de seus dominadores e exploradores, tendo, portanto, em suas mãos a força real basta para pôr a nu toda a inutilidade da teoria da violência. O problema está, exclusivamente, repetimos, em explicar o por que dessas relações entre o poder e vassalagem.”

ORIGEM DO ESTADO VERSÃO CONDENSADA E HISTÓRIA DA ESPECIALIZAÇÃO DOS INDIVÍDUOS: “No seio de cada uma destas coletividades [primitivas, proto-estatais] existem, desde o 1º momento, determinados interesses comuns, cuja defesa se entrega a determinados indivíduos, embora sob o controle da coletividade, como seja: administração da justiça, repressão de atos ilegítimos, inspeção do regime de águas, principalmente nos países tropicais e, finalmente, toda uma série de funções religiosas, derivadas do primitivismo selvagem destas sociedades. Tais fenômenos de distribuição de competências se encontram, nas coletividades naturais de todas as épocas, como já ocorria na sociedade antiquíssima dos marks alemães e como ainda hoje se observa na Índia. Trazem consigo, como é lógico, uma certa amplitude de poderes e representam as origens do Estado. Pouco a pouco, as forças produtivas se vão intensificando, a densidade cada vez maior de população cria interesses, ora comuns ora formados entre as distintas coletividades, de modo que, agrupando-se num todo superior, fazem nascer uma nova divisão do trabalho, criando os órgãos necessários para cuidar dos interesses harmônicos e para defender-se contra os interesses hostis.”

Não é necessário que examinemos aqui o modo como esta independência da função social frente à sociedade foi convertendo-se, com o correr dos tempos, numa verdadeira hegemonia sobre a própria sociedade, o modo como os primitivos servidores da sociedade, nos lugares onde as circunstâncias lhes foram propícias, foram-se erigindo paulatinamente em senhores dela própria e, finalmente, o modo como, de acordo com o ambiente, esses mesmos senhores se instauraram, no Oriente, como déspotas ou sátrapas, na Grécia como príncipes de linhagem, entre os celtas como chefes de clã, e assim por diante.”

POR QUE A INGLATERRA FRACASSOU NAS ÍNDIAS: “Muitos foram os déspotas que passaram pelo poder, na Pérsia e na Índia, mas todos eles sabiam perfeitamente que a sua missão coletiva era, antes de tudo, a de regar os vales, pois que sem irrigação não se podia fazer ali agricultura. Foi preciso que chegassem os ingleses civilizados para que esse dever primordial do despotismo, no Oriente, fosse esquecido. Os ingleses deixaram que se estragassem os canais e as represas, e, atualmente, depois de muitos anos, as épocas periódicas de fome vêm a lhes apontar que menosprezaram a única atividade que poderia tornar a sua hegemonia sobre a Índia pelo menos tão legítima quanto a de seus antecessores.”

A força de trabalho adquiriu um valor. Mas nem a coletividade, por si mesma, nem o agrupamento de coletividades de que ela fazia parte podiam fornecer forças de trabalho disponíveis, excedentes. Fornecia-as a guerra, que já se efetuava a partir, pelo menos, dos tempos em que começaram a coexistir, lado a lado, distintos grupos sociais. Até essa época, não se tinha sabido, ainda, como empregar os prisioneiros de guerra, razão pela qual eram eles liquidados em vez de se os alimentar, como era costume em épocas anteriores. Ao chegar, porém, a esta etapa da evolução econômica, os prisioneiros de guerra começaram a representar um valor. Por isso, deixaram-nos viver, a fim de aproveitarem-se de seu trabalho. Como vemos, a violência, longe de se impor sobre a situação econômica, foi posta a serviço desta. Haviam sido lançadas as bases da instituição da escravidão.”

Foi a escravidão que tornou possível a divisão do trabalho, em larga escala, entre a agricultura e a indústria, e foi graças a ela que pôde florescer o mundo antigo, o helenismo.” “E sem as bases do helenismo e do Império Romano não se teria chegado a formar a moderna Europa.” “Podemos, neste sentido, afirmar, legitimamente, que, sem a escravidão antiga, não existiria o socialismo moderno.” “Neste terreno, por mais paradoxal e mais herético que possa parecer, não temos outro remédio senão dizer que a implantação da escravidão representou, nas circunstâncias em que ocorreu, um grande progresso. É indiscutível que a humanidade saiu de um estado de animalidade e que necessitou utilizar, portanto, de meios bárbaros e quase bestiais para erguer-se desse estado de barbárie.” Nietzsche-Adorno

As antigas comunidades, onde subsistem essas instituições, formam, desde milhares de anos, da Índia à Rússia, a base da mais tosca forma de Estado: o despotismo oriental.” “Enquanto o trabalho humano era muito pouco produtivo, é claro que apenas fornecia um pequeno excedente, depois de satisfeitas as necessidades mais prementes da vida, não se podendo tratar da intensificação das forças produtivas, da ampliação do mercado, do aperfeiçoamento do Estado e do Direito, da fundação de nenhuma arte [técnica] e de nenhuma ciência, a não ser pela mais reforçada divisão do trabalho, em cuja base estava, forçosamente, a grande divisão do trabalho entre as massas dedicadas ao simples trabalho manual e uns poucos privilegiados, ao cargo dos quais estava a direção dos trabalhos, o comércio, o trato dos negócios públicos e, mais tarde, o cultivo das artes e ciências.” “E representava esta instituição um progresso até para os próprios escravos: permitia, pelo menos, aos prisioneiros de guerra, entre os quais eram recrutados em seu maior número os escravos, que conservassem as vidas já que, até então, eram todos exterminados, no começo, por meio da fogueira, e, depois, por meio do cutelo.”

tinha que haver necessariamente uma classe especial que, livre do trabalho efetivo, tratasse desses assuntos.” Da kalokagathia até os levitas, tribo sacerdotal, e especial, dos semitas!

A gigantesca intensificação das forças produtivas, conseguida graças ao advento da grande indústria, é que tornou possível que o trabalho se possa distribuir, sem exceção, entre todos os membros da sociedade, reduzindo dessa forma a jornada de trabalho do indivíduo a tais limites, que deixem a todos um tempo livre suficiente para que cada um intervenha – teórica e praticamente – nos negócios coletivos da sociedade.” Sem a inclusão da mulher, o homem trabalharia em dobro. Sem a inclusão de uma grande parte desse exército de reserva que está à míngua no Brasil nunca atingiremos os patamares europeus de, senão pleno emprego, pelo menos a redução ainda maior da carga horária, ainda convencionada em média a 40h semanais, a mais salutares 30h ou a menos dias úteis semanais.

PARTE II. ECONOMIA POLÍTICA. CAPÍTULO V. TEORIA DO VALOR

Há cerca de cem anos, apareceu, em Leipzig, um livro, que alcançou 31 edições até o começo do atual século, tendo sido distribuído e difundido nas cidades e aldeias, pelas próprias autoridades, por pregadores e por filantropos de toda a espécie, além de ser colocado em todas as escolas públicas do país, como texto de leitura. O título deste livro era: O Amigo da Criança, e tinha por autor um tal Rochow. A sua finalidade era doutrinar, aos jovens filhos dos camponeses e dos artesãos, a respeito de sua missão na vida e de seus deveres para com os seus superiores hierárquicos, na sociedade e no Estado, infundindo-lhes contentamento com a sorte benfazeja que o céu lhes tinha reservado na terra, e, ao mesmo tempo, com o pão negro e as batatas, as tributações feudais e os magros salários, as surras recebidas de seu pai, e outras coisas não menos agradáveis, tudo divulgado por meio de raciocínios que eram muito comuns naquela época.”

O valor das mercadorias é determinado pelo trabalho geral, humano, socialmente necessário, nelas materializado, o qual, por sua vez, é medido pela sua duração. O trabalho é a medida de todos os valores, mas não possui valor algum.” Marx, O Capital

se o salário determina o valor, é impossível conceber que o operário seja explorado pelo capitalista.” O valor também determinaria o salário, não haveria inflação nem lucro capitalista, apenas uma troca equivalente universal entre trabalhadores e consumidores (as mesmas pessoas).

PARTE II. ECONOMIA POLÍTICA. CAPÍTULO VI. TRABALHO SIMPLES E TRABALHO COMPLEXO

O trabalho mais complexo não é mais que o trabalho simples potenciado, ou melhor, multiplicado de tal maneira que uma quantidade pequena de trabalho complexo equivale a uma quantidade maior de trabalho simples. A experiência nos ensina que a redução de trabalho complexo para trabalho simples está sendo realizada diariamente. Embora uma mercadoria seja um produto do trabalho mais complicado do mundo, o seu valor a coloca no mesmo plano que os produtos do trabalho simples, o que faz com que só represente uma determinada quantidade de trabalho comum. As diferentes proporções em que as diferentes espécies de trabalho são reduzidas ao trabalho simples, que é a sua unidade de medida, são fixadas por meio de um processo social, desenvolvido sem o conhecimento dos produtores, que supõem mesmo que ela provém da tradição.” O Capital

Ora, nem todo trabalho consiste na simples força humana de trabalho. Existem variadas espécies de trabalho, que envolvem o exercício de aptidões e conhecimentos, adquiridos com maior ou menor esforço, ao lado de um gasto maior ou menor de tempo e de dinheiro. Formam, essas categorias de trabalho complexo, no mesmo espaço de tempo, um valor mercantil idêntico ao do trabalho simples, que é o desgaste ou a aplicação da força simples de trabalho? Está claro que não. O produto de uma hora de trabalho complexo, comparado com o produto de uma hora de trabalho simples, representa uma mercadoria cujo valor é 2 ou 3x superior. O valor dos produtos do trabalho complexo é expresso, nesta comparação, por determinadas quantidades de trabalho simples, mas esta redução do trabalho complexo ao trabalho simples se realiza por meio de um processo social desconhecido dos próprios produtores, cuja trajetória não podemos aqui senão assinalar na exposição da teoria do valor, deixando a sua explicação detalhada para ocasião oportuna.”

Ao falarmos do valor do trabalho, empenhando-nos em determiná-lo, incorremos no mesmo contra-senso em que incorreríamos se falássemos, procurando encontrá-lo, do valor ou do peso, não de um corpo pesado, mas da própria gravidade.”

Para o socialismo, que aspira à emancipação da força humana de trabalho de sua condição de mercadoria, é da maior importância compreender que o trabalho não tem um valor. Demonstrado este fato, caem por terra todas as tentativas próprias do socialismo operário primitivo e elementar, que tem no Sr. Dühring um continuador, e que são destinadas a regulamentar a distribuição futura dos meios de vida por meio de uma espécie de salário superior.”

A CILADA DO VALOR ‘ABSOLUTO’ DE DÜHRING: “É claro que o modo tradicional de pensar das classes cultas, herdado pelo Sr. Dühring, tem que considerar, necessariamente, como uma monstruosidade que chegue o dia em que não existam mais carregadores e arquitetos de profissão, e no qual o homem, que passou uma meia hora dando instruções, como arquiteto, tem que servir durante algum tempo como carregador, até que seus serviços de arquiteto voltem a ser necessários. Para se eternizar a categoria dos carregadores de profissão não era preciso o socialismo!”

Entre 2 operários, até de um mesmo ramo industrial, o produto do valor criado em cada hora de trabalho se diferenciará sempre, quer devido à intensidade do trabalho, quer à habilidade do trabalhador. E este ‘mal’, que existe somente para homens do gênero do Sr. Dühring, não pode ser remediado nem mesmo pela Comuna Econômica, ao menos em nosso planeta.”

Na sociedade de produtores privados, os gastos para a formação de cada operário instruído correm por conta dos particulares ou de suas famílias, razão pela qual devem eles mesmos lucrar com a diferença de preço das forças de trabalho qualificadas. O escravo hábil é vendido por maior preço, o operário mais competente obtém um melhor salário. Na sociedade socialista, os gastos com a instrução correrão por conta da coletividade, e a ela, portanto, é que deverão caber os seus frutos, isto é, o excedente de valor engendrado pelo trabalho complexo.”

PARTE II. ECONOMIA POLÍTICA. CAPÍTULO VII. CAPITAL E MAIS-VALIA

Assim, segundo Marx, o capital teria nascido da moeda no começo do século XVI. É como se disséssemos que a moeda metálica nasceu há 3 mil anos, do gado, porque, como se sabe, este teve antigamente função de moeda. Só mesmo o Senhor Dühring seria capaz de exprimir-se com tanta grosseria e desacerto.”

Na sua primeira entrada em cena, isto é, na sua primeira aparição no mercado, quer se trate do mercado de mercadorias, do de trabalho ou de moeda, o capital reveste sempre a forma dinheiro, a forma de um dinheiro que (…) deve transformar-se em capital. O Capital, livro I, capítulo IV

O capitalista incipiente começa por comprar aquilo de que ele próprio ‘não tem’ necessidade; compra para vender, e para vender mais caro, para recuperar o valor-dinheiro primitivamente aplicado na compra e, mais ainda, para recuperá-lo acrescido de um excedente em dinheiro, que Marx denomina de mais-valia.”

O problema é este: como é possível vender constantemente mais caro do que se comprou, mesmo que se suponha que se trocam sempre valores iguais por valores iguais?

A solução dessa questão é, na obra de Marx, o seu grande mérito, um acontecimento que marca uma época. Ela veio iluminar domínios econômicos em que até aqui não só os socialistas como os economistas burgueses tateavam no meio das trevas mais espessas. Data dessa época, e em torno dela se agrupa, o socialismo científico.”

seria preciso que o nosso possuidor de dinheiro tivesse a sorte de descobrir, na esfera da circulação, isto é, no mercado, uma mercadoria cujo valor de uso fosse dotado da singular propriedade de ser fonte de um novo valor ou cuja utilização real seria, pois, a materialização do trabalho e, por conseqüência, ‘criação de valor’. Ora, o possuidor de dinheiro encontra no mercado essa mercadoria particular: é a capacidade de trabalho, ou força de trabalho.” O Capital

Também o comprador da força de trabalho tem, em conseqüência, [do fato de que, no início, o valor pago pelas horas de trabalho suficientes para produzir a mercadoria não gere excedente¹] uma maneira inteiramente diversa de encarar a natureza do contrato realizado com o operário.”

¹ Obviamente essa hipótese ideal só poderia ocorrer sob 2 possibilidades razoavelmente difíceis de encontrar no mercado de trabalho:

a) remuneração justa;

b) jornada de trabalho honesta.

O fato de somente 6h de trabalho serem necessárias para manter a vida do trabalhador durante 24h não o impede de modo algum que seja obrigado a trabalhar 12h em 24.” Razão por que as reformas trabalhistas demoraram séculos, enquanto o Capitalismo se consolidava espetacularmente… Quando o Capital volta a enfraquecer no fim do século XX, principalmente no setor de serviços, onde não há a possibilidade de mecanização da maioria dos processos, tem de recorrer à terceirização e quarteirização, expediente que permite a flexibilização das leis trabalhistas e o retorno de jornadas de 10 a 12h para desprivilegiados do sistema.

Que o valor criado pela utilização dessa força de trabalho, durante um dia, seja 2x tão grande quanto o valor diário dessa força é uma grande sorte para o comprador; mas não é, de forma alguma, de acordo com as leis que regem a troca de mercadorias, uma injustiça em relação ao vendedor. Assim, o trabalho custa ao possuidor de dinheiro, segundo a nossa hipótese, diariamente, o produto em valor de 6h de trabalho. Diferença em proveito do possuidor de dinheiro: 6h de sobre-trabalho não-pago, no qual se acha incorporado o trabalho de 6h. Realizou-se o milagre, a mais-valia foi produzida, o dinheiro transformou-se em Capital.”

É preciso, primeiramente, que o trabalhador possa dispor, como pessoa livre, de sua força de trabalho, como de uma mercadoria qualquer; é preciso, em seguida, que não tenha outra mercadoria a vender e que esteja livre e desembaraçado de todas as coisas necessárias para realizar, por conta própria, a sua força de trabalho.” O Capital

Com efeito, esse trabalho livre aparece na história, pela 1ª vez, em massa, no fim do século XV e começo do XVI, em seguida à decomposição do regime feudal de produção.”

Assim, o pecado que o Senhor Dühring acusa em Marx, de não fazer do Capital a idéia comumente admitida em economia política, não somente ele próprio o comete, como perpetra, em relação a Marx, um plágio torpe, ‘mal-dissimulado’ por meio de frases pretensiosas.”

O Capital é, pois, uma fase histórica, não somente em Marx como também no Sr. Dühring. Somos, assim, forçados a concluir que estamos entre jesuítas: quando 2 homens fazem a mesma coisa, não é a mesma coisa. Quando Marx diz que o Capital é uma fase histórica, essa afirmação é resultado de ‘uma imaginação exótica, produto bastardo da fantasia histórica e lógica em que a faculdade de discernimento desaparece com tudo o que significa probidade no emprego dos conceitos’. Quando o Sr. Dühring apresenta igualmente o capital como uma fase histórica, isso é uma prova de ‘penetração na análise econômica, do caráter científico mais definitivo e mais rigoroso, no sentido das disciplinas exatas’.”

“‘O sobre-trabalho, o trabalho excedente ao tempo necessário à manutenção do trabalhador’, e a apropriação do produto desse sobre-trabalho por outrem, a exploração do trabalho, são, pois, comuns a todas as formas de sociedade até aqui existentes, enquanto nelas reinarem os antagonismos de classes. Mas é somente quando o produto desse sobre-trabalho se reveste da forma de mais-valia, quando o proprietário dos meios de produção encontra diante de si, como objeto de exploração, o trabalhador livre – livre de entraves sociais e livre de bens próprios – e o explora tendo em vista a produção de mercadorias, é somente então, segundo Marx, que os meios de produção se revestem do caráter específico de Capital.”

Noutros termos, o Senhor Dühring apropria-se do conceito de sobre-trabalho descoberto por Marx para fulminar a mais-valia, igualmente descoberta por Marx, e que, por enquanto, não lhe convém. Segundo o Senhor Dühring, não só a riqueza mobiliária e imobiliária dos cidadãos atenienses e coríntios, que utilizavam o trabalho escravo, mas também a dos grandes proprietários territoriais romanos da época imperial, e, do mesmo modo, dos barões feudais da Idade Média, por pouco que servissem, de qualquer maneira, à produção, constituem, todas, modalidades, sem exceção, de Capital.”

Para nós, é-nos absolutamente indiferente que todos os economistas burgueses se deixem dominar pela idéia de que a virtude de produzir juros ou lucros é inerente a qualquer soma de valores invertidos, sob condições normais, na produção ou na troca de mercadorias. Capital e lucro ou capital e juros são, na economia clássica, inseparáveis, estão de tal maneira entrelaçados entre si como a causa e o efeito, o pai e o filho, o ontem e o hoje. Mas a palavra, Capital, na sua significação econômica moderna, só aparece na época em que surge o próprio fenômeno que o caracteriza, em que a riqueza mobiliária se reveste cada vez mais da função de Capital, isto é, explora o sobre-trabalho de operários livres, com o fim de produzir mercadorias; e esse fenômeno começa a tomar forma, pela 1ª vez, na mais antiga nação capitalista que se apresenta na história: a Itália dos séculos XV e XVI.”

PARTE II. ECONOMIA POLÍTICA. CAPÍTULO VIII. CAPITAL E MAIS-VALIA (conclusão)

A mais-valia divide-se, portanto, em várias partes, que se destinam a diversas categorias de pessoas e se revestem, cada uma, de uma forma especial, independentes umas das outras, tais como lucro, juros, ganho comercial, renda territorial, etc.” O Capital

BURRO OU DESONESTO: “Quando o Sr. Dühring pretende, portanto, que a mais-valia de Marx é, para falar a linguagem comum, o ‘lucro do capital’, o quê se pode concluir, em face disso, uma vez que todo o livro de Marx gira em torno da mais-valia? Só há 2 hipóteses: ou ele não sabe o que diz e, nesse caso, é de uma impudência sem igual pretendendo fulminar uma obra cujo conteúdo essencial ignora; ou conhece esse conteúdo e comete voluntariamente uma falsificação.”

Marx diz expressamente que o lucro comercial também constitui uma parte da mais-valia, e em tais circunstâncias isto só é possível se o fabricante vender seu produto ao negociante, abaixo de seu valor, cedendo-lhe, assim, uma parte de seu espólio. Feita como aí está, a pergunta, na verdade, não pode nem mesmo ser encontrada em Marx. Feita em termos racionais, ei-la: Como a mais-valia se transforma em suas formas e modalidades: lucro. juros, ganho do comerciante, renda territorial, etc.? E esta questão Marx promete, sem dúvida, resolvê-la no livro II de O Capital. Mas se o Senhor Dühring não podia esperar pacientemente pelo aparecimento do 2º. volume de O Capital, poderia ter examinado, com mais cuidado, o 1º vol. Neste, poderia ver, afora as passagens já citadas, à página 323, por exemplo, que, segundo Marx, as leis imanentes da produção capitalista agem no movimento exterior dos capitais como as leis imperativas da concorrência, que é a forma sob a qual se revelam à consciência do capitalista individual como os seus motivos propulsores; que, por conseguinte, uma análise científica da concorrência não é possível senão quando se discerne a natureza íntima do capital, [Sua natureza trágica e inconsciente] do mesmo modo que o movimento aparente dos corpos celestes só é perceptível aos que conhecem o seu movimento real, imperceptível aos sentidos.”

Para Marx, o sobre-produto, como tal, não entra absolutamente nos gastos da fabricação: é a parte do produto que não custa nada ao capitalista, Se os patrões concorrentes quisessem vender o sobre-produto ao preço de suas despesas naturais de fabricação, nada mais teriam a fazer senão dá-lo de presente. Mas não nos retardemos nestes ‘detalhes micrológicos’. Não estariam os patrões concorrentes valorizando diariamente o produto do trabalho acima do custo natural de produção?”

A Vênus da qual esse fiel mentor procura desviar a juventude alemã, ele a tinha ido buscar nas terras de Marx e a tinha posto, em surdina, em lugar seguro, para seu próprio prazer. Cumprimentemo-lo por esse produto líquido obtido, utilizando a força de trabalho de Marx, e pela luz particular que a sua anexação da mais-valia marxista, sob o nome de renda possessória, lança sobre os motivos da sua falsa e obstinada afirmação, aliás repetida em 2 edições, de que Marx entendia por mais-valia somente o lucro ou o ganho do capital.”

PARTE II. ECONOMIA POLÍTICA. CAPÍTULO IX. LEIS NATURAIS DA ECONOMIA – A RENDA TERRITORIAL

Lei nº 1: ‘A produtividade dos meios econômicos, das riquezas naturais e da força do homem, é intensificada pelas <invenções> e <descobrimentos>.’

Espantoso! O Senhor Dühring trata-nos, mais ou menos como, em Molière, aquele pândego trata o fidalgo, ao dizer-lhe que ele fez prosa toda a vida sem o saber.”

que essa velha banalidade seja a lei fundamental de toda a economia, eis uma revelação que ficamos devendo ao Senhor Dühring.” “Se a ‘vitória da verdadeira ciência’, em economia política como em filosofia, consiste somente em dar ao 1º lugar-comum que nos ocorre um nome retumbante, e proclamá-lo como uma lei natural, ou seja, como uma lei fundamental, então, realmente, ‘fundar a ciência sobre uma base aprofundada’, revolucionar a ciência, torna-se possível a todo mundo, inclusive à redação da Volkszeitung, de Berlim.”

Quando dizemos, p.ex., que os animais comem, com isso enunciamos tranqüilamente, com toda a inocência, uma grande coisa. Para revolucionarmos toda a zoologia, não teríamos senão que dizer: a lei fundamental de toda vida animal é comer.” HAHAHA!

Lei nº 2: ‘Divisão do trabalho. A separação dos ramos profissionais e a especialização das atividades aumentam a produtividade do trabalho.’

Lei nº 3: ‘Distância e transporte são as causas principais que entravam ou favorecem a cooperação das forças produtivas.’

Lei nº 4: ‘O Estado industrial tem uma capacidade de produção incomparavelmente maior que o Estado agrícola.’

Lei nº 5: ‘Em economia política, nada acontece sem que corresponda a um interesse material.’ [HAHAHAHAA]

Tais são as ‘leis naturais’ sobre as quais o Senhor Dühring funda a sua economia.”

terminaremos por um estudo rápido das idéias do Senhor Dühring sobre a renda territorial. § Passamos por alto todos os pontos em que o Sr. Dühring se limita a repetir Carey, seu predecessor; não trataremos aqui de refutar a Carey, nem de defendê-lo contra suas tergiversações e fatuidades acrescentadas à concepção ricardiana da renda do solo.”

ele define a renda do solo como ‘a renda que o proprietário recebe do solo, em sua condição de proprietário’.” Parece fazer sentido!

[Mas a] idéia econômica de renda territorial, que o Sr. Dühring deve explicar, é singelamente traduzida em linguagem jurídica, de maneira que não avançamos um palmo. Nosso construtor de alicerces profundos é, portanto, obrigado a entregar-se, por bem ou por mal, a excessos de explicações.”

n[est]a teoria da renda territorial não se distingue especialmente o caso em que um homem explora, ele próprio, a sua terra, e não se dá muita importância à diferença quantitativa que existe entre uma renda percebida sob a forma de arrendamento e uma renda produzida por aquele mesmo que a aufere.”

Onde existam explorações consideráveis, ver-se-á facilmente que não se poderia considerar o ganho específico do arrendatário como uma espécie de salário de seu trabalho: esse lucro, com efeito, surge em oposição à força de trabalho agrícola, cuja exploração torna, por si mesma, possível essa espécie de renda. É evidentemente ‘uma fração de renda’ que fica nas mãos do arrendatário e torna menor a ‘renda integral’ que o proprietário receberia caso explorasse por conta própria a terra.

A teoria da renda territorial é uma parte da economia política especificamente inglesa e devia sê-lo, pois é somente na Inglaterra que existe um modo de produção em que a renda se separa efetivamente do lucro e dos juros. Na Inglaterra, como se sabe, dominam o latifúndio e a grande agricultura. Os proprietários territoriais arrendam suas terras, sob a forma, quase sempre, de grandes domínios, a arrendatários providos de capital suficiente para explorá-las. Estes arrendatários não trabalham como os camponeses alemães, não passando de autênticos empreiteiros capitalistas, pois empregam o trabalho de assalariados. Temos aí, portanto, 3 classes da sociedade burguesa e a renda própria a cada uma delas: o latifundiário, que percebe a renda territorial; o capitalista, que embolsa o lucro; o trabalhador, que recebe o salário. Nunca um economista inglês se lembrou de fazer do ganho do arrendatário, como ‘parece’ ao Senhor Dühring, uma espécie de salário.” “É verdadeiramente ridículo, com efeito, dizer que nunca se levantou com tanta precisão a questão de saber o que é, na verdade, o lucro do arrendatário. Na Inglaterra, não se tem mesmo necessidade de fazer semelhante pergunta, cuja resposta está dada há muito tempo pelos fatos e nenhuma dúvida houve, até hoje, nesse sentido, desde Adam Smith.

O caso em que o proprietário explora, ele mesmo, as suas terras, segundo considera o Sr. Dühring, ou melhor, como diríamos nós, a exploração por parte dos administradores, por conta do proprietário territorial, como acontece, às vezes, na Alemanha, em nada altera a questão. Quando o latifundiário fornece o capital e faz explorar a terra por sua própria conta, ele embolsa, além da renda territorial, o lucro do capital, como é inevitável no atual regime de produção.”

Um latifundiário que ‘também explora’ parte de suas próprias terras deveria receber, uma vez pagos os gastos de exploração, a renda do proprietário territorial [mas é ele! a renda que ele recebe está na forma de não pagar o arrendamento ao proprietário, ora bolas!] e o lucro do arrendatário. Entretanto, ele chamará de boa vontade, pelo menos na linguagem corrente, todo o seu ganho de lucro, confundindo assim renda com lucro. A maioria dos lavradores da América do Norte e das Índias Ocidentais está nesse caso: a maior parte cultiva suas propriedades e raramente ouvimos falar da renda de uma lavoura, e, sim, do lucro que ela dá … Um hortelão, que cultiva com suas mãos sua própria horta, é proprietário territorial, arrendatário [!!!] e operário assalariado ao mesmo tempo: o produto deveria, portanto, pagar-lhe a renda do primeiro, o lucro do segundo e o salário do terceiro; [HAHAHA!] entretanto, tudo passa ordinariamente como sendo produto de seu trabalho: desse modo, a renda e o lucro se confundem com o salário.” Riqueza das Nações, vol 1, cap. 6

o arrendatário ‘diminui’ a renda do latifundiário, isto é, que, no Senhor Dühring, não é como se havia até agora figurado, o arrendatário que ‘paga’ ao proprietário territorial, mas o ‘proprietário territorial’ que paga ‘ao arrendatário uma renda’ – [!!!!] e eis aí ‘um ponto de vista eminentemente original’.” “o que o Senhor Dühring entende [verdadeiramente] como renda do solo: é todo o sobre-produto obtido, na agricultura, pela exploração do trabalho do camponês.” Mas o latifundiário exclusivo não possui a mão-de-obra, burro!

Assim, segundo o Senhor Dühring, a única diferença entre a renda territorial e o lucro do capital é que a 1ª se obtém na agricultura e a 2ª na indústria e no comércio.”

PARTE II. ECONOMIA POLÍTICA. CAPÍTULO X. SOBRE A “HISTÓRIA CRÍTICA”

Como a economia política, tal qual se manifestou na história, não é, de fato, senão o estudo científico do que é a economia do período de produção capitalista, não se podem encontrar proposições e teoremas que com ela se relacionem (p.ex., entre os escritores da sociedade grega antiga) senão na medida em que certos fenômenos, tais como a produção mercantil, o comércio, a moeda, o capital que rende juros, etc., são comuns às duas sociedades. Todas as vezes que os gregos incursionam ocasionalmente nesse domínio, demonstram o mesmo gênio e a mesma originalidade que nos outros. Seus pontos de vista são, pois, historicamente, os pontos de partida teóricos da ciência moderna.”

D. critica Aristóteles, o inventor dos termos valor de uso e valor de troca, dizendo que em sua época (a de D., claro) já não é mais necessária essa distinção!

Desdém e nada mais, é tudo o que Platão consegue do Senhor Dühring pela sua exposição – genial para seu tempo – da divisão do trabalho como base natural da cidade (sinônimo de Estado para os gregos), e isso porque ele (Platão) não menciona (mas o grego Xenofonte o faz, Senhor Dühring!) que o ‘limite que impõe toda a extensão do mercado à divisão ulterior dos ramos profissionais e a separação técnica das operações especiais … A noção desse limite é a primeira verificação pela qual uma idéia que, antes, se podia dificilmente classificar de científica, se torna uma verdade de importância econômica.’

não foi o mercado que criou a divisão capitalista do trabalho, mas que, inversamente, foi o desdobramento de unidades sociais anteriores, e a divisão do trabalho dele resultante, que criaram o mercado. (Ver O Capital, livro I, capítulo XXIV, 5: ‘Estabelecimento do mercado interior para o capital industrial’).”

O papel da moeda foi, em todos os tempos, a primeira incitação às idéias econômicas (!).¹ Mas que sabia um Aristóteles desse papel? Evidentemente nada que ultrapassasse a noção de que a troca, por meio da moeda, sucedeu à troca primitiva em espécie.”²

¹ A exclamação de Engels se deve a que o Sr. Dãring havia reputado a Marx, em outra página, o erro calamitoso de que ‘o capital surgia com a moeda’, discutido mais acima, sendo que Marx nunca dissera isso!

² “Descobriu” o movimento M-D-M / D-M-D de Marx! Hahaha!

Mas, quando um Aristóteles se permite descobrir as 2 ‘formas de circulação’ diferentes da moeda, uma em que ela aparece como simples instrumento de circulação, outra em que age como capital monetário, não faz, com isso, segundo o Senhor Dühring, ‘senão exprimir uma antipatia moral’.” “um Dühring prefere nada dizer, por motivos dele conhecidos, sobre essa impertinente audácia.”

Faremos melhor lendo o capítulo do Senhor Dühring sobre o mercantilismo, no ‘original’, isto é, em F. List, Sistema Nacional, capítulo XXIX: O sistema industrial, falsamente chamado de sistema mercantil.”

A Itália precedeu todas as nações modernas, na teoria como na prática da economia política (…) [a] primeira obra escrita na Itália, especialmente sobre economia política, o livro de Antonio Serra, napolitano, Sobre os meios de proporcionar aos reinos ouro e prata em abundância [ou Breve Trattato] (1613).” List

O Senhor Dühring aceita isso sem hesitação e pode, em conseqüência, ‘considerar o livro de Serra como uma espécie de epígrafe à entrada da pré-história moderna, da economia’. (…) mas, infelizmente, as coisas se passaram na realidade de outro modo, pois, em 1609, 4 anos por conseguinte antes do Breve Trattato, apareceu A Dicourse of Trade, etc., de Tomas Mann. Essa obra teve, desde a sua primeira edição, a significação particular de ser dirigida contra o antigo ‘sistema monetário’, então ainda defendido como prática do Estado, na Inglaterra, e representa, portanto, a ‘emancipação’ conscientemente praticada pelo sistema mercantil do sistema que lhe tinha dado origem.” “Na edição de 1664, completamente refundida pelo autor e aparecida após a sua morte sob o título de England’s Treasure, etc. continuou sendo, por mais 100 anos ainda, o evangelho mercantilista. Se, pois, o mercantilismo possui um livro que fez época, ‘uma espécie de epígrafe à entrada’, é bem esse, que também não existe de maneira alguma para o Senhor Dühring e nem para sua ‘História’, que ‘observa com o maior cuidado as gradações hierárquicas da história’.”

Do fundador da economia política moderna, Petty, o Senhor Dühring nos diz que tinha uma quantidade ‘bem grande’ de pensamentos superficiais, que ‘não tinha o senso das distinções interiores e sutis entre os conceitos’” “Que extraordinária condescendência, esta do ‘pensador sério’, Senhor Dühring, consentindo em levar em conta ‘um Petty’! E de que maneira o leva em conta!”

No seu Treatise on Taxes and Contributions (1ªed. em 1662), Petty faz uma análise perfeitamente clara e exata sobre a grandeza do valor das mercadorias. Esclarecendo primeiramente, à luz da igualdade de valor entre os metais preciosos e os cereais que custam um trabalho igual, ele foi o primeiro a dizer a última palavra ‘da teoria’ sobre o valor dos metais preciosos, expondo com a mesma precisão o princípio geral de que os valores das mercadorias são medidos por um ‘trabalho igual’ (equal labor).” Naquela época, aparentemente, dizer que 1kg de chumbo pesava tanto quanto 1kg de alface ainda gerava muito rumor e polêmica…

entretanto, na construção e na aplicação prática do princípio do trabalho igual existe, eu o confesso, muita diversidade e complicação” Petty, o modesto

Um trabalho de Petty, perfeitamente harmônico, é o seu Quantulumcumque [Concerning Money], publicado em 1682, 10 anos após sua Anatomy of Ireland (aparecida ‘pela primeira vez’ em 1672 e não em 1691, como escreve o Senhor Dühring, conforme as ‘compilações dos manuais mais correntes’). Os últimos traços de concepções mercantilistas, que se acham noutros escritos de Petty, desaparecem por completo nesta obra. É uma pequena obra-prima, no fundo e na forma, e é justamente por isso que não figura na lista do Senhor Dühring.”

O Senhor Dühring trata Petty, fundador da Aritmética Política, vulgarmente chamada estatística, como já havia tratado Petty pelos trabalhos propriamente econômicos. Dá de ombros, com ar zangado, diante da singularidade dos métodos grotescos que o próprio Lavoisier aplicava ainda, nesse domínio, 100 anos mais tarde: quando consideramos a distância que ainda separa a estatística atual do objetivo que Petty lhe traçara em linhas gerais, esse ar de superioridade suficiente, 2 séculos post festum, parece como uma tolice desmedida.”

Law imagina, pelo contrário, que um ‘acréscimo’ qualquer do número desses ‘pedaços de papel’ aumenta a riqueza de uma nação.”

SUCESSORES DE PETTY: “As duas obras, Considerations on Lowering of Interest and Raising of Money, de Locke, e os Discourses upon Trade, de North, apareceram no mesmo ano de 1691.”

DEFEITO DO TRATADO ECONÔMICO: ERA EMPÍRICO DEMAIS!‘O que Locke escreveu sobre os juros e a moeda não sai do quadro das reflexões que eram habitualmente, sob o reino do mercantilismo, ligadas aos acontecimentos da vida política (pág. 64, da História Crítica de Dãring). O leitor poderá, agora, por intermédio desse verídico informe, compreender com absoluta clareza por que o Lowering of Interests, de Locke, exerceu sobre a economia política francesa e italiana da 2ª metade do século XVIII influência tão considerável, e efetivada em diversos sentidos.”

enquanto que Locke só admite com restrições a liberdade dos juros reclamada por Petty, North a aceita integralmente.”

O Senhor Dühring ultrapassa-se a si mesmo quando, mercantilista mais inflexível ainda, num sentido ‘mais sutil’, fulmina os Discourses upon Trade de Dutley North, observando que são escritos ‘no sentido do livre-câmbio’. É como se disséssemos, de Harvey, que ele escreveu ‘no sentido da circulação do sangue’. A obra de North – sem falar de outros méritos que tem – é uma análise clássica, escrita com uma lógica rigorosa, da doutrina livre-cambista, referente ao comércio tanto exterior como interior, análise que, na verdade, no ano de 1691, representava ‘algo inaudito’.

De resto, o Senhor Dühring relata que North era um ‘traficante’ e, ainda por cima, um mau sujeito, e que seu livro ‘não podia ter êxito’. Ele teria feito melhor mostrando que tal obra teria ‘êxito’ no momento em que triunfava definitivamente o sistema protecionista na Inglaterra, pelo menos junto à turba que representava o elemento característico. Entretanto, isso não impediu sua ação teórica imediata, que se pôde mostrar em toda uma série de escritos econômicos aparecidos na Inglaterra, imediatamente depois dele, alguns ainda no século XVII.”

durante o período que vai de 1691 a 1752, impõem-se ao observador mais superficial, pelo simples fato de que todos os trabalhos econômicos importantes dessa época a eles se referem, para dar razão ou refutar Petty. Esse período, em que abundam os espíritos originais, é conseqüentemente o mais importante para o estudo da gênese e do gradual desenvolvimento da economia política. O ‘historiador em grande estilo’, censura a Marx, como uma falta imperdoável, o fato de, em O Capital, ter feito tanto barulho em torno de Petty e dos escritores desse período, simplesmente escamoteia a todos eles da história. De Locke, North, Boisguillebert e Law, ela salta imediatamente para os fisiocratas e, então, aparece nos umbrais do verdadeiro templo da economia política… David Hume. Com a permissão do Senhor Dühring, restabeleçamos a ordem cronológica e ponhamos Hume antes dos fisiocratas.

Os Ensaios econômicos de Hume apareceram em 1752. Nos 3 ensaios existentes – Of Money, Of the Balance of Trade, Of Commerce, Hume segue passo a passo, às vezes até em suas simples fantasias, um livro de Jacob Vanderlint: Money answers all things, Londres, 1734. Por mais desconhecido que esse Vanderlint tivesse permanecido para o Senhor Dühring é ainda tomado em consideração nos livros ingleses de economia política do fim do século XVIII, isto é, no período que se segue a Adam Smith.”

HUME, CARENTE EM DIVERSAS SEARAS: “Como Vanderlint, Hume trata da moeda como simples signo do valor; copia quase palavra por palavra (e isso é importante, porque ele poderia ter tomado de empréstimo a muitas outras obras essa teoria da moeda como signo do valor), de Vanderlint, as passagens explicando por que a balança do comércio não pode ser constantemente favorável ou desfavorável a um país; ensina, como Vanderlint, a teoria do equilíbrio das balanças estabelecendo-se natural e respectivamente, segundo as diversas situações econômicas dos diferentes países; prega, como Vanderlint, o livre-câmbio de maneira apenas menos audaciosa e menos conseqüente; insiste, como Vanderlint, porém com menos vigor, sobre as necessidades como motivo da produção: segue Vanderlint no que se refere à falsa influência atribuída à moeda bancária e a todos os valores públicos sobre os preços das mercadorias; como Vanderlint, repele a moeda fiduciária; como Vanderlint, faz depender os preços das mercadorias do preço do trabalho, portanto, do salário; segue-o mesmo nessa fantasia de que o entesouramento faz baixar o preço das mercadorias, etc., etc.”

Nada passa por ser um indício mais certo da prosperidade de uma nação que o nível baixo da taxa de juros, e com razão; contudo, creio que a causa desse fato é um pouco diferente daquela que geralmente se admite.’ Como vêem, desde a 1ª frase, Hume aceita a idéia de que o nível da taxa de juros é o indício mais seguro da prosperidade de uma nação, como um lugar-comum que já em seu tempo se tornara banal. Efetivamente, depois de Child, essa ‘idéia’ teve, para se popularizar, uns bons 100 anos de vulgarização.”

num trecho (…) [Hume] leva mais longe o erro de Locke, segundo o qual os metais preciosos só teriam um ‘valor imaginário’, e o agrava dizendo que eles têm principalmente um ‘valor fictício’. Nesse ponto, Hume é bastante inferior, não somente a Petty, mas ainda a vários de seus contemporâneos ingleses. Ele mostra o mesmo espírito atrasado quando se obstina em exaltar o ‘comerciante’, à moda antiga, como o primeiro motivo da produção, ponto de vista que Petty há muito tempo superara.”

Cantillon, 1752 (alternativa muito superior a Hume, que publicou por essa época – com a diferença suplementar que aquele já havia morrido, isto é, suas publicações são post morten)

Como era inevitável num escocês, a admiração de Hume pelo enriquecimento burguês está longe de ser puramente platônica. Nascido pobre, ele consegue obter um rendimento anual de milhares de libras, o que o Senhor Dühring, uma vez que não se trata mais de Petty, exprime engenhosamente da seguinte maneira: ‘Ele chegara, partindo de poucos recursos, graças a uma boa <economia doméstica>, a não precisar escrever para agradar a quem quer que seja’

Sem dúvida, não nos consta que Hume se tenha associado com um Wagner, (sic) para negócios literários:(*) mas sabe-se que Hume era um partidário infatigável da oligarquia whig, defensora ‘da Igreja e do Estado’; e que, como recompensa de seus serviços, obteve, primeiro, o posto de secretário da embaixada em Paris, e, mais tarde, o cargo incomparavelmente mais importante e lucrativo de sub-secretário de Estado. ‘Do ponto de vista político, Hume era e continuou sempre conservador e estritamente monarquista. Por esse motivo, não foi excomungado com tamanha violência, como Gibbon, pelos partidários da Igreja estabelecida’, diz o velho Schlosser. ‘Hume, esse egoísta, esse historiador mentiroso – diz esse ‘rude’ plebeu Cobbet – que insulta os monges ingleses de gordos, de celibatários, de sem-família, vivendo da mendicidade, nunca teve nem família nem mulher e era, ele próprio, um latagão gordo e grande, excelentemente engraxado pelo dinheiro do Estado, sem o ter nunca merecido, por serviço algum, verdadeiro, prestado ao povo.’

(*) Alusão a uma obra de Dühring para Bismarck, por encomenda de Wagener, professor e conselheiro prussiano.”

A Escola ‘fisiocrática’ deixou-nos, como se sabe, no Quadro econômico de Quesnay, um enigma, que, para os críticos e historiadores da economia política, tem sido de impossível decifração. Esse Quadro, destinado a fazer compreender claramente a concepção que tinham os fisiocratas da maneira pela qual se produz e circula o conjunto da riqueza de um país, permaneceu bastante obscuro para os economistas ulteriores.” “Segundo o próprio sr. Dühring confessa, não compreende o ABC da fisiocracia.”

Mas não queremos que o leitor fique, a respeito do Quadro de Quesnay, na mesma ignorância em que necessariamente se afundaram os que bebem a sua ciência econômica ‘de primeira mão’ no Senhor Dühring. Vejamos, em poucas palavras, de que se trata.

Sabe-se que, para os fisiocratas, a sociedade se divide em 3 classes: 1ª. a classe produtiva, isto é, a classe que realmente se ocupa da agricultura, os colonos e os trabalhadores rurais, cujo trabalho é produtivo porque fornece um excedente: a renda; 2ª. a classe que se apropria desse excedente que compreende os proprietários territoriais, os príncipes e toda a clientela que deles depende; de modo geral, os funcionários pagos pelo Estado e, inclusive, a Igreja, na sua qualidade particular de recebedora de dízimo (para abreviar, designaremos a 1ª classe simplesmente pelo nome de ‘colonos’ e a segunda pelo de ‘proprietários fundiários’): 3ª. a classe industrial, ou estéril (improdutiva), porque, segundo os fisiocratas, se limita a incorporar às matérias-primas fornecidas pela classe produtiva o necessário valor para compensar os víveres que esta própria classe consome. O Quadro de Quesnay é feito para tornar sensível aos nossos olhos como o produto total de um país (na realidade, a França) circula entre essas 3 classes e serve para a reprodução anual.

Supõe-se, inicialmente, no Quadro, que o sistema de arrendamento, e com ele a grande agricultura, no sentido que essa palavra tinha no tempo de Quesnay, fôra introduzido por toda parte, na Normandia, na Picardia, na Ilha-de-França, e em algumas outras províncias francesas. Também o arrendatário é para ele o verdadeiro condutor da agricultura; representa no Quadro toda a classe produtiva (agrícola), [grande confusão: quando estes arrendatários deviam ser simplesmente os capitalistas do campo, i.e., a 3ª classe de Quesnay, sua antípoda – aqui são justamente os ‘operários’, que pagam diretamente a renda da terra aos ‘senhores feudais’, por assim dizer, da nobreza!] e paga ao proprietário territorial uma renda em dinheiro. [que Quesnay novamente confunde e põe na 2ª classe, eminentemente urbana, onde estão até os funcionários do Estado! – o abstrato colono é a única mão-de-obra que ele conhece, afinal.]

O ponto de partida do Quadro é a colheita total do país, a qual, por essa razão, figura no alto do Quadro como produto bruto anual do solo ou ‘reprodução total’ do país, ou seja, da França.” “Como dissemos, calcularam-se os preços constantes e a reprodução simples, [‘PIB cíclico’, ‘orçamento anual’] segundo uma taxa fixada de uma vez por todas: O valor em moeda dessa parte descontada, de antemão, é igual a 2 bilhões de libras. Esta parte não entra, pois, na circulação geral, porque, conforme já dissemos, a circulação que se efetua somente dentro de uma das classes não é registrada no Quadro.”

Sendo a renda total o ponto de partida do Quadro, constitui ao mesmo tempo o ponto terminal de um ano econômico, por exemplo, o ano de 1758, após o qual um novo ano econômico começa. (…) Mas esses movimentos sucessivos, e dispersos, que se estendem por todo um ano, são – como de qualquer maneira devia fazer-se no Quadro – reunidos num pequeno número de atos característicos, abrangendo cada um, de um só golpe, o ano inteiro. Assim, no fim do ano de 1758, a classe dos arrendatários viu refluir para ela o dinheiro que havia pago como renda aos proprietárias territoriais em 1757, ou seja, a soma de 2 bilhões de libras, de maneira que ela pôde lançar novamente essa soma na circulação de 1759 (…) os 2 bilhões de libras que se encontram nas mãos dos arrendatários ficam representando a soma total da moeda circulante da nação. [onde outros 8 bilhões, que somados a esses 2 são o produto bruto do solo da França, são apenas transações interclasse e não ‘entram’ no ‘orçamento’!]

A classe dos proprietários territoriais que vivem de suas rendas, apresenta-se, então, como ainda hoje várias vezes acontece, no seu papel de credora. Segundo a suposição de Quesnay, os proprietários territoriais propriamente ditos não recebem senão 4/7 dessa renda de 2 bilhões, pois 2/7 vão para o governo e 1/7 para os cobradores de dízimos. No tempo de Quesnay, a Igreja era o maior proprietário territorial da França e recebia, ainda por cima, o dízimo da propriedade territorial restante.” O dízimo que era bem mais de 10%!

Quanto aos múltiplos papéis que esses produtos desempenham na exploração das indústrias dessa classe, [a 3ª] é coisa que não interessa ao quadro, assim como nele não interessa a circulação de mercadorias e de dinheiro, que se verifica dentro da sua própria órbita. O salário pago pelo trabalho, graças ao qual a classe estéril transforma as matérias-primas em produtos manufaturados, é igual ao valor dos meios de existência que ela recebe, diretamente, da classe produtiva e, indiretamente, dos proprietários territoriais. Se bem que a classe estéril se divida em capitalistas e trabalhadores assalariados, ela está, segundo a concepção fundamental de Quesnay, como classe em seu conjunto, a soldo da classe produtiva e dos proprietários territoriais. [confusão da porra!]”

Supõe-se, portanto, que, no começo do movimento figurado pelo Quadro, [1º dia do ano fiscal] a produção anual em mercadorias da classe estéril se encontra inteiramente em suas mãos, e, por conseguinte, todo o seu capital de exploração, ou seja, as matérias-primas no valor de 1 bilhão, é transformado em mercadorias, no valor de 2 bilhões, cuja metade representa o preço dos meios de existência consumidos durante essa transformação.” “não só a classe estéril consome, ela própria, uma parte dos seus produtos, como ainda procura reter o máximo que pode; ela vende, pois, suas mercadorias postas em circulação, acima do seu valor real, e é forçada a fazê-lo uma vez que incluímos essas mercadorias no valor total de sua produção. Isso, entretanto, não altera os dados estabelecidos pelo Quadro, porque as 2 outras classes só recebem, afinal de contas, as mercadorias manufaturadas pelo valor de sua produção total.”

A classe produtiva, após haver substituído, em espécie, o seu capital de produção, dispõe ainda de 3 bilhões de produto agrícola e de 2 bilhões de moeda. A classe dos proprietários territoriais só é aí mencionada pelo seu crédito de 2 bilhões de renda sobre a classe produtiva. A classe estéril dispõe de 2 bilhões de mercadorias manufaturadas. Os fisiocratas chamam circulação imperfeita àquela que se efetua apenas entre 2 dessas 3 classes: a circulação perfeita é a que se passa entre todas as 3.”

Primeira circulação (imperfeita). – Os arrendatários pagam aos proprietários territoriais, sem prestação recíproca, a renda que lhes corresponde, com 2 bilhões em dinheiro. Com 1 desses bilhões os proprietários territoriais compram, dos arrendatários, meios de subsistência, e assim receberam metade do dinheiro desembolsado para pagar a renda.

Em sua Análise do Quadro Econômico, Quesnay já não fala nem do Estado, que recebe 2/7, nem da Igreja, que recebe 1/7 da renda territorial, porque o papel social de um e de outra é universalmente conhecido. Mas, no que se refere à propriedade territorial, [os 4/7 dos rentistas] diz ele que os seus gastos, entre os quais também figuram todos os trabalhadores [!] são, pelo menos em sua maior parte, gastos improdutivos, com exceção da pequena parte que é destinada a ‘manter e a melhorar os seus bens e incrementar o cultivo da terra’.” A classe inútil subsidia a classe produtiva com todos os meios de produção, que ficam aglutinados entre eles (os colonos). Que sonho lisérgico!

Segunda circulação (perfeita). – Com o 2º bilhão em dinheiro, que se acha ainda em suas mãos, os proprietários territoriais compram produtos manufaturados à classe estéril; e, por outro lado, esta, com o dinheiro percebido, compra dos fazendeiros os meios de existência pela mesma soma.”

Terceira circulação (imperfeita). – Os fazendeiros compram à classe estéril, com 1 bilhão em moeda, mercadorias manufaturadas correspondentes à mesma soma; [está se referindo à despesa da 2ª circulação, certo? pois do contrário, não tem sequer esse 1bi!] grande parte dessas mercadorias consiste em instrumentos agrícolas e outros meios de produção necessários ao cultivo da terra. A classe estéril restitui aos fazendeiros o mesmo dinheiro, comprando 1 bilhão de matérias-primas destinadas a substituir seu próprio capital de exploração. [Sim, estamos apenas repetindo a 2ª circulação até aqui! Que inútil!] Assim, os arrendatários recuperam os 2bi em dinheiro por eles desembolsado para pagamento da tenda. Desse modo, fica resolvido o grande enigma: ‘Que vem a ser, na circulação econômica, o produto líquido apropriado sob forma de renda?’.” Na verdade um nada, já que as riquezas são pré-históricas a este sistema maluco! Tudo isso é apenas um sistema solar em seu grande ano… Mas ainda tem mais, que tortura!:

No começo do processo, encontramos entre as mãos da classe produtiva um excedente de 3 bilhões. Deles, somente 2 foram pagos como produto líquido aos proprietários territoriais, sob forma de renda. O 3º bilhão excedente constitui os juros do capital total invertido pelos arrendatários, isto é, para 10 bilhões, l0%; estes juros – frisemo-lo bem – eles não os adquirem em virtude da circulação: acham-se em espécie em suas mãos, e a circulação nada mais faz que realizá-los, transformando-os, por esse meio, em mercadorias manufaturadas de valor igual.

Sem estes juros, o arrendatário, que é o agente principal da agricultura, não fará a ela o adiantamento do capital de estabelecimento. Esta já é uma razão para os fisiocratas pensarem que a apropriação pelo arrendatário da parte do sobre-produto agrícola que representa os juros, é uma condição tão necessária como a própria existência de uma classe de arrendatários; [a mais-valia é boa – e aliás é até NULA no final!] e esse elemento não pode, em conseqüência, ser incluído na categoria de ‘produto líquido’ ou ‘rendimento líquido’ nacional, nem pode ser consumido sem nenhuma consideração para com as necessidades imediatas da reprodução nacional.”

O sistema de Ricardo é um sistema de discórdia … nada mais faz do que provocar o ódio entre as classes … seu livro é o manual do demagogo que se esforça por ir ao poder, através da divisão das terras, da guerra e do saque” Carey

tudo é o resultado da ‘violência’: maneira esta de falar com a qual, há séculos, os filisteus de todas as nações se consolam de tudo que lhes acontece de desagradável, e que nada nos ensina.”

PARTE III. SOCIALISMO. CAPÍTULO ÚLTIMO. TRAÇOS HISTÓRICOS

O Contrato social de Rousseau tomaria corpo no regime do Terror e, fugindo dele e desconfiando já de seus próprios dons políticos, a burguesia foi refugiar-se, primeiro, na corrupção do Diretório e, por fim, sob a égide do despotismo napoleônico. A prometida paz eterna transformara-se numa interminável guerra de conquistas. A sociedade da razão também não teve melhor sorte. O antagonismo entre pobres e ricos, longe de desaparecer no bem-estar geral, aguçara-se ainda mais, com o desaparecimento dos privilégios feudais e outros, que o atenuavam, e dos estabelecimentos de beneficência, que mitigavam um pouco o contraste da desigualdade.”

O privilégio da 1ª noite nupcial passou do senhor feudal para o fabricante burguês. A prostituição desenvolveu-se em proporções inauditas. O casamento continuou sendo o que já era: a forma sancionada pela lei, o manto oficial com que se cobria a prostituição seguida de uma abundância complementar de adultério. Numa palavra, comparadas com as brilhantes promessas dos racionalistas, as instituições políticas e sociais, instauradas pela ‘vitória da razão’, deram como resultados umas tristes e decepcionantes caricaturas. Só faltava mesmo que os homens pusessem em relevo o seu desengano. Esses homens surgiram nos primeiros anos do século XIX. Em 1802, foram publicadas as Cartas genebrinas de Saint-Simon; em 1808, Fourier editou o seu 1º livro, embora as bases da sua teoria já datassem de 1799; em 1º de janeiro de 1800, Robert Owen assumiu a direção da empresa de New Lanark.” “A grande indústria, que, na Inglaterra acabava de nascer, era inteiramente desconhecida na França.”

Se as massas desprotegidas de Paris conseguiram apossar-se, por algum tempo, do poder, durante o regime do Terror, foi somente para demonstrar até que ponto era impossível manter esse poder nas condições da época. O proletariado, que começava a destacar-se, no seio dessas massas desprotegidas, como tronco de uma classe nova, mas ainda incapaz de desenvolver uma ação política própria, não representava mais do que um setor oprimido, castigado, ao qual, em sua incapacidade para valer-se a si mesmo, teria que ser dada ajuda de fora, do alto, se possível.”

A sociedade não continha senão males, que a razão pensante era chamada a remediar. Tratava-se de descobrir um novo sistema, mais perfeito, de ordem social, a fim de impô-lo à sociedade, de fora para dentro, por meio da propaganda, e, se possível, pregando-o com o exemplo, mediante experiências que servissem de modelos de conduta. Esses novos sistemas sociais nasciam condenados a mover-se no reino da utopia; quanto mais detalhados e minuciosos mais haveriam de degenerar, forçosamente, em puras fantasias.

Baseados nisso, não há razão para nos determos nem um momento mais nesse aspecto já definitivamente incorporado ao passado. Deixemos que os trapeiros literários do tipo do Sr. Dühring revolvam solenemente estas fantasias, que hoje provocam riso, para salientar sobre esse ‘fundo’ a seriedade e a respeitabilidade do seu próprio sistema.”

Essa burguesia soube, além disso, aproveitar-se da revolução para enriquecer-se rapidamente, especulando com os bens confiscados e, em seguida, vendidos, da aristocracia e da Igreja, e enganando a nação por meio dos fornecimentos ao exército. Foi precisamente o governo desses especuladores que, sob o Diretório, levou a França e a revolução à beira da ruína, proporcionando a Napoleão o pretexto que desejava para o seu golpe de Estado.”

E esses mesmos burgueses, segundo as concepções de Saint-Simon, haveriam de transformar-se numa espécie de funcionários públicos, de agentes sociais, mas conservariam, sempre, diante dos operários, uma posição autoritária e economicamente privilegiada. Os banqueiros, principalmente, seriam chamados a regular toda a produção social por meio de uma regulamentação de crédito. Esse modo de conceber a sociedade correspondia perfeitamente a uma época em que a grande indústria e, com ela, o antagonismo entre a burguesia e o proletariado, começava a despontar na França.” “Mas, o conceber a Revolução Francesa como uma luta de classes entre a nobreza, a burguesia e os desprotegidos era um descobrimento verdadeiramente genial para o ano de 1802. Em 1818, Saint-Simon declara que a política é a ciência da produção e prediz a total absorção da política pela economia. E se aqui não se faz mais do que apontar a consciência de que a situação econômica é a base das instituições políticas, proclama-se já, claramente, a futura transformação do governo político sobre os homens numa gestão administrativa sobre as coisas e no governo direto sobre os processos da produção que não é nem mais, nem menos do que a idéia da abolição do Estado, que tanto ruído levanta hoje.”

Fourier não é apenas um crítico; seu espírito sutil e engenhoso torna-o satírico – um dos maiores satíricos de todos os tempos. A loucura da especulação, que se acentua com o refluxo da onda revolucionária, e a mesquinhez do comércio francês daqueles anos aparecem desenhados em sua obra com traços maravilhosos e cativantes.” “Fourier é o 1º a proclamar que o grau de emancipação da mulher numa sociedade é o barômetro natural pelo qual se mede a emancipação geral.” “Como se vê, Fourier maneja a dialética com a mesma mestria de seu contemporâneo Hegel. Diante dos que se empavonam falando da ilimitada capacidade humana de perfeição, salienta, com a mesma dialética, que toda fase histórica tem, ao mesmo tempo, um lado ascendente e outro descendente e projeta esta concepção sobre o futuro de toda a humanidade. E, assim como Kant proclama, na ciência da natureza, o futuro desaparecimento da terra, Fourier proclama, na ciência histórica, a extinção futura da humanidade.”

O ritmo lento do período da manufatura transformou-se numa marcha verdadeiramente vertiginosa de produção. Com uma velocidade cada vez mais acelerada ia-se operando a divisão da sociedade em 2 campos: os grandes capitalistas e os proletários, entre os quais já não ficava encravada a antiga classe média, com sua estabilidade, mas, ao contrário, oscilava, levando vida insegura, uma massa instável de artesãos e pequenos comerciantes, a parte mais flutuante da população.” “Nestas circunstâncias, surge como reformador um industrial de 29 anos, um homem cuja pureza infantil atingia o sublime, e que era, ao mesmo tempo, um inato condutor de homens, como poucos. Robert Owen assimilara os ensinamentos dos materialistas do racionalismo, segundo os quais, se o caráter do homem é por um lado o produto de sua organização inata, é, por outro, o fruto das circunstâncias que o rodeiam durante sua vida, e, principalmente, durante o período de seu desenvolvimento.”

Já em Manchester, dirigindo uma fábrica de mais de 500 trabalhadores, tentara, não sem êxito, pôr em prática sua teoria: de 1800 a 1829, conduziu, no mesmo sentido, embora com muito mais liberdade de iniciativa e com um êxito que lhe valeu fama européia, a grande fábrica de fios de algodão de New Lanark, na Escócia, da qual era sócio e gerente. Uma população operária, que foi crescendo até chegar a 2500 indivíduos, recrutada entre os elementos mais heterogêneos, a maioria dos quais sem qualquer princípio moral, converteu-se, em suas mãos, numa perfeita colônia-modelo, na qual não se conhecem a embriaguez, a polícia, o cárcere, os processos, os pobres nem a beneficência pública. Para isso, bastou-lhe colocar os seus trabalhadores em condições humanas de vida, dedicando um cuidado especial à educação de seus descendentes. Owen foi o inventor dos jardins-de-infância, que funcionaram, pela 1ª vez, em New Lanark. As crianças, já aos 2 anos de idade, eram enviadas à escola e nela se sentiam tão satisfeitas, com os seus jogos e diversões, que não havia quem de lá as tirasse. Ao passo que, nas outras fábricas que lhe faziam concorrência, a duração do trabalho era de 13 e 14h por dia, a jornada em New Lanark era de 10h30. Ao estalar uma crise algodoeira, que o obrigou a fechar a fábrica durante 4 meses, os trabalhadores de New Lanark continuaram percebendo integralmente os seus salários. E, apesar disso, a empresa duplicou seu capital e deu, até o último dia, grandes lucros a seus sócios.

Owen, porém, não estava satisfeito com o que conseguira. A existência que proporcionara a seus operários estava, segundo ele, ainda muito longe de ser uma existência humana

Para onde irá a diferença entre a riqueza consumida por estas 2500 criaturas e a que teriam que consumir as 600 mil de outrora? [pré-revolução industrial] A resposta não era difícil. Essa diferença destinava-se a abonar aos sócios da empresa os 5% de juros do capital de estabelecimento, o que importava em 300 mil libras esterlinas de lucros.”

A ela, portanto, deviam pertencer os seus frutos. As novas e gigantescas forças produtivas que, até então, só haviam servido para enriquecer uma minoria e para a escravização das massas lançava, na opinião de Owen, os alicerces de uma nova estrutura social e estavam destinadas a trabalhar apenas para o bem-estar geral, como propriedade coletiva de todos os membros da sociedade.

E foi assim, por este caminho puramente industrial, como um fruto, por assim dizer, dos cálculos de um homem de negócios, que surgiu o comunismo oweniano, que conservou sempre este mesmo caráter prático. Em 1823, Owen propõe a criação de um sistema de colônias comunistas para combater a miséria irlandesa e apresenta, em favor de sua proposta, um orçamento completo de instalação, despesas anuais e receitas prováveis. E, em seus planos definitivos do futuro, as minúcias técnicas do assunto estão calculadas com tal conhecimento da matéria, que, aceito o método oweniano da reforma da sociedade, pouca coisa se lhe poderia objetar, mesmo um técnico muito competente quanto aos pormenores da organização.

Ao abraçar o comunismo, a vida de Owen transformou-se radicalmente. Enquanto se limitara a agir como filantropo, colheu riquezas, aplausos, honrarias e fama. Era o homem mais popular da Europa. (…) Mas, quando formulou suas teorias comunistas, a coisa mudou de aspecto. Segundo ele, os grandes obstáculos que se antepunham à reforma social eram, principalmente, 3: a propriedade privada, a religião e a forma atual do matrimônio. E não ignorava o perigo que corria combatendo-os. Nem podia ignorar que lhe estavam reservadas a condenação geral da sociedade oficial e a perda da posição que nela ocupava. Mas essa consideração não o deteve em seus impiedosos ataques àquelas instituições. E ocorreu o que estava previsto. Alijado da sociedade oficial, ignorado pela imprensa, arruinado por suas malogradas experimentações comunistas na América – às quais sacrificou toda a sua fortuna –, entregou-se diretamente à classe trabalhadora, no seio da qual ainda agiu durante 30 anos. Todos os movimentos sociais, todos os melhoramentos reais tentados pela Inglaterra em prol da classe trabalhadora estão associados ao nome de Owen. Assim, por exemplo, em 1819, depois de 5 anos de lutas, conseguiu que fosse promulgada a 1ª lei regulamentadora do trabalho da mulher e dos menores nas fábricas. Foi ele, também, quem presidiu o primeiro congresso em que os sindicatos de toda a Inglaterra se fundiram num grande e único sindicato. E foi também ele quem implantou, como medida de transição, até que a sociedade pudesse, na sua totalidade, organizar, comunisticamente, 2 espécies de organismos: as cooperativas de consumo e de produção, que, pelo menos, mostram praticamente a inutilidade do comerciante e do fabricante, e os bazares operários, estabelecimentos em que se trocavam os produtos do trabalho por bônus de trabalho, que fazem as vezes do papel-moeda e cuja unidade é a hora de trabalho despendido. Estabelecimentos necessariamente fadados ao fracasso, mas que superam os bancos proudhonianos de intercâmbio, muito posteriores, diferenciando-se destes principalmente porque não pretendem servir de panacéia universal para todos os males sociais, mas são, pura e simplesmente, um 1º passo para a transformação radical da sociedade.”

São estes os homens que o olímpico Senhor Dühring contempla dos cimos de sua ‘verdade absoluta e de última instância’ com o desprezo que salientamos na Introdução.”

E, no que se refere a Robert Owen, para escrever as 12 páginas que lhe consagra, não teve outra fonte de informação senão a mísera bibliografia de Sargant, um filisteu que também não conhecia as obras mais importantes de Owen: as relativas ao matrimônio e à organização comunista da sociedade. Essa ignorância permite ao Senhor Dühring lançar intrepidamente a afirmativa de que não há base para ‘pressupor’ em Owen um ‘comunismo decidido’. Se houvesse tido em suas mãos o seu Book of the New Moral World, não só teria visto afirmado nele o mais definido comunismo, com o dever geral de trabalhar e o direito de participar eqüitativamente do produto do trabalho – eqüidade dentro de cada idade, como Owen salienta sempre –, como também, perfeitamente esboçado, o edifício da sociedade comunista do futuro, com os seus planos, a sua planta e a sua perspectiva.”

O Sr. Dühring não é mais do que um epígono dos utopistas, o último dos utopistas, ele que, por toda parte, vê apenas epígonos.”

a luta entre as 2 classes, criada pelo regime atual de produção e continuamente renovada, em antagonismo cada vez mais acentuado, invadiu todos os países civilizados, tornando-se cada dia mais violenta; já temos hoje consciência de seu encadeamento histórico e podemos penetrar nas condições da transformação social, que se torna inevitável, como podemos predizer igualmente as linhas gerais dessa transformação, condicionada também por ela própria.”

ON MY PHILOSOPHY: From (…) Dostoyevsky to Sartre – Karl Jaspers (ed. W. Kaufman)

My path was not the normal one of professors of philosophy. I did not intend to become a doctor of philosophy by studying philosophy (I am in fact a doctor of medicine) nor did I, by any means, intend originally to qualify for a professorship by a dissertation on philosophy. To decide to become a philosopher seemed as foolish to me as to decide to become a poet. Since my schooldays, however, I was guided by philosophical questions. Philosophy seemed to me the supreme, even the sole, concern of man. Yet a certain awe kept me from making it my profession.”

After some years (since 1909) I published my psycho-pathological researches. In 1913 I qualified as university lecturer in psychology.”

Then in 1914 the World War caused the great breach in our European existence. The paradisiacal life before the World War, naive despite all its sublime spirituality, could never return: philosophy, with its seriousness, became more important than ever.” “Only then, approaching my 40th birthday, I made philosophy my life’s work.”

In what way the history of philosophy exists for us is a fundamental problem of our philosophising which demands a concrete solution in each age. Philosophy is tested and characterised by the way in which it appropriates its history. It might seem to us that the truth of present-day philosophy manifests itself less in the formation of new fundamental concepts (as ‘borderline situation’, ‘the Encompassing’) than in the new sound it makes audible for us in old thoughts.” “What was once life becomes a pile of dead husks of concepts and these in turn become the subject of an objective history of philosophy.”

Philosophy can only be approached with the most concrete comprehension. A great philosopher demands unrelenting penetration into his texts. This necessitates both the realisation of a whole philosophy in its entirety, and taking pains with every single sentence in order to become conscious of its every nuance.”

This solitary, but vast, moment of a few millennia, emerging from three different sources (China, India, Occident), is real by virtue of a single internal connection. Though too immense to be envisaged as a pattern, it encompasses us nevertheless as a world.”

The philosopher lives, as it were, in a hidden, non-objective community to which every philosophising person secretly longs to be admitted. Philosophy has no institutional reality and is not in competition with the church, the state, the real communities of the world. Any objectification, whether it be the formation of schools or sects, is the ruin of philosophy.”

He must not have the folly to wish to be recognised as a philosopher. Professorships in philosophy are instituted for free mediation of ideas by teaching, which does not preclude their being held by philosophers (Kant, Hegel, Schelling).” “In the realm of the spirit, men become companions-in-thought through the millennia, become occasions for each other to find the way to truth from their own source, although they cannot present each other with readymade truth. It is a self-development of individual in communication with individual. It is a development of the individual into community and from there to the plane of history, without breaking with contemporary life. It is the effort to live from and on behalf of the fundamental, though these become audible to him who philosophises, without objective certainty (as in religion), and only through indirect hints as possibilities in the totality of philosophy.”

Nietzsche gained importance for me only late as the magnificent revelation of nihilism and the task of overcoming it (in my youth I had avoided him, repelled by the extremes, the rapture, and the diversity).” “Hegel for a long time remained a well-nigh inexhaustible material for study, particularly for my teaching activity in seminars. The Greeks were always there; after the discipline of their coolness, I liked to turn to Augustine; however, despite the depth of his existential clarification, displeasure with his rhetoric and with his lack of all scientific objectivity and with his ugly and violent emotions drove me back again to the Greeks. Only finally I occupied myself more thoroughly with Plato, who now seemed to me perhaps the greatest of all.”

Among my deceased contemporaries I owe what I am able to think – those closest to me excepted – above all to the one and only Max Weber.”

We are so exposed that we constantly find ourselves facing nothingness. Our wounds are so deep that in our weak moments we wonder if we are not, in fact, dying from them.”

At the present moment, the security of coherent philosophy, which existed from Parmenides to Hegel, is lost.” “Instead of slipping into nothingness at the disintegration of millennia we should like to feel unshakeable ground beneath us. We should like to comprehend in one historical whole the only general phenomenon which may permit posterity to probe its substance more deeply than has ever been done. The alternative ‘nothing or everything’ stands before our age as the question of man’s spiritual destiny.”

This activity originates from life in the depths where it touches Eternity inside Time, not at the surface where it moves in finite purposes, even though the depths appear to us only at the surface. It is for this reason that philosophical activity is fully real only at the summits of personal philosophising, while objectivised philosophical thought is a preparation for, and a recollection of, it.”

The questions put earlier in history are still ours; in part identical with present ones, word for word, after thousands of years, in part more distant and strange, so that we make them our own only by translation. The basic questions were formulated by Kant with, I felt, moving simplicity: 1. What can I know? 2. What shall I do? 3. What may I hope? 4. What is man? Today these questions have been reborn for us in changed form and thus become comprehensible to us anew also in their origin.”

Seen from our point of view Kant still knew too much (in wrongly taking his own transcendental philosophy for conclusive scientific knowledge instead of philosophical insight to be accomplished in transcending) and too little (because the extraordinary mathematical, scientific and historical discoveries and possibilities of knowledge with their consequences were in great part still outside his horizon).”

TECHNOLOGY: “The emptiness caused by dissatisfaction with mere achievement and the helplessness that results when the channels of relation break down have brought forth a loneliness of soul such as never existed before, a loneliness that hides itself, that seeks relief in vain in the erotic or the irrational until it leads eventually to a deep comprehension of the importance of establishing communication between man and man.”

Even when regulating his existence man feels as if the waves of events had drawn him beyond his depth in the turbulent ocean of history and as if he now had to find a foothold in the drifting whirlpool. What was firm and certain has nowhere remained the ultimate. Morality is no longer adequately founded on generally valid laws. The laws themselves are in need of a deeper foundation.”

something is lacking even when it succeeds.”

Only through his absorption in the world of Being, in the immeasurable space of objects, in ideas, in Transcendence, does he become real to himself. If he makes himself the immediate object of his efforts he is on his last and perilous path; for it is possible that in doing so he will lose the Being of the other and then no longer find anything in himself. If man wants to grasp himself directly, he ceases to understand himself, to know who he is and what he should do. This confusion was intensified as a result of the process of education in the nineteenth century.”

Man is not worth considering. In the Deity alone there is reality, truth, and the immutability of being itself.” “But time and again it is seen: for us the Deity, if it exists, is only as it appears to us in the world, as it speaks to us in the language of man and the world. It exists for us only in the way in which it assumes concrete shape, which by human measure and thought always serves to hide it at the same time.”

As a physician and psychiatrist I saw the precarious foundation of so many statements and actions, and beheld the reign of imagined insights, e.g. the causation of all mental illnesses by brain processes (I called all this talk about the brain, as it was fashionable then, brain mythology; it was succeeded later by the mythology of psychoanalysis), and realised with horror how, in our expert opinions, we based ourselves on positions which were far from certain, because we had always to come to a conclusion even when we did not know, in order that science might provide a cover, however unproved, for decisions the state found necessary. I was surprised that so much of medical advice and the majority of prescriptions were based, not on rational knowledge, but merely on the patient’s wish for treatment.”

Steadily the consciousness of loneliness grew upon me in my youth, yet nothing seemed more pernicious to me than loneliness, especially the loneliness in the midst of social intercourse that deceives itself in a multitude of friendships. No urge seemed stronger to me than that for communication with others. If the never-completed movement of communication succeeds with but a single human being, everything is achieved.”

How man achieves unity is a problem, infinite in time and insoluble; but it is nevertheless the path to his search. Man is less certain of himself than ever.”

First, man is autonomous in the face of all the authorities of the world: the individual, reared by authority, at the end of the process of his maturation decides in his immediacy and responsibility before Transcendence what is unconditionally true. Second, man is a datum of Transcendence: to obey Transcendence in that unconditional decision leads man to his own Being.”

ANTI-DÜHRING AND ANTI-CHRIST: Marx, Engels and Nietzsche on equality and morality

To make better sense of this confusion, it is useful to glance at the various texts and authors that Nietzsche took to be representative of socialism. Once this has been accomplished, the validity of his claim that 19th-century socialism was simply the latest ideological incarnation of crypto-Christian morality, repackaged in secular form, can be ascertained. Notwithstanding the incredulity of Losurdo, even the German Social-Democrat and later biographer of Marx, Franz Mehring, who had little patience for Nietzsche (despite his indisputable poetic abilities), confessed: ‘Absent from Nietzsche’s thinking was an explicit philosophical confrontation with socialism.’ (Mehring added, incidentally, much to Lukács’ chagrin, that ‘(t)he Nietzsche cult is … useful to socialism … No doubt, Nietzsche’s writings have their pitfalls for young people … growing up within the bourgeois classes …, laboring under bourgeois class-prejudices. But for such people, Nietzsche is only a transitional stage on the way to socialism.’ Other than the writings of such early socialists as Weitling and Lamennais, however, Nietzsche’s primary contact with socialism came by way of Wagner, who had been a follower of Proudhon in 1848 with a streak of Bakuninism thrown in here and there. Besides these sources, there is some evidence that he was acquainted with August Bebel’s seminal work on Woman and Socialism. More than any other, however, the writer who Nietzsche most associated with socialist thought was Eugen Dühring, a prominent anti-Marxist and anti-Semite. Dühring was undoubtedly the subject of Nietzche’s most scathing criticisms of the maudlin morality and reactive sentiment in mainstream socialist literature.

This is a point worth dwelling on for a moment. It is generally accepted, even among those who oppose Nietzsche most vociferously, that the philosopher never read Marx or Engels. Nevertheless, a few years ago the scholar Thomas H. Brobjer meticulously examined Nietzsche’s personal library and speculated that he would have in all likelihood recognized Marx’s name from several books in his collection — though this conclusion rests on a number of less-than-certain probabilities riddled with dubious qualifiers like probably, likely, may, perhaps, might, etc. (…) Whether or not this is the case, however, Nietzsche never wrote about either of them, so it is impossible to know exactly what he thought of their theories, at least as reported by their contemporaries (allies and adversaries). It is fruitless to attempt to guess what his opinion would have been had he read them, of course. History does not deal in counterfactuals.”

of Marx, Nietzsche could have known at most only the name, if he had in fact read the entire thick tome by … Karl Eugen Dühring … Through Dühring’s other writings and the personal proximity of his own brother-in-law, (socialist) [!!] Bernhard Förster, Nietzsche knew what was for him — understandably — an especially unappetizing variation of socialism: the anti-Semitic one.” Mazzino Montanari

Furthermore, as Brobjer himself notes in his article, assuming Nietzsche actually read Bebel’s Woman and Socialism, he would have seen the name of his former mentor and later nemesis Wagner listed among the ‘socialists’. Recalling not only the anti-Semitic sentiments of Wagner, but also those of his revolutionary masters Proudhon and Bakunin, adding in the figure of Dühring, it becomes clearer why socialism would have seemed so repellant to him.”

Dühring’s review of Capital is highly amusing. The whole article is embarrassment and funk.” Engels to Marx, 1868

I again remind readers … of that apostle of revenge from Berlin, Eugen Dühring, who makes the most indecent and disgusting use of moral clap-trap of anyone today, even amongst his kind, the anti-Semites.” Genealogy

In fact, the language of ressentiment in Nietzsche stemmed entirely from his encounter with Dühring. Not by accident does the term appear as a contraction of its romantic equivalents, reactive sentiment (reaktiven Gefühls), which the philologist knew only too well.”

Often mischaracterized as a defender of ‘master morality’ against the mawkishness of ‘slave morality’, Nietzsche in reality fought for an as-yet-unseen form of life that would arise out of the latter. He saw the sense of guilt that weighed upon humanity’s conscience as pointing beyond itself, which could herald and potentially give birth to the new. ‘Bad conscience is a sickness, there is no point in denying it, but a sickness rather like pregnancy’, the philosopher wrote. That is to say, the sickness is only passing — symptomatic of a broader historical process with which it is bound up. Echoes of Marx’s immortal lines from his Civil War in France can almost be heard: ‘The proletariat has no ideals of its own to realize, but to set free elements of the new society with which old collapsing bourgeois society itself is pregnant.’

In a similar fashion, Marx understood the bourgeois epoch to be characterized by perpetual flux, the annihilation of existing conditions to make way for those arising out of them: a ceaseless motion of becoming. Materialist dialectic, by standing the doctrine of its Hegelian predecessor on its head, was no less negative or pitilessly destructive than its Nietzschean counterpart: ‘In accordance with the Hegelian method of thought, the proposition of the rationality of everything that is real dissolves to become the opposite proposition: All that exists deserves to perish. But precisely therein lay the true significance and the revolutionary character of Hegelian philosophy, that it once and for all dealt the deathblow to the finality of all products of human thought and action.’ Moreover, the concept of freedom was always understood by Marx as the freedom to become what one will be, rather than the ontological notion of freedom promulgated by romanticism and postmodernism as the freedom to be (e.g., a Jew or a Muslim, a sculptor or a painter, heterosexual or homosexual) what one already ‘is’.”

Obviously, it would be a mistake to conflate Marx and Nietzsche’s concepts of ‘becoming’. But hopefully this parallel, however approximate and imperfect, will serve to ward off the petty squeamishness of those who gasp at Nietzsche’s notion of the ‘innocence of becoming’ (i.e., Losurdo, Dombowsky, others). Its destructiveness should be thought no more terrifying than Hegel’s description of history as the ‘slaughter-bench’ on which ‘the happiness of nations, the wisdom of states, and the virtue of individuals are sacrificed.’

(T)he communists do not oppose egoism to selflessness or selflessness to egoism, Marx clarified in The German Ideology (1846), nor do they express this contradiction theoretically in its sentimental or in its highflown ideological form; they rather demonstrate its material source, with which it disappears of itself. The communists do not preach morality at all.”

Unfortunately for Nietzsche, for whom Dühring was the quintessential socialist, mainstream socialism in the 1860s, 70s, and 80s was hardly any less crude. Engels thus felt it necessary to warn his readers that, unlike Dühring, his own notion of communism was ‘not in any way to be confounded with that crude leveling-down which makes the bourgeois so indignantly oppose all communism’.”

Notes

The skilled Danish critic (Georg Brandes, a Jew and liberal critic, discoverer of the German philosopher’s ‘aristocratic radicalism’) did not take Nietzsche’s barbarism seriously, not at face value, (but) understood it cum grano salis, in which he was very right.’ Mann, Thomas. ‘Nietzsche’s Philosophy in Light of Recent Events’, Addresses Delivered at the Library of Congress, 1942-1949. (Wildside Press LLC. Washington, DC: 2008). Pg. 99.”

Brobjer, Thomas H. ‘Nietzsche’s Knowledge of Marx and Marxism’, Nietzsche-Studien, 31: 2002.

A DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO: Fragmentos filosóficos (ou: DAS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ) – Adorno & Horkheimer

SOBRE A NOVA EDIÇÃO ALEMÃ

É difícil para alguém de fora fazer ideia da medida em que somos ambos responsáveis por cada frase.”

O livro foi redigido num momento em que já se podia enxergar o fim do terror nacional-socialista. Mas não são poucas as passagens em que a formulação não é mais adequada à realidade atual. E, no entanto, não se pode dizer que, mesmo naquela época, tenhamos avaliado de maneira excessivamente inócua o processo de transição para o mundo administrado.”

O pensamento crítico, que não se detém nem mesmo diante do progresso, [o esclarecimento] exige hoje que se tome partido pelos últimos resíduos de liberdade, pelas tendências ainda existentes a uma humanidade real, ainda que pareçam impotentes em face da grande marcha da história. O desenvolvimento que diagnosticamos neste livro em direção à integração total está suspenso, mas não interrompido

Retornamos dos Estados Unidos, [a nação da imbecilidade consumada nos anos 60/70, agora mais amarga que a Alemanha Ocidental reconstruída] onde o livro foi escrito, para a Alemanha, na convicção de que aqui poderemos fazer mais do que em outro lugar, tanto teórica quanto praticamente. Juntamente com Friedrich Pollock, a quem o livro é agora dedicado por seus 75 anos, como já o era por seus 50 anos, reconstruímos o Instituto para Pesquisa Social com o pensamento de prosseguir a concepção formulada na Dialética.”

Abril de 1969

PREFÁCIO

Ao que nos propuséramos era, de fato, nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie.” “Embora tivéssemos observado há muitos anos que, na atividade científica moderna, o preço das grandes invenções é a ruína progressiva da cultura teórica, acreditávamos de qualquer modo que podíamos nos dedicar a ela na medida em que fosse possível limitar nosso desempenho à crítica ou ao desenvolvimento de temáticas especializadas. Nosso desempenho devia restringir-se, pelo menos tematicamente, às disciplinas tradicionais: à sociologia, à psicologia e à teoria do conhecimento.

Os fragmentos que aqui reunimos mostram, contudo, que tivemos de abandonar aquela confiança. Se uma parte do conhecimento consiste no cultivo e no exame atentos da tradição científica (especialmente onde ela se vê entregue ao esquecimento como um lastro inútil pelos expurgadores positivistas), em compensação, no colapso atual da civilização burguesa, o que se torna problemático é não apenas a atividade, mas o sentido da ciência. O que os fascistas ferrenhos elogiam hipocritamente e os dóceis especialistas da humanidade ingenuamente levam a cabo, a infatigável autodestruição do esclarecimento, força o pensamento a recusar o último vestígio de inocência em face dos costumes e das tendências do espírito da época.”

Se se tratasse apenas dos obstáculos resultantes da instrumentação desmemoriada da ciência, o pensamento sobre questões sociais poderia, pelo menos, tomar como ponto de partida as tendências opostas à ciência oficial. Mas também estas são presas do processo global de produção. Elas não se modificaram menos do que a ideologia à qual se referiam.”

A filosofia que, no século XVIII, apesar das fogueiras levantadas para os livros e as pessoas, infundia um medo mortal na infâmia,(*) sob Bonaparte já passava para o lado desta. Finalmente, a escola apologética de Comte usurpou a sucessão dos enciclopedistas intransigentes e estendeu a mão a tudo aquilo contra o qual estes se haviam colocado.

(*) Voltaire, Lettres philosophiques XII”

Ao tomar consciência da sua própria culpa, o pensamento vê-se por isso privado não só do uso afirmativo da linguagem conceitual científica e cotidiana, mas igualmente da linguagem da oposição. Não há mais nenhuma expressão que não tenda a concordar com as direções dominantes do pensamento, e o que a linguagem desgastada não faz espontaneamente é suprido com precisão pelos mecanismos sociais. Aos censores, que as fábricas de filmes mantêm voluntariamente por medo de acarretar no final um aumento dos custos, correspondem instâncias análogas em todas as áreas. O processo a que se submete um texto literário, se não na previsão automática do seu produtor, pelo menos pelo corpo de leitores, editores, redatores e ghost-writers dentro e fora do escritório da editora, é muito mais minucioso que qualquer censura. Tornar inteiramente supérfluas suas funções parece ser, apesar de todas as reformas benéficas, a ambição do sistema educacional. Na crença de que ficaria excessivamente suscetível à charlatanice e à superstição, se não se restringisse à constatação de fatos e ao cálculo de probabilidades, o espírito conhecedor prepara um chão suficientemente ressequido para acolher com avidez a charlatanice e a superstição. Assim como a proibição sempre abriu as portas para um produto mais tóxico ainda, assim também o cerceamento da imaginação teórica preparou o caminho para o desvario político.”

A aporia com que defrontamos em nosso trabalho revela-se assim como o primeiro objeto a investigar: a autodestruição do esclarecimento.” “Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino. Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu carácter superador e, por isso, também sua relação com a verdade. A disposição enigmática das massas educadas tecnologicamente a deixar dominar-se pelo fascínio de um despotismo qualquer, sua afinidade autodestrutiva com a paranóia racista, todo esse absurdo incompreendido manifesta a fraqueza do poder de compreensão do pensamento teórico atual.

Acreditamos contribuir com estes fragmentos para essa compreensão, mostrando que a causa da recaída do esclarecimento na mitologia não deve ser buscada tanto nas mitologias nacionalistas, pagãs e em outras mitologias modernas especificamente idealizadas em vista dessa recaída, mas no próprio esclarecimento paralisado pelo temor da verdade.”

O DELINQÜENTE: “O medo que o bom filho da civilização moderna tem de afastar-se dos fatos – fatos esses que, no entanto, já estão pré-moldados como clichés na própria percepção pelas usanças dominantes na ciência, nos negócios e na política – é exatamente o mesmo medo do desvio social. Essas usanças também definem o conceito de clareza na linguagem e no pensamento a que a arte, a literatura e a filosofia devem conformar-se hoje. Ao tachar de complicação obscura e, de preferência, de alienígena o pensamento que se aplica negativamente aos fatos, bem como às formas de pensar dominantes, e ao colocar assim um tabu sobre ele, esse conceito mantém o espírito sob o domínio da mais profunda cegueira. É característico de uma situação sem-saída que até mesmo o mais honesto dos reformadores, ao usar uma linguagem desgastada para recomendar a inovação, adota também o aparelho categorial inculcado e a má filosofia que se esconde por trás dele, e assim reforça o poder da ordem existente que ele gostaria de romper.”

a difusão hipócrita do espírito: sua verdadeira aspiração é a negação da reificação. Mas ele necessariamente se esvai quando se vê concretizado em um bem cultural e distribuído para fins de consumo. A enxurrada de informações precisas e diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo.” Dialética da distensão para estressados e sobrecarregados.

O que está em questão não é a cultura como valor, como pensam os críticos da civilização Huxley, Jaspers, Ortega y Gasset e outros. A questão é que o esclarecimento tem que tomar consciência de si mesmo, se os homens não devem ser completamente traídos. [Será? Será que o obscurecimento já não é sua própria reação diante da autoconsciência do esclarecimento?] Não é da conservação do passado, mas de resgatar a esperança passada que se trata. Hoje, porém, o passado prolonga-se como destruição do passado. Se a cultura respeitável constituiu até o século XIX um privilégio, cujo preço era o aumento do sofrimento dos incultos, no século XX o espaço higiênico da fábrica teve por preço a fusão de todos os elementos da cultura num cadinho [caldeirão, forno, crisol] gigantesco. Talvez isso não fosse um preço tão alto, como acreditam aqueles defensores da cultura, se a venda em liquidação da cultura não contribuísse para a conversão das conquistas econômicas em seu contrário.” Toda sopa é produzida pensando em comensais banguelas.

O fato de que o espaço higiênico da fábrica e tudo o que acompanha isso, o Volkswagen e o Palácio dos Desportos, levem a uma liquidação estúpida da metafísica, ainda seria indiferente, mas que eles próprios se tornem, no interior do todo social, a metafísica, a cortina ideológica atrás da qual se concentra a desgraça real, não é indiferente. Eis aí o ponto de partida dos nossos fragmentos.”

duas teses: o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia.” “O segundo excurso ocupa-se de Kant, Sade e Nietzsche, os implacáveis realizadores do esclarecimento.”

O segmento sobre a ‘indústria cultural’ mostra a regressão do esclarecimento à ideologia, que encontra no cinema e no rádio sua expressão mais influente. (…) [este] segmento (…) é ainda mais fragmentário¹ do que os outros.”

¹ Ler: difícil de ler; anti-estético.

A tendência não apenas ideal, mas também prática, à autodestruição, caracteriza a racionalidade desde o início e de modo nenhum apenas a fase em que essa tendência se evidencia sem disfarces. Neste sentido, esboçamos uma pré-história filosófica do anti-semitismo. Seu ‘irracionalismo’ é derivado da essência da própria razão dominante e do mundo correspondente a sua imagem.”

As primeiras 3 teses [da penúltima parte do livro] foram escritas juntamente com Leo Löwenthal, com quem desde os primeiros anos de Frankfurt trabalhamos em muitas questões científicas.”

Maio de 1944; junho de 1947.

1. O CONCEITO DE ESCLARECIMENTO [Sobre uma ascensão da tecnocracia]

o rádio, que é a imprensa sublimada;¹ o avião de caça, que é uma artilharia mais eficaz; o controle remoto, que é uma bússola mais confiável.”

¹ No sentido hegeliano: a dimensão espacial sublimada no puro tempo de propagação da onda. Adeus superfícies.

Só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos. Diante do atual triunfo da mentalidade factual, até mesmo o credo nominalista de Bacon seria suspeito de metafísica e incorreria no veredito de vacuidade que proferiu contra a escolástica. Poder e conhecimento são sinônimos. Para Bacon, como para Lutero, o estéril prazer que o conhecimento proporciona não passa de uma espécie de lascívia. O que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama ‘verdade’, mas a ‘operation’, o procedimento eficaz.”

Nenhuma distinção deve haver entre o animal totêmico, os sonhos do visionário e a Idéia absoluta. No trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade. A causa foi apenas o último conceito filosófico que serviu de padrão para a crítica científica, porque ela era, por assim dizer, dentre todas as idéias antigas, o único conceito que a ela ainda se apresentava, derradeira secularização do princípio criador. A filosofia buscou sempre, desde Bacon, uma definição moderna de substância e qualidade, de ação e paixão, do ser e da existência, mas a ciência já podia passar sem semelhantes categorias. Essas categorias tinham ficado para trás como idola theatri da antiga metafísica e já eram, em sua época, monumentos de entidades e potências de um passado pré-histórico.”

As cosmologias pré-socráticas fixam o instante da transição. O úmido, [água] o indiviso, [terra] o ar, o fogo, aí citados como a matéria primordial da natureza, são apenas sedimentos racionalizados da intuição mítica.” “assim também toda a luxuriante plurivocidade dos demônios míticos espiritualizou-se na forma pura das entidades ontológicas. Com as Idéias de Platão, finalmente, também os deuses patriarcais do Olimpo foram capturados pelo logos filosófico.”

O ESPÍRITO DO MUNDO ERA A TÉCNICA: Um fantasma que queria um corpo

Na autoridade dos conceitos universais, [o esclarecimento][e não tenha dúvida de que este esclarecimento é o Espírito hegeliano, finalmente tornado ambíguo, ambivalente] crê enxergar ainda o medo pelos demônios, cujas imagens eram o meio, de que se serviam os homens, no ritual mágico, para tentar influenciar a natureza.” “O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento. A partir do momento em que ele pode se desenvolver sem a interferência da coerção externa, nada mais pode segurá-lo.” “Cada resistência espiritual que ele encontra serve apenas para aumentar sua força. Isso se deve ao fato de que o esclarecimento ainda se reconhece a si mesmo nos próprios mitos. Quaisquer que sejam os mitos de que possa se valer a resistência, o simples fato de que eles se tornam argumentos por uma tal oposição significa que eles adotam o princípio da racionalidade corrosiva da qual acusam o esclarecimento. O esclarecimento é totalitário.”

O sobrenatural, o espírito e os demônios seriam as imagens especulares dos homens que se deixam amedrontar pelo natural.”

E se o especulativo pudesse usar um espéculo para especular com mais realidade, explorar, arrancar mais-valia de cada célula do corpo invadido intrometido?

De antemão, o esclarecimento só reconhece como ser e acontecer o que se deixa captar pela unidade. Seu ideal é o sistema, do qual se pode deduzir toda e cada coisa.” “Embora as diferentes escolas interpretassem de maneira diferente os axiomas, a estrutura da ciência unitária era sempre a mesma.”

A multiplicidade das figuras se reduz à posição e à ordem, a história ao fato, as coisas à matéria.”

O equacionamento mitologizante das Idéias com os números nos últimos escritos de Platão exprime o anseio de toda desmitologização: o número tomou-se o cânon do esclarecimento. As mesmas equações dominam a justiça burguesa e a troca mercantil.”

A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas.”

Unidade continua a ser a divisa, de Parmênides a Russell.”

Com o registo e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se.” Mitógrafos, deixai o mito em paz!

Os mitos, como os encontraram os poetas trágicos, já se encontram sob o signo daquela disciplina e poder que Bacon enaltece como o objetivo a se alcançar. O lugar dos espíritos e demônios locais foi tomado pelo céu e sua hierarquia; o lugar das práticas de conjuração do feiticeiro e da tribo, pelo sacrifício bem-dosado e pelo trabalho servil mediado pelo comando. As deidades olímpicas não se identificam mais diretamente aos elementos, mas passam a significá-los. Em Homero, Zeus preside o céu diurno, [eu não sou o céu, eu governo o céu!] Apolo guia o sol, Hélio e Éo já tendem para o alegórico.” Do logo à mónadas

Nisso estão de acordo a história judia da criação e a religião olímpica. ‘…e dominarão os peixes do mar e as aves do céu e o gado e a terra inteira e todos os répteis que se arrastam sobre a terra.’espia de milho, expiga de deus

O PERFEITO ÊMULO HUMILDE: “Em face da unidade de tal razão, a separação de Deus e do homem reduz-se àquela irrelevância que, inabalável, a razão assinalava desde a mais antiga crítica de Homero. (…) A imagem e semelhança divinas do homem consistem na soberania sobre a existência, no olhar do senhor, no comando.”

em vez do deus, é o animal sacrificial que é massacrado.” “Embora a cerva oferecida em lugar da filha e o cordeiro em lugar do primogênito ainda devessem ter qualidades próprias, eles já representavam o gênero e exibiam a indiferença do exemplar.” Poder-se-ia dizer que sacrificar um gorila ou chimpanzé é dar 99% do Filho do Homem à origem. Pagar quase todo o tributo.

A substitutividade converte-se na fungibilidade universal. Um átomo é desintegrado, não em substituição, mas como um espécime da matéria, e a cobaia atravessa, não em substituição, mas desconhecida como um simples exemplar, a paixão do laboratório.” “O mundo da magia ainda continha distinções, cujos vestígios desapareceram até mesmo da forma linguística.” “Como a ciência, a magia visa fins, mas ela os persegue pela mimese, não pelo distanciamento progressivo em relação ao objeto. Ela não se baseia de modo algum na ‘onipotência dos pensamentos’, que o primitivo se atribuiria, segundo se diz, assim como o neurótico.” “A ‘confiança inabalável na possibilidade de dominar o mundo’, que Freud anacronicamente atribui à magia, só vem corresponder a uma dominação realista do mundo graças a uma ciência mais astuciosa do que a magia.” “a religião popular, o mito patriarcal solar é ele próprio esclarecimento, com o qual o esclarecimento filosófico pode-se medir no mesmo plano.” “…até que os próprios conceitos de espírito, de verdade, e até mesmo de esclarecimento tenham-se convertido em magia animista.”

O INCONSCIENTE DE NEWTON: “A doutrina da igualdade entre a ação e a reação afirmava o poder da repetição sobre o que existe muito tempo após os homens terem renunciado à ilusão de que pela repetição poderiam se identificar com a realidade repetida e, assim, escapar a seu poder.” “O princípio da imanência, a explicação de todo acontecimento como repetição, que o esclarecimento defende contra a imaginação mítica, é o princípio do próprio mito. A insossa sabedoria para a qual não há nada de novo sob o sol, porque todas as cartas do jogo sem-sentido já teriam sido jogadas, porque todos os grandes pensamentos já teriam sido pensados, porque as descobertas possíveis poderiam ser projetadas de antemão, e os homens estariam forçados a assegurar a autoconservação pela adaptação – essa insossa sabedoria reproduz tão-somente a sabedoria fantástica que ela rejeita: a ratificação do destino que, pela retribuição, reproduz sem cessar o que já era.” Não sei o que me fez ler esse trecho com tanto entusiasmo no ano de 2009: se a palavra ‘destino’ aliada ao termo ‘sabedoria fantástica’ numa certa conotação que desviei para o nietzscheanismo, ou se o clima geral do texto, se a cosmovisão de alguém jovem inevitavelmente o conduz a essa espécie de otimismo ou euforia libertina, como caracterizaria esse dia e essa semana… Mais ou menos a sensação de andar pelas ruas da W3 Norte ouvindo Symbolic (Death) no fone num dia ensolarado… Mas o fato é que eu ignorava o deboche ou as péssimas conotações, a despeito da reiteração do termo ‘insossa sabedoria’… Em 2021 estou num pólo oposto. O texto não é nenhuma revelação, embora também não seja nenhum encobrimento – evadi o pêndulo quente e me enfiei num gêiser inativo. Impossível elevar-se no puro fenômeno e na resignação seculovintista…

Os homens receberam o seu eu como algo pertencente a cada um, diferente de todos os outros, para que ele possa com tanto maior segurança se tornar igual.” “seria digna de escárnio a sociedade que conseguisse transformar os homens em indivíduos. A horda, cujo nome sem dúvida está presente na organização da Juventude Hitleriana, não é nenhuma recaída na antiga barbárie, mas o triunfo da igualdade repressiva, a realização pelos iguais da igualdade do direito à injustiça.” É inconsciente aos próprios fascistas (máquinas, automáticos) o quão bem eles trabalham (em seu propósito uniformizador). “Toda tentativa de romper as imposições da natureza rompendo a natureza, resulta numa submissão ainda mais profunda às imposições da natureza.” Imolar judeus sem saber por quê.

Sob o domínio nivelador do abstrato, que transforma todas as coisas na natureza em algo de reproduzível, e da indústria, para a qual esse domínio do abstrato prepara o reproduzível, os próprios liberados acabaram por se transformar naquele ‘destacamento’ que Hegel designou como o resultado do esclarecimento.”

Os cantos de Homero e os hinos do Rigveda datam da época da dominação territorial e dos lugares fortificados, quando uma belicosa nação de senhores se estabeleceu sobre a massa dos autóctones vencidos. O deus supremo entre os deuses surgiu com esse mundo civil, onde o rei, como chefe da nobreza armada, mantém os subjugados presos à terra, enquanto os médicos, adivinhos, artesãos e comerciantes se ocupam do intercâmbio social. Com o fim do nomadismo, a ordem social foi instaurada sobre a base da propriedade fixa.”

Assim como, em cultos que não se excluíam, o nome de Zeus era dado tanto a um deus subterrâneo quanto a um deus da luz, e os deuses olímpicos cultivavam toda espécie de relações com os ctônicos, assim também as potências do bem e do mal, a graça e a desgraça, não eram claramente separadas. Elas estavam ligadas como o vir-a-ser e o parecer, a vida e a morte, o verão e o inverno. No mundo luminoso da religião grega perdura a obscura indivisão do princípio religioso venerado sob o nome de ‘mana’ nos mais antigos estágios que se conhecem da humanidade.”

O GRITO E O PORQUÊ: “A duplicação da natureza como aparência e essência, ação e força, que torna possível tanto o mito quanto a ciência, provém do medo do homem, cuja expressão se converte na explicação. Não é a alma que é transposta para a natureza, como o psicologismo faz crer. O mana, o espírito que move, não é nenhuma projeção, mas o eco da real supremacia da natureza nas almas fracas dos selvagens.”

Quando uma árvore é considerada não mais simplesmente como árvore, mas como testemunho de uma outra coisa, como sede do mana, a linguagem exprime a contradição de que uma coisa seria ao mesmo tempo ela mesma e outra coisa diferente dela, idêntica e não-idêntica. Através da divindade, a linguagem passa da tautologia à linguagem. O conceito, que se costuma definir como a unidade característica do que está nele subsumido, já era desde o início o produto do pensamento dialético, no qual cada coisa só é o que ela é tornando-se aquilo que ela não é.” “Os deuses não podem livrar os homens do medo, pois são as vozes petrificadas do medo que eles trazem como nome. Do medo o homem presume estar livre quando não há nada mais de desconhecido. É isso que determina o trajeto da desmitologização e do esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado ao animado. O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica. A pura imanência do positivismo, seu derradeiro produto, nada mais é do que um tabu, por assim dizer, universal.” O positivismo absoluto como as verdadeiras trevas. Ó, Hegel, que foi que fizeste?

O dualismo mítico não ultrapassa o âmbito da existência. O mundo totalmente dominado pelo mana, bem como o mundo do mito indiano e grego, são, ao mesmo tempo, sem-saída e eternamente iguais.” Não há o nada. Há bem e mal balanceados. Há trocas equivalentes entre ambos. Se eu cedo, eu conquisto; se eu conquisto, devo ceder. Como quer que seja, estou na lei e participo. “Todo nascimento se paga com a morte, toda ventura com a desventura. Homens e deuses podem tentar, no prazo que lhes cabe, distribuir a sorte de cada um segundo critérios diferentes do curso cego do destino; ao fim e ao cabo, a realidade triunfa sobre eles.” A realidade sou eu. Eu não fujo, porque se eu fugisse eu me apanharia.

Por isso, tanto a justiça mítica como a esclarecida consideram a culpa e a expiação, a ventura e a desventura como os 2 lados de uma única equação. A justiça se absorve no direito.”

Antes, os fetiches estavam sob a lei da igualdade. Agora, a própria igualdade torna-se fetiche. A venda sobre os olhos da Justiça não significa apenas que não se deve interferir no direito, mas que ele não nasceu da liberdade.”

Inexauribilidade, renovação infinita, permanência do significado não são apenas atributos de todos os símbolos, mas seu verdadeiro conteúdo. As representações da criação nas quais o mundo surge da Mãe primordial, da Vaca ou do Ovo, são, ao contrário do Gênesis judeu (1:26), simbólicas. A zombaria com que os antigos ridicularizaram os deuses demasiadamente humanos deixou incólume seu âmago. A individualidade não esgota a essência dos deuses. Eles tinham ainda algo do mana dentro de si; eles personificavam a natureza como um poder universal. Com seus traços pré-animistas, eles se destacam no esclarecimento. Sob o véu pudico da chronique scandaleuse olímpica já se havia formado a doutrina da mistura, da pressão e do choque dos elementos, que logo se estabeleceu como ciência e transformou os mitos em obras da fantasia.” Platão não devera se indignar contra Homero, mas contra aqueles que lhe antecederam e desfiguraram o real Zeus, que não poderia ser nunca mau exemplo e perversão para nenhuma conduta humana… Ou os reais Zeuses, celeste-ctônico, telúrico-paradisíaco…

A antítese corrente da arte e da ciência, que as separa como domínios culturais, a fim de torná-las administráveis conjuntamente como domínios culturais, faz com que elas acabem por se confundirem como opostos exatos graças às suas próprias tendências.”

A ciência estética, como a ciência da performance também em suas trincheiras, já se tornou há muito tempo um clube seleto como o dos matemáticos, que não exigem e aliás proíbem a intervenção de não-entendidos. Jogo auto-suficiente. Esteticismo, performatismo, matematicismo. “A arte da copiabilidade integral, porém, entregou-se até mesmo em suas técnicas à ciência positivista.” “A separação do signo e da imagem é inevitável. Contudo, se ela é, uma vez mais, hipostasiada numa atitude ao mesmo tempo inconsciente e autocomplacente, então cada um dos 2 princípios isolados tende para a destruição da verdade. O abismo que se abriu com a separação, a filosofia enxergou-o na relação entre a intuição e o conceito e tentou sempre em vão fechá-lo de novo” “Platão baniu a poesia com o mesmo gesto com que o positivismo baniu a doutrina das Idéias.” “A imitação está proscrita tanto em Homero como entre os judeus.” “A razão e a religião declaram anátema o princípio da magia. Mesmo na distância renunciadora da vida, enquanto arte, ele permanece desonroso; as pessoas que o praticam tornam-se vagabundos, nômades sobreviventes que não encontram pátria entre os que se tornaram sedentários.”

A obra de arte ainda tem em comum com a magia o facto de estabelecer um domínio próprio, fechado em si mesmo e arrebatado ao contexto da vida profana. Neste domínio imperam leis particulares.” “É exatamente a renúncia a agir, pela qual a arte se separa da simpatia mágica, que fixa ainda mais profundamente a herança mágica.” “Pertence ao sentido da obra de arte, da aparência estética, ser aquilo em que se converteu, na magia do primitivo, o novo e terrível: a manifestação do todo no particular. Na obra de arte volta sempre a realizar-se a duplicação pela qual a coisa se manifestava como algo de espiritual, como exteriorização do mana. É isto que constitui sua aura. Enquanto expressão da totalidade, a arte reclama a dignidade do absoluto. Isso, às vezes, levou a filosofia a atribuir-lhe prioridade em face do conhecimento conceitual. Segundo Schelling, a arte entra em ação quando o saber desampara os homens.” “Só muito raramente o mundo burguês esteve aberto a semelhante confiança na arte.”

É através da fé que a religiosidade militante dos novos temposTorquemada, Lutero, Maomé – pretendia reconciliar o espírito e a vida. Mas a fé é um conceito privativo: ela se anula com[o] fé se não ressalta continuamente sua oposição ao saber ou sua concordância com ele.”

A tentativa da fé, empreendida no protestantismo, de encontrar, como outrora, o princípio da verdade que a transcende, e sem a qual não pode existir diretamente, na própria palavra e de restituir a esta a força simbólica – essa tentativa teve como preço a obediência à palavra, aliás a uma palavra que não era a sagrada.” “seu fanatismo é a marca de sua inverdade, a confissão objetiva de que quem apenas crê por isso mesmo não mais crê. A má consciência é sua segunda natureza.” “Não foi como exagero mas como realização do próprio princípio da fé que se cometeram os horrores do fogo e da espada, da contra-reforma e da reforma. A fé não cessa de mostrar que é do mesmo jaez que a história universal, sobre a qual gostaria de imperar; nos tempos modernos, ela até mesmo se converte em seu instrumento preferido, sua astúcia particular. Não é apenas o esclarecimento do século XVIII que é irresistível, como atestou Hegel, mas (e ninguém sabia melhor do que ele) o movimento do próprio pensamento.”

O paradoxo da fé acaba por degenerar no embuste, no mito do século XX, enquanto sua irracionalidade degenera na cerimônia organizada racionalmente sob o controle dos integralmente esclarecidos e que, no entanto, dirigem a sociedade em direção à barbárie.”

Quando a linguagem penetra na história, seus mestres já são sacerdotes e feiticeiros. Quem viola os símbolos fica sujeito, em nome das potências supraterrenas, às potências terrenas, cujos representantes são esses órgãos comissionados da sociedade. O que precedeu a isso está envolto em sombras. Onde quer que a etnologia o encontre, o sentimento de horror de que se origina o mana já tinha recebido a sanção pelo menos dos mais velhos da tribo.” “Só que, é verdade, esse carácter social das formas do pensamento não é, como ensina Durkheim, expressão da solidariedade social, mas testemunho da unidade impenetrável da sociedade e da dominação.”

A dominação defronta o indivíduo como o universal, como a razão na realidade efetiva. O poder de todos os membros da sociedade, que enquanto tais não têm outra saída, acaba sempre, pela divisão do trabalho a eles imposta, por se agregar no sentido justamente da realização do todo, cuja racionalidade é assim mais uma vez multiplicada. Aquilo que acontece a todos por obra e graça de poucos realiza-se sempre como a subjugação dos indivíduos por muitos: a opressão da sociedade tem sempre o caráter da opressão por uma coletividade.”

Na medida em que constituíam semelhante reforço do poder social da linguagem, as idéias se tornavam tanto mais supérfluas quanto mais crescia esse poder, e a linguagem da ciência preparou-lhes o fim. Não era à justificação consciente que se ligava a sugestão que ainda conserva algo do terror do fetiche. A unidade de coletividade e dominação mostra-se antes de tudo na universalidade que o mau conteúdo necessariamente assume na linguagem, tanto metafísica quanto científica. A apologia metafísica deixava entrever a injustiça da ordem existente pelo menos através da incongruência do conceito e da realidade. Na imparcialidade da linguagem científica, o impotente perdeu inteiramente a força para se exprimir, e só o existente encontra aí seu signo neutro. Tal neutralidade é mais metafísica do que a metafísica. O esclarecimento acabou por consumir não apenas os símbolos mas também seus sucessores, os conceitos universais, e da metafísica não deixou nada senão o medo abstrato frente à coletividade da qual surgira.”

Se o positivismo lógico ainda deu uma chance à probabilidade, o positivismo etnológico equipara-a já à essência.”

A religião judaica não tolera nenhuma palavra que proporcione consolo ao desespero de qualquer mortal.”

A contestação indiferenciada de tudo o que é positivo, a fórmula estereotipada da nulidade, como a emprega o budismo, passa por cima da proibição de dar nomes ao absoluto, do mesmo modo que seu contrário, o panteísmo, ou sua caricatura, o ceticismo burguês. As explicações do mundo como o nada ou o todo são mitologias, e os caminhos garantidos para a redenção, práticas mágicas sublimadas.”

Semelhante execução, ‘negação determinada’,¹ não está imunizada pela soberania do conceito abstrato contra a intuição sedutora, como o está o ceticismo para o qual são nulos tanto o falso quanto o verdadeiro.² A negação determinada rejeita as representações imperfeitas do absoluto, os ídolos, mas não como o rigorismo, opondo-lhes a Idéia que elas não podem satisfazer.³ A dialética revela, ao contrário, toda imagem como uma forma de escrita. Ela e