Originalmente publicado em 23 de maio de 2007
Mais de meio século depois a depressão econômica deixou a Itália. A Itália é mais uma das duzentas nações pós-modernas do globo terrestre, dominada pela televisão. Tanto que elegeram presidente um dono de canal, Silvio Berlusconi. Nada mais quixotesco, infame, risível. Quixotesco porque, ao verem o erro que haviam cometido, tentaram lutar contra o mau governante usando a mídia, e isso é dar de cabeça no moinho.
Mas, mudando de entrevero, que tal falar da atualização dos famosos “ladrões de bicicleta”, suposta alegoria (e quando podemos dizer que o cinema neorrealista é alegórico?) da situação de penúria na Itália da Segunda Guerra, presente na película homônima de Vittorio de Sica? Os ladrões de bicicleta roubavam bicicletas e tinham suas bicicletas roubadas. Todos eram pobres. Rico não anda de bicicleta. Se anda, não depende dela para ir trabalhar, nem a obtém roubando dos pobres (não pelos meios clássicos – ele “manda roubar”, ele vende seus suvenires!). Uma bicicleta vai passando de mão em mão até que quebre ou seja jogada no fundo de um lago, porque quase não há dinheiro para compra; quando um pobre a compra é porque vendeu até o cobertor do filho; e logo, logo ela troca de dono, na primeira esquina obscura – das muitas obscuras – da Milão daquele tempo. É o grotesco de ser a vítima e se ver praticando o ato facínora horas depois – e sendo apanhado. Se houvesse justiça, dir-se-ia, seria uma punição injusta.
Porém, assim como não existe uma Verdade – e a queda de Mussolini isso atesta –, também não existe uma Justiça, e fica por isso mesmo. Daí a classificação do dramalhão por trás de Ladrões de Bicicleta de De Sica (por trás, jamais explícito) como “neorrealista”: é a reprodução – não menos artística, por isso – da realidade, sem cargas emotivas. Gerald Thomas diria que tudo é uma GREAT BULLSHIT, que a arte é desligada da realidade e falha em copiá-la. Mas fato é que o teor, a emoção, ou seja, a constatação dos roubos sucessivos de bicicletas como alegoria de um padrão endêmico social, não é obra do autor, é obra do espectador. Nossos olhos fazem Arte, ao diagnosticarem uma crítica social por trás de uma mera narração semi-estática (câmeras paradas pelas ruas, personagens se distanciando, saindo do foco e às vezes do próprio campo de visão), amoral e perfeita em sua singularidade.
A referida atualização dos Ladrões de Bicicleta aconteceu hoje, dia 23 de maio de 2007, nos mesmos domínios da Bota. E agora não há motivos para um “filme neo-neo-realista” (vulgo noticiário, embora um noticiário seja mil vezes mais sensacionalista que qualquer filme) chocar alguém. A civilização já perdeu seu resquício de moral e seus ideais. Cada um faz o que bem lhe convém, e nisso ele é apoiado pela ditadura de informações e torrente de imagens despejadas sobre si. Opa, Berlusconi aí de novo!
Fato é que passou, vindo das agências de notícias, trafegando pelos meios de reprodução, e aportando nos lares – e ninguém se deu conta. Ninguém se deu conta de que houve a reprise da série de furtos do filme de De Sica, com a diferença de que não é mais um veículo de duas rodas sem motor o objeto do roubo, isto é! Ninguém percebeu – e, se percebesse, daria de ombros. Muitos não perceberam porque não fazem idéia de quem seja De Sica. Outros tantos porque seu cinismo diário, erguido tijolo a tijolo, isolando-o dos sobressaltos característicos do bicho-homem, não tolera reflexão. Fato é que esta manhã, da data já referida na primeira linha do parágrafo anterior, um homem foi preso em flagrante de roubo. Carregava consigo uma antena parabólica. Seu intuito era assistir à decisão da Liga dos Campeões da Europa, o último suspiro da maior competição de clubes de futebol do planeta. Um dos times que chegou à final é o Milan, onde há jogadores de todas as nacionalidades. Essa globalização nos gramados deve explicar a seguinte cifra: a partida é televisionada todo ano para mais de 1 bilhão de pessoas. Muitos prestigiam o espetáculo sem uma preferência, pelo ideal utópico da contemplação imparcial. Já o homem em questão (o ladrão de parabólica) é milanês, torcedor convicto. O que dificultava seu intuito de acompanhar o time do coração e incentivou terminantemente seu ato desesperado foi o bloqueio estatal (estatal!) dos sinais da TV aberta de todos os moradores de sua cidadezinha. Em outras palavras, qualquer cidadão, dotado do livre acesso à informação e do pleno direito de se expressar perante a constituição, sem poder aquisitivo para instalar uma antena parabólica ou assinar canais a cabo no seu televisor, ficará na mão durante a exibição do jogo!
Na Itália mais neorrealista que já vi, o governo prepara o crime e o proletário – ops, “consumidor latente”, o que seria mais politicamente correto – o comete. Paralelamente ao personagem do filme, que teve sua bicicleta, instrumento de trabalho, usurpada não mais que de repente enquanto colava cartazes e se viu obrigado a repetir a indocilidade num bairro que parecia deserto e cujo único objeto exposto, a uma parede, era uma lustrosa bicicleta, o protagonista do neorrealismo das agências de notícia do dia 23 de maio de 2007 foi prejudicado pela mão do Estado e, quando pôs a própria mão na massa para consertar a situação e se dar bem (sem pensar nos outros, exatamente como cada um de seus pares, nós humanos), o mesmo Estado, na forma dos guardas, lá estava para exibi-lo às televisões (que ironicamente ele trouxe para si, sejam as abertas, as parabólicas ou as a cabo), num estilo grande-irmão, no pior sentido: “O homem com uma antena na mão”, não é vergonhoso ler uma manchete dessas? Por que um homem roubaria uma antena?! Não estava roubando pão, não era miséria, era canalhice! Ele não tem motivos pra isso – ninguém tem! Quem imaginaria toda essa situação neossurreal?
No desfecho da produção de De Sica, o roubado que se torna ladrão não é preso ou espancado até a morte. Talvez se assim filmasse De Sica fosse taxado de maquiavélico, frio, insensível. Ou o oposto: moralista! Ele odiava juízos de valor, não queria seu dedo na estória. Não queria apenas um enredo com “happy end” invertido. Seu enredo era a falta de enredo, tomadas tiradas ao acaso de uma família que se vê às voltas nem com o primeiro nem com o último de seus problemas. Pois então, mesmo que fosse até esperado, realisticamente, que depois de ser pego montado na bicicleta que encontrou quase sozinha o homem pudesse ser morto a bordoadas, pela sensação de que aquilo era panfletário demais, De Sica o tratou de evitar. Ao contrário: preferiu inserir ali um filho pequeno e algumas falas pouco boas dos homens, a primeira vez no filme que alguém despeja alguma lição de moral de modo explícito: “Vagabundo! E ainda rouba na frente do seu filho, que exemplo!”. Ao roubado que virou ladrão resta a resignação, e o orgulho para sempre ferido, não por causa de outros adultos que o apanharam em flagrante, mas pelo testemunho da criança, do próprio filho. A prova (se é que se pode dizer prova) de que isso não é “construído” para virar uma fábula, a encerrar uma moral, de que é puro produto do acaso, é que o protagonista podia ter conseguido se safar dos perseguidores. E seu filho poderia ter pegado o bonde que seu pai mandara que ele pegasse minutos antes – e que não o fez por uma margem de segundos, porque o bonde saiu da estação antes que o menino chegasse… Na verdade o roubo poderia nem acontecer. Assim como o próprio filme. A película é, no final, uma daquelas peças com que topamos mais dia, menos dia – e temos o direito de achá-la ou não alegoria de algo maior. O ser humano tem muito disso: gosta de enaltecer as pequenas coisas.
Quer saber? Talvez o Milan ganhe – e talvez nosso ator (o neorrealismo proíbe as denominações “vítima” ou “herói”) anônimo do roubo de uma antena parabólica consiga assistir à vitória: ouvi dizer que na cadeia tem uma parabólica e uma legião de torcedores.
E Berlusconi? Hoje ele não governa mais o país. Seu hobby predileto é, nestes tempos, gerenciar seu clube de futebol: Associazione Calcio Milan.