De forma puramente SUBJETIVA – quanto mais somos conscientes de nós próprios (o crítico apreende a obra como algo estranho, sujeito x objeto, esqueceu que a criação do artista, sua objetividade, está em ser o objeto enquanto o objeto é consciência, na fusão dos pólos). Propriamente falando, o artista não julga o que é ou não é o belo, pois se torna provisoriamente o próprio belo. Como pode a beleza argumentar intelectualmente sobre a beleza? Ela apenas é. Narciso não se reconhece ao espelho, está menos consciente de si, pode julgar seu reflexo (o outro) como belo. Narciso é o crítico – quem está desinteressado de si está interessado no outro (a obra). Nele, sujeito e objeto estão divorciados, Narciso não é a imagem de Narciso. O artista é todo consciência-de-si, ele e a obra são cegos à outridade, entendem apenas os reflexos (o espelho que reflete a si próprios), estão fechados em si numa subjetividade infinita – mas como não há outro, apenas mesmidade, identidade, trata-se da OBJETIVIDADE PERFEITA E AUTO-SUFICIENTE DO QUE É IGUAL A SI MESMO. Narciso, o crítico, se afoga porque carece, busca o complemento, a beleza (Narciso não é a beleza, ele é inconsciente de si, seu corpo não está em consideração a não ser como outro, infinitamente separado por um abismo). O reflexo (a obra) não quer nada. Sujeito e objeto aqui são um, o mundo. O exterior e o interior simultâneo. O Ser. Não há logos, só recursividade tautológica. Vênus é. O amor é cego e no entanto não deseja enxergar (interagir com o exterior). O amor é o processo de criação. O amor está na boca do mundo, é discursado pelos loucos da subjetividade irrestrita. Só neste sentido, o amor é a Poesia (subjetividade) e a crítica é a Verdade (objetiva). Homero descreve o mundo; a verdade desmistifica-o. A verdade é a verdade dos homens, discurso, sempre carente da serena objetividade muda e inacessível da beleza.
Goethe compreendeu esta antítese, e por isso sua autobiografia se chama Poesia & Verdade. Poesia é a sua obra, verdade o indivíduo biografado. Por ser uma obra, versando sobre a obra e a crítica, é Poesia, como foram antes seus poemas que não falavam de poemas, mas uma poesia sem objeto, inacabada. Por ser uma crítica, prosando sobre a crítica e a obra, é Verdade, verdade clínica e impessoal de sua vida. Beleza deficitária, crítica consumada. Tentativa de uma síntese impossível a não ser dentro da obra de arte que é o artista enquanto indivíduo. O jeito do belo ver, elogiar, participar – a possibilidade da crítica ser bela e definitiva.
Overkill (OK), de Nova York, ativa há 42 anos e contando. Principal gênero musical: thrash metal. Não só tornou-se, no decorrer da carreira, a banda do estilo com mais álbuns e músicas lançados, como sempre acompanhou a quantidade com a qualidade. E no entanto Bobby Blitz, vocalista e “membro eterno”, & seus comparsas nunca receberam a cobertura midiática que merecem. Mesmo bandas muito menores e questionáveis, como o Voivod, são muito mais conhecidas e celebradas pelo público especializado. Não é meu objetivo desvendar este mistério do show business, mas apenas enaltecer o Overkill pelos muitos “discos rodados” no meu som (ainda que seja apenas uma metáfora para a reprodução de arquivos digitais num HD ou streamings via Spotify), o que significa dizer que me proporcionaram muita alegria, euforia, admiração e até espanto, com discos se superando sem descanso.
Para falar dessa banda com um catálogo monstruoso, vale a pena ser introduzido primeiro aos álbuns por seus nomes e sua característica mais notável: considero todos os trabalhos do Overkill acima da nota 8. E não pense aquele que gosta de Overkill tanto quanto eu que estou sendo severo ao descontar, sem mais nem menos, 2 pontos de obras consideradas quase sempre próximas ao pináculo do gênero possível a cada momento. Faço essa concessão, sobretudo, para diferenciar os álbuns do Overkill nota “8 e alguma coisa” dos álbuns “9 ou mais”, pois por menor que seja a diferença de qualidade entre um trabalho e outro (o que não tem nada a ver com a dinâmica e versatilidade das composições) é necessário colocar os melhores dos melhores num pedestal. Chamemos 8, se preferível, de rank A, já considerada a primeira prateleira do thrash; e 9, se do gosto do cliente, de rank S, obra-prima, daquelas que a história conta nos dedos e, mais do que isso, que nenhuma banda, por mais clássica, indispensável e imortal, lança o tempo todo e a seu bel prazer. Qualquer grupo com trabalhos de ranking S está automaticamente no panteão dos deuses do metal. Bandas com múltiplos álbuns nessa categoria são – ame-os ou suporte-os, porque sua crítica será o mesmo que jogar palavras ao vento – fenômenos consensuais o bastante para estarem sempre no centro dos holofotes, e para marcar gerações sem conta. Com rank S quero me referir a álbuns como Reign in Blood, Ride The Lightning, Master of Puppets, Rust in Peace, Alice in Hell, Seven Churches, Beneath The Remains, Among The Living… Acho que deu para entender. Portanto, apresento-lhes, na minha imodesta opinião, os discos do Overkill até o último, de 2019, divididos nessas 2 categorias (excepcionalmente bons ou lendários!):
Inacreditável, não parece? Independentemente da minha subjetividade altamente incrustada na tabela acima, falo a princípio do fato de uma banda fundada em 1980, dum estilo rápido e agressivo, continuar lançando trabalhos de estúdio no mínimo competentes e relevantes, em intervalos curtos, mesmo com seus membros em idade mais avançada, quando não é fácil fazer turnês, manter a proficiência em seus respectivos instrumentos e – mais importante – a empolgação e a criatividade. Dezenove discos é uma estatística absurda, espetacular. Se são rank B, C, ou se menos álbuns acima são rank S para os leitores e ouvintes, isso é o de menos! Minha didática tem lá seus propósitos. Vou falar um pouco da carreira da banda de forma não-cronológica, citando cada um dos 2 grupos de discos a seu tempo:
Quem pode adivinhar o significado dos sublinhados tracejados da tabela acima? Eles significam sempre a demarcação de intervalos, entre o disco sublinhado e o seguinte, em que a banda atravessou uma fase ou efetuou uma mudança um pouco mais drástica na sua estética. Para todos os propósitos, nesse artigo entenda estética sempre como sinonímia de som, não de roupas ou temas líricos.
A primeira era do Overkill foi de um speed metal (ainda aquém da variedade e distorção de um verdadeiro thrash) muito infundido de punk. Alguns resumem essa mistureba que dá um ar selvagem e urbano a certos grupos através do rótulo street metal. Feel The Fire e Taking Over são o mais próximo de Hirax que você escutará o Overkill tocando. Uma barragem sonora frenética atrás da outra, competindo por cada segundo no CD ou bolachudo, é disso que eu chamaria. A chegada de uma banda ao mercado pede que ela “chegue chegando”, ponha todas as cartas na mesa, suba na mesa, beba a tequila e o conhaque dos inadvertidos convidados da festa, pegue o microfone e faça escândalo – se possível mije na parede depois! Tudo com classe, é claro. Se ninguém ouve muito falar desses dois trabalhos seminais do Overkill, não foi por falta de estilo e de atitude, esteja certo.
Pulando os verdadeiros anos de amadurecimento dos caras, que deixaremos para mais adiante, Horrorscope já vê um grupo que, a despeito da não-fama fora do nicho, vive para fazer música – o que pode até não parecer, mas faz uma diferença e tanto nas escolhas compositivas a partir deste momento de mais estabilidade financeira. A banda sempre teve um tema ou outro voltado para coisas de terror, como em Raising the Dead do primeiro disco, mas resolveu elevar o conceito a protagonista da sonzeira só no quinto trabalho. Horrorscope tem na sua principal composição um riff de Sexta-Feira 13. Continua e aprofunda a parte mais macabra do Years of Decay, mas, ao meu ver, principalmente na produção e na loucura que é o baixo neste lançamento – à propos, nenhuma banda do heavy metal inteiro, salvo os titãs do Black Sabbath, e só direi isso uma vez, tem um baixo tão proeminente e audível nas gravações quanto o Overkill, eis uma de suas marcas distintivas, e que é a favorita de muita gente –, loucura maior do que a média já insana da banda. Ou seja: confirmação de que o grupo toca uma variedade de technical thrash com certos elementos NWOBHM dos mais sacanas e frenéticos, mostrando que o conjunto chegou a um nível genial e elegante de composição sem por isso se desenraizar do punk. O NWOBHM sem o punk não seria nada, não custa lembrar!
I Hear Black é como o Overkill, muito inteligentemente, reagiu à onda grunge que quase pulverizou o thrash metal, transformando a maioria de seus expoentes em groove metal bands, se é que não tirando mesmo qualquer veterano insistente do radar – não com o Overkill, meus caros! Isso sem falar nas novas bandas: nenhuma, apesar da influência óbvia, tocaria igual o Metallica e o Slayer em seus anos seminais. O thrash tinha de súbito virado coisa do passado, era o que se dizia. Nem mesmo Metallica e Slayer tocariam igual o Metallica e o Slayer! Esse era o profundo significado da mudança de estética. Não havia qualquer medida comum entre todas essas bandas citadas nos anos 90 – a pior década para a existência do heavy metal, até aqui – a ponto de conseguirmos fazer comparações simplistas entre elas. O fato é que o Overkill optou por um retorno às origens como lhe cabia: compôs seu material mais derivado de Black Sabbath de que se tem notícia até o momento, tornando-se ao mesmo tempo palatável para qualquer fã de Machine Head e Pantera, porém sem que possamos dizer “virou uma banda de groove com resíduos thrash”. Na verdade é o único exemplo que eu conheço de uma banda ainda essencialmente thrash mas cheia de elementos – bem-implementados, acredite! – de groove e de doom (o que, veremos, não era inédito para a banda mesmo considerando o ano 1993). Em suma, o Overkill conseguiu encorpar seu som sem transformar a própria essência num rip-off de Vulgar Display of Power. Para quem não fosse rumar ao metal extremo nem deixar o som bem mais acessível (hard rock pra baixo, na escala da descomplicação), esse era o único jeito de seguir sua trajetória sem perder de imediato os fãs dos anos 80. As produções do thrash oitentista, os tons das guitarras, quase tudo relacionado aos discos seminais, haviam se tornado ultrapassados num período de tempo tão curto que o que antes era considerado riff pesado virou “linha de guitarra fina e enjoativa”. Como o Overkill não quis virar uma banda de rock’n’roll nem o próximo Cannibal Corpse, resgatou elementos do doom metal antes de ser doom metal e incorporou-os nas suas inconfundíveis canções aceleradas, só que deixando a velocidade menos rápida para dar ao paladar do ouvinte a chance de provar da coisa, saborear, passar a língua, e aí sim consumir direito a guloseima, isto é, a música. Se êxitos extraordinários em processos de adaptação valessem um Oscar, ou pelo menos um Prêmio Darwin, os músicos do Overkill teriam mais o que contar a seus netinhos do que têm hoje! Essa metamorfose, porém, como quase toda a carreira da banda, passou relativamente despercebida pelos olhos do headbangermédio, aquele que só vai em show grande, que ocupa estádios e arenas inteiras.
W.F.O. é a acentuação máxima do ataque dos baixos. Nunca antes uma banda de heavy metal deixou um baixo tão alto (eu sei que esse tipo de frase sempre gera piadinhas) num trabalho de estúdio, a ponto de haver gente que jura que o que ocorreu foi um desastre, uma má produção do disco. Considere apenas uma coisa: não tem como esse efeito não ter sido intencional. Escute e concorde comigo. O baixo é a maior estrela do disco, e é com certeza um exemplo do que chamam na gringa de acquired taste, talvez o caso mais claro na discografia do OK. W.F.O. encerra esta que é a fase mais experimental da banda, depois da rotação ao Black Sabbath de I Hear, e parece mais um Under The Influence, só que com o mesmo peso e “me(n)talidade” (fugindo um pouco do NWOBHM) do Horrorscope.
Em 1996 Killing Kind trouxe novidades na forma de um som sem dúvida mais pesado, mais dependente do groove e menos do metal clássico do Sabbath ou de pinceladas hard rock e derivações do punk. E de novo eu destaco: dependente do subgênero groove, porém com o thrash puxando a carroça. A banda encontrou uma espécie de terreno em que se consolidaria, lançando depois novas variantes e interpretações possíveis de uma mesma estética – mas não digo que o grupo estacionou, atolou ou se confinou neste terreno. É bom mudar; e é bom manter uma identidade. Embora nenhum disco do Overkill pareça ser de outra banda, faz sentido dizer que mudar em excesso a cada novo lançamento também não é um bom caminho, seja para atingir o potencial artístico, seja para simplesmente vender e lucrar. Por alguma felicidade do destino, o Overkill achou o seu jeito anos 90/2000 de fazer metal no Killing Kind, e com o protótipo em mãos só foi afiando a faca e aperfeiçoando o bagulho até o big bang de 2010. From The Underground and Below, Necroshine, Bloodletting, Killbox 13, ReliXIV e Immortalis nada têm de genéricos. Se passo rapidamente por eles, é só por questões de tamanho do texto! Não me deixam mentir canções-grude como Thunderhead, uma das poucas composições clássicas dos anos 90 diante das quais um marmanjo não sentiria vergonha ao cabecear em público. Faço referência ao nü metal, em ascensão meteórica no período 95-2000, talvez até um pouco além: mesmo quando uma banda ou outra tinha uma música boa, os headbangers, murchados, encolhiam os ombros, fingindo não curtir, a não ser em sigilo. Overkill tem um tipo de metal dinâmico tradicional o suficiente para não ser considerado nü metal e, por isso, é uma audição confortável para ouvintes velhos e ortodoxos. Velhos ou… envelhecidos, seria melhor dizer. E, ao mesmo tempo, o Overkill era um dos poucos bastiões do thrash ainda NO thrash capazes de competir com “o som da moda”, de Slipknot, System of a Down e congêneres, justamente por ser um metal mesclando tantas influências e composto de forma tão sem-amarras e inteligente.
Passemos agora ao lado B, digo, ao lado S.Under The Influence representa um grande salto estético para o Overkill. A banda conseguiu juntar seu anterior espírito hiraxiano ao melhor que bandas como Iron Maiden nos começos e Motörhead ou Suicidal Tendencies (“frenesi urbanóide” resume bem a atmosfera, eu diria) poderiam oferecer. Clássico imediato ou instantâneo, como apelidam os críticos. Shred faz o que o título indica: tritura, destrói. Talvez apenas millennials como eu saibam ou se lembrem, mas Shredder, o vilão de Tartarugas Ninja (e estamos, nessa jornada discográfica, em 1989, quando esse seriado estava em alta!) virou Destruidor no Brasil. Parece que nossas primeiras lições de inglês derivam dos desenhos animados… Hello from the Gutter também faz o que o título indica: um cartão de visitas da banda sujo como um Morlock residente do subterrâneo, sem direito a pizza. Os borderline speed metals de Mad Gone World, Brainfade, Drunken Wisdom e End of the Line parecem uma mistura de desabafo pessoal com olimpíadas de mosh pit. Um ditado popular é apropriado pelo punk trevoso na bem-batizada Never Say Never. Head First, que por incrível que pareça não narra um ato sexual, é minha canção predileta do (não vá parar na) U.T.I. Por fim, a banda saca de suas entranhas o terceiro capítulo de sua canção mega-épica (à la Unforgiven), Overkill: Under the Influence. A canção-tema da banda seria encerrada (por enquanto) no quinto episódio, no ainda distante Immortalis, mais uma pista de que os anos 2007-10 representam uma era de significativas mudanças conceituais na carreira dos caras.
Mas é pelo álbum seguinte, The Years of Decay, que o Overkill se tornaria majoritariamente reconhecido. Não há como não dizer que é o Master of Puppets da banda. Não só porque é seu maior sucesso comercial como até sonoramente é impossível negar que MoP foi uma grande influência para as composições. Se parece estranho que o divisor de águas do Metallica, de 1986, tenha repercutido no Overkill só 3 anos depois, havendo ainda o Taking Over e o Under The Influence no meio do caminho, lembre-se que não estamos falando de uma banda comum, maria-vai-com-as-outras! O Overkill não é daqueles grupos que surfam numa onda sem um bom motivo e sem saberem o que estão fazendo. Não se trata de uma ficha que demora a cair, mas do reconhecimento já objetivo e impessoal, distanciado do momento, de que MoP modificou o thrash e a música pesada em geral para todo o sempre. O ritmo deu uma acalmada e o impacto dos riffs ganhou uma bela ênfase. Nem os mais maliciosos poderiam dizer que se trata de um clone tentando aproveitar o vácuo deixado por Master: The Years se assemelha mais a um MoP gravado numa realidade alternativa, com músicas igualmente originais, embora sigam aquele template imortalizado por Hetfield, Ulrich & cia. Não se trata tampouco de dizer que há um melhor e um pior, nos limites deste artigo. O disco “Os anos de decadência” são 56 minutos de puro orgasmo técnico-furioso sem fillers. Quase todas as canções são presença obrigatória em shows do OK: Time to Kill, Elimination, I Hate, Birth of Tension, o tema-título e E.vil N.ever D.ies são o front agressivo por excelência. Pelas beiradas a banda ataca com o que mais chega próximo de uma balada neste disco, Who Tends The Fire. E para quem nem com os petardos acima se dobrou a essa proposta de som, Playing with Spiders/Skullkrusher (10:15 de duração) são (e digo isso porque o título já reconhece que são duas suites ou segmentos numa faixa só) a parte doom do festival de pérolas genuínas; assim como Welcome Home e The Thing that Should Not Be de sua musa inspiradora, este conjunto trovador com certeza não recebeu os aplausos devidos quando exibiu seu lado alternativo ao mundo. Muitos consideram essa faixa o calcanhar-de-aquiles do CD. Nada mais falso. As letras e a performance revolta de Blitz dão aquela pimenta a mais que o autocontido Metallica já tinha ‘castrado’ desde a era Ride the Lightning, para quem gosta de comparações e achou que o autor supostamente covarde deste texto ficaria 100% em cima do muro! Se amor é prosa, este é o sobrenome dos californianos do Metallica; Overkill é puro sexo, digo, poesia, mais direto e sem-vergonha. Espera… Tem algo de errado neste ditado! I Hate é um hino antifa. Só o amor ao ódio aos fascistas pode derrotá-los. O fato de Years of Decay ter vindo depois de …And Justice for All é um sintoma de que o OK também estava entendendo a rápida mutação no subterrâneo, e já tinha a estratégia para mergulhar, de cabeça (Head First!) nos anos 90, o que você viu mais acima. Agora um salto à distância de Maurren Maggi. Já estamos em 2010, ainda ontem!
Na década de 2010 o thrash, considerado morto e enterrado há tempos, entidade assassinada pela ascensão de cometas como Nirvana, Pantera e seus sequazes, e até pelas próprias mutações internas do Metallica, quem capitaneava o movimento em escala primeiro estadunidense, depois global (para ojeriza de um grande contingente!), dentre outros artistas, sofreu um intenso e quase incompreensível revival, e se reestabeleceu na cena, mainstream ou underground (onde, sejamos sinceros, nunca morreu, mas, sim, estagnou um pouquinho em termos de fertilidade e criatividade das composições). Eu poderia afirmar com arrogância que Ironbound (2010) foi uma das forças-motrizes do movimento, porque seria uma hipótese bastante plausível, haja vista o status de cult classic desse disco do Overkill que caiu como uma porrada para quem “entende do assunto”, e justo no comecinho da década. Porém, como é óbvio, tal oportunismo enfraqueceria de forma fatal meu outro argumento, que creio ser o mais fácil de comprovar, o sustentáculo deste artigo, afinal: sendo generalista, os metaleiros não conhecem ou não dão bola para o Overkill (ou seja, não conhecem, porque se conhecessem bem, dariam muita bola!). Então seria contraditório dizer que este álbum ajudou de forma decisiva para o movimento de revivalismo do thrash que vimos no decorrer desta década terminada segundo os calendários, mas que continua pujante durante os anos 2020, quando o assunto é o neo-thrash (a década que não terminou?). Tanto antigos grupos que fundaram a cena nos 80 como bandas de integrantes jovens, como o Evile, recolocaram o thrash na boca e nos ouvidos do “povo”. A onda “renascentista” é fenômeno observável no nosso país, com representantes de ponta como o Violator, da minha querida cidade natal.
Como descrever, portanto, o Ironbound, agora que conhecemos o contexto? Certamente a Zeitgeist afetou o Overkill. De outra forma não poderíamos explicar como raios um álbum como este veio surgir precisamente nessa época! Ainda hoje este é considerado um petardo extemporâneo, um clássico do nível dos estabelecedores do gênero nascido na “época errada”. Mesmo quem torcia o nariz para o estilo mais groovado do Overkill antes desse lançamento engoliu em seco e deu o braço a torcer: acabou por enaltecer o disco sem economia verbal.
The Goal is Your Soul (4:37) tem o mesmo riff animal de pelo menos 3 canções clássicas do thrash de 3 das 4 bandas do aclamado “Big Four” californiano: Metallica (Phantom Lord), Megadeth (This Was My Life) e Anthrax (A Skeleton in The Closet).
Devo insistir, todavia, que o Overkill não é uma banda pura – ela é herege. Herege e… tradicionalista: jamais nega suas raízes, jamais se transforma completamente. Seu thrash, mesmo após a onda revivalista, continua sempre groovado, com algo a mais. Thrash metal é algo, a rigor, histórico e pitoresco, jamais repetível. Neo-thrash? Ressurreição?! Nós é que, tão perto da história cultural se realizando, não sabemos expressar com palavras esse fenômeno, e temos que recorrer a velhos vocábulos e formalismos classificatórios…
Dois anos depois, Electric Age, o álbum sucedâneo, já estava na praça. Ele, como também depois o White Devil Armory e o Grinding Wheel fariam, reaproveitou o template mas, na minha opinião, melhorando-o, por sua vez.
Já Wings of War é uma estória um pouco diferente, e por isso coloquei uma linha tracejada entre GW e WW. Em canções do último full-length da banda até a data deste artigo, como Welcome to the Garden State, Blitz se aproxima de Ozzy Osbourne na voz. É como ouvir, por alguns minutos, o clássico vocalista do Black Sabbath seguindo em sua carreira-solo, só que com uma banda instrumental ainda mais qualificada, isso quando sabemos que O.O. tem uma das trajetórias – mesmo depois da separação do BS, e antes das várias reunions ocorridas com os velhos amigos Butler e Iommi – mais dignas e respeitadas do hard rock/heavy metal. Como Blitz continua alcançando as mesmas notas nos graves e agudos que o celebrizaram como grande cantor nas canções mais “feijão-com-arroz” do disco, essa é assumidamente uma opção artística. Uma ampliação do cartel de proezas do frontman. Sem falar que Hole in my Soul, outra das faixas, parece mesmo título de música do Sabbath setentista! Se estas mutações demarcam o início de uma tendência a ser desenvolvida e completada ou são só um desvio episódico na carreira da banda, é cedo demais para afirmar. O que eu sei é que é o trabalho o mais genial que o Overkill já ofereceu composicionalmente. É sempre difícil afirmar de boca cheia algo dessa magnitude, sobretudo na época em que um lançamento ainda está quente no mercado. Mas já se passaram 3 anos, e escutei muito o Wings of War, sem que minha empolgação em relação a ele tenha minguado! Se a primeira hipótese se confirmar, mesmo sem precisar, os veteraníssimos do OK parecem ter achado “outro novo rumo”… Aquela fórmula do “em time que está ganhando não se mexe” com certeza não se aplica a músicos experientes, que sabem mudar para melhor mesmo quando, se fossem uma equipe esportiva, estão nitidamente liderando o campeonato que disputam!
PALAVRAS FINAIS
Vivemos uma nova era de ouro do estilo em que se convencionou classificar o Overkill. Vivemos, na minha opinião, além disso, o grande ápice desta banda em particular. São músicos que, em anos de carreira, superam em muito minha idade. Os membros do OK são, portanto, indivíduos avizinhando-se do que costumávamos chamar até outro dia de “terceira idade”. Os tempos mudam, dizem: a longevidade das pessoas aumenta, e com isso a duração de sua atividade em seus ofícios ou profissões. Só que não deixa, por isso, de ser uma ocorrência espantosa. Menos pelo lado físico da coisa, já que os profissionais de hoje tomam cuidado como nunca, desconstruindo esse estereótipo cretino do roqueiro que é sempre um drogado que morre jovem. Falo mais do lado essencialmente artístico: medicina e hábitos saudáveis aparte, que estes “senhores” (tem que ter respeito!), há décadas no ramo da música, continuem criando em altíssimo nível, ou seja, sigam com a alma jovem e queimando intensamente, isso sim eu considero sem precedentes e verdadeiramente assustador e admirável, toda vez que paro e penso em sua comprida trajetória. São artistas que há bastante tempo se provaram e não devem nada a ninguém. Cabe lembrar que, ao contrário da literatura, por exemplo, o auge dos artistas no campo musical se dá, historicamente, muito mais cedo. Ressalva: dá-se ou dava-se: pois é, os tempos mudam; e talvez estejamos diante de uma subversão de dados sociológicos das grandes, acompanhando tudo ao vivo!
Sagrado Inferno, Devorador de Almas (2019)
Esta banda mineira também explorou o riff mais conhecido do thrash metal, o de The Goal is Your Soul, alongando-o e distorcendo-o um pouquinho, a bem da verdade – a conferir abaixo para quem tem Spotify (segundos 1:45 a 2:35; e de novo depois de 3:20):
O princípio aristotélico (ou princípio da não-contradição) talvez seja o mais importante da Primeira Filosofia (ironia das ironias, ele não é um conceito meta-Lógico, i.e., não deveria servir para elaborar metafísica, e sim apenas para discussões práticas). Uma rápida demonstração da aplicação do princípio: se A é não-B, e se B é não-A, logo: A não pode ser não-A (auto-evidente); não-A é B; B não pode ser não-B; não-B é A.
O que seria o ‘nada negativo’ que Schopenhauer enumera ao lado da contraparte aristotélico-kantiana do ‘nada positivo’ ou ainda ‘nada (meramente) privativo’? Aquilo que não existe formalmente: um A = não-A ou B = não-B; ou ainda: um superveniente C que se identificasse com A e B ao mesmo tempo (o que seria chamado, desde Aristóteles, também de absurdo ou impossibilidade). O nada não tem lugar no mundo dos fenômenos.
Mas a fim de transcender esse ‘sistema’, teríamos de imaginar um mundo ou uma filosofia contraditórios, i.e., transgredir esse princípio básico da não-contradição, aceitar e abraçar o absurdo e o paradoxal. Essa luta de Schopenhauer pelo reconhecimento do nada negativo também nos ajuda a compreender por que o autor “santifica” seu bem ascético, i.e., dá um status de bem absoluto à negação da Vontade, em que pese dizer que o “bem absoluto” é uma contradição e que só existe o bem relativo. Dentro deste quadro de superação-de- ou de aplicação-literal-e-extrema-de-Aristóteles, o filósofo alemão consegue ser coerente consigo mesmo (ele representa o C que se identifica ao mesmo tempo com o A e o B) – levando a lógica às últimas conseqüências do lado de cá (do mundo das aparências ou fenomênico e, paradoxalmente, do mundo moderno-cristão, que justamente nega por inteiro este mesmo mundo em sua doutrina mais purificada!).
Pensando em termos de teoria da evolução das espécies segundo Darwin, póstuma a Hegel mas com certeza prefigurada em seus contornos e bastante de seu conteúdo pelo filósofo idealista alemão, o além-homem (tradução melhor para o ambíguo super-homem do português do original “Übermensch”) seria o primeiro animal autodeterminado. Pela primeira vez a seleção do devir da espécie pode ser um adestramento, adestramento de si próprio, a construção de uma humanidade propriamente dita (ainda inexistente), ao contrário da seleção entregue às puras contingências externas. Um projeto de além-homem inclui desde o último homem ou sub-homem (o obstáculo a superar), o homem (espécie de consciência intermediária, os que não são obstáculos reativos e reacionários, mas não são ativos nessa transvaloração dos valores ou conscientes da questão) e os filósofos de vanguarda, entregues à “causa”. Com o decorrer do tempo, num mundo já pós-ocidental (num nível não-concebido por nós, que de certa forma já vivemos num contexto de superação da metafísica ocidental), inclui(rá) o próprio ente que se vê nessa transição epocal (Zaratustras? enunciadores, ainda aquém do além-homem em si) e, finalmente, o próprio além-homem, que não é mais “homem”, mas que só poderá existir pelo esforço do que um dia já foi homem, e provavelmente coexistiria com ele eternamente, qualquer que seja a nova conformação social. Seria como se realmente, sem recorrer a algo transcendental, um sujeito hipostasiado que explique a evolução (em Darwin é a própria cientificidade de sua teoria, p.ex.), pudéssemos ver o peixe, o anfíbio e os (depois dos répteis, evidentemente, até chegar a nossa identidade no reino dos) mamíferos como atores e autores do seu próprio projeto de “viagem do mar à terra”, faces de um mesmo todo. Obviamente, apenas o homem é capacitado para integrar um projeto multifacetado como este (aquilo que deve ser conscientemente superado). A tríade peixe-anfíbio-animal terrestre não passa, em contraposição, de um caos tornado destino, por se localizar em nosso passado, evolução involuntária, impessoal, figuras que não dialogam entre si (precisamente por não discursarem ou dialogarem em absoluto, atributo definidor de “homem”).
ÚLTIMA PRETENSÃO (DISCLAIMER): Quero “continuar” este livro, já que o autor ignorou algumas bandas e fez um sobrevôo por várias delas quando saíam do movimento black metal ou simplesmente chegava-se mais perto da contemporaneidade, supostamente por falta de espaço (afinal, um bom livro investigativo tem mesmo de ser mais profundo e delimitado, é o preço que se paga). Já que é assim, que tal se eu mesmo, com minhas fontes, puder descrever os álbuns 1990-atualidade do Venom, do Mercyful Fate, as bandas principais que ficaram de fora dos 50 capítulos, etc.? Não é um projeto de fácil nem rápida execução, mas fica aqui registrado o intuito, para que, se não se realizar, a culpa não possa ser atribuída a um “esquecimento casual”! Obs.: A idéia não é necessariamente escrever resenhas dos discos, mas tampouco me satisfaria apenas uma cronologia muito “individualizada” de cada banda, formato que este autor elegeu. Há um meio-caminho entre essas duas coisas passível de explorarmos! Esse approach eu deixo para a PARTE III, em que pretendo ir contando duma tacada só as principais evoluções do gênero nos anos 90, falando mais de Venom e Mercyful Fate. Neste segundo capítulo, ou segundo volume do “livro que não comecei mas que irei complementar”, dedico-me, por meio de várias seções incluindo entrevistas, overviews do impacto da banda na cultura cult extrema e, claro, notas pessoais pormenorizadas de cada álbum, o que fez muita falta no Evolution of The Cult que muitos passaram a conhecer lendo os trechos que publiquei no Seclusão. Outra sugestão, ainda não confirmada, para a parte IV, seria um artigo especial sobre o Black Metal finlandês, um dos meus prediletos. O sueco também não está fora de cogitação para uma possível parte V… Podem aguardar meses ou anos, mas sejam otimistas: dificilmente desisto dos meus projetos!
O Immortal foi formado quando uma nova banda na praça, o Amputation, começou a recrutar membros do Old Funeral em decomposição (e realmente amputações e funerais costumam desencadear com certa rapidez a ocorrência biológica ou literal desse fenômeno, decomposição). Ambos eram grupos noruegueses de death metal. Em 1988, Demonaz forma o Amputation com 2 ex-membros do Old Funeral. Abbath, um terceiro ex-integrante do Old Funeral, se juntaria ao trio logo em seguida para completar o então ainda ativo e ambicioso Amputation.
1. OVERVIEW
Uma característica de relevo quando se fala em Immortal e a cena incipiente norueguesa é que os membros deste grupo nunca se envolveram nas atividades controversas de muitos dos partícipes da segunda onda do black metal, constituída principalmente pelos jovens que freqüentavam a Helvete, loja de discos de Euronymous.
Tampouco os temas do Immortal giraram de alguma forma em torno de satanismo ou de apologias pagãs, muito menos posicionamentos políticos de qualquer natureza. Seu foco lírico é nas forças da escuridão, no mal como uma essência capturável e num gélido mundo fantástico cheio de nomes próprios e neologismos.
A primeira mudança realmente impactante na formação (embora os primeiros álbuns sejam recheados delas) foi a saída do membro fundador Demonaz do posto de guitarrista, em 1997, devido a um quadro severo de tendinite nos dois pulsos ao mesmo tempo. Ele seguiu na banda contribuindo com letras e ocasionalmente como empresário e agenciador. Conforme veremos, em 2013, surpreendendo a muitos, Demonaz, após uma ou mais cirurgias braçais e muita dedicação na recuperação total, voltou a empunhar o instrumento e a tocar no seu velho estilo ágil.
O primeiro hiato da banda se deu em 2003: Abbath, Demonaz e Horgh, o trio que então constituía o Immortal, decidiu parar temporariamente por certas divergências artísticas. Abbath começou a tocar numa banda cover de Motörhead pela mesma época, a Bömbers, na companhia de Tore Bratseth (antigo companheiro de Old Funeral, e também ex-Desekrator) e Pez; também data desta época o projeto-solo de Abbath que adotava uma linha mais comercial, de composição de heavy metal, intitulado minimalisticamente I (Eu).
O Immortal voltou de seu 1º hiato em junho de 2006 com a mesma formação e lançou mais um álbum de estúdio em 2009; em março de 2015, porém, as diferenças entre os membros se mostraram inconciliáveis, quando o grupo novamente se dissolveu. Abbath fundou uma banda com seu próprio nome para seguir a carreira.
A banda foi inusitadamente reativada poucos meses depois, em agosto, apenas com Demonaz e Horgh. Dizem que Abbath não licenciou o nome, dando a brecha para que seus ex-companheiros seguissem trabalhando sob a mesma alcunha. Apollyon seria posteriormente convidado para reestabelecer o power trio que configurou o Immortal na maioria de seu tempo inativo. Em 2018 esta formação lançou um álbum, até a data deste texto o último do Immortal.
Atualmente (já há mais de um ano), Demonaz e Horgh travam uma batalha judicial entre si pela propriedade exclusiva ou dividida do nome da banda, sem contar que Abbath nunca desistiu do assunto. Curioso que Demonaz insista no tema, haja vista considerar-se mais “qualificado” para sustentar o nome Immortal, sendo membro fundador. Horgh, que pulou no barco consideravelmente depois, considera que, embora Demonaz deva ser justamente reconhecido como associado à marca, também trabalhou o suficiente no projeto para compartilhar deste direito.
2. AMPUTATION: OS PRIMÓRDIOS
Sob a alcunha Amputation existem duas demos. É impossível determinar a residência norueguesa da banda pela sonoridade, já que ela se diferencia inclusive do som do Old Funeral, considerado bem genérico. Tampouco podem-se distinguir influências puras ou inspiração muito clara das verves sueca ou floridiana que então grassavam no death metal. Trata-se mais de um híbrido enfurecido de deathrash – na 1ª demo – similar ao que se produziu por aqui, no Brasil, em anos pretéritos, pelo Sarcófago e principalmente durante a fase Schizophrenia do Sepultura, não só nas composições mas até na atmosfera e na qualidade análoga da produção (como se não bastasse, Abbath consegue lembrar bastante o gutural do Max Cavaleira neste material!).
Na 2ª demo os elementos de death se sobrepujaram, diminuindo-se a velocidade e aumentando a ambientação, o que sinaliza claramente uma transição entre o death, ou pelo menos o BM de 1ª onda (característico dos anos 80), e o BM em si (de 2ª onda), se cotejamos com a primeira demo do já assim cognominado Immortal (i.e., com a 3ª demo desde a montagem do grupo, caso ele continuasse se chamando Amputation).
O que mais chama a atenção na primeiríssima demo são os vocais de Abbath, com balbuceios semi-gritados, cheios de interjeições à guisa de Tom G. Warrior – ewww!!!, ahhhhh!!, etc. –, risadas maníacas e uma série de esguichos primitivos. O inglês é entrecortado, nem todas as sílabas são pronunciadas, e o sotaque de Abbath é visivelmente estrangeiro, o que só aumenta o charme da exibição. Seria mais ou menos como fundir os estilos vocais do cantor do Incubus da primeira gravação do Serpent Temptation¹ e do Angel da brasileiríssima Vulcano.
¹ Lembrando que esta banda de deathrash gringa regravou este álbum com outro vocalista logo depois. Então, se você ouviu o disco, não necessariamente ouviu na voz em comento!
Na primeira demo o Amputation não economiza em velocidade e intensidade, com raros interlúdios mid-tempo com palm-mute na guitarra. Os solos estão bem-espalhados pelas composições e tornam o som ainda mais abrasivo. A bateria parece um cavalo de batalha. O blast beating é mandatório já nesta fase do death, ainda que estejamos falando de uma banda com um pé no thrash, sem se fechar num só subgênero. Portanto, podemos dizer que é um dos materiais mais extremos do death metal norueguês ainda em desenvolvimento naquele 1989.
Slaughtered in the Arms of God, o título da segunda demonstração, é o Amputated em continua mutação. Quem fizesse o download em duas ocasiões separadas poderia nem notar qualquer vínculo entre ambas as demos e julgar que a homonímia na autoria fosse só uma coincidência! A qualidade do material nos faz perguntar como raios o Old Funeral é hoje bem mais conhecido que o próprio Amputated… Talvez a razão não tenha qualquer fundamentação estética ou musical: lembremos que o OF contou com a breve presença de Varg Vikernes no baixo (já depois da saída de Abbath).
Se a primeira demo era um incontestável deathrash, a 2ª puxa mais para um dark death, resvalando inclusive no gótico, bem soturno e maligno. Embora o thrash não tenha sido completamente olvidado por contarmos com linhas de guitarra derivadas de Possessed e Autopsy, deu-se mais um passo para fugir do template amarradão do “metal mainstream”, se assim podemos dizer, numa cena que estava mudando tão rápido que de vanguarda em poucos anos o thrash estava se tornando a cada novo dia mais sinônimo de clichê. Os blast beats continuam, mas o ritmo não é tão frenético quanto o da primeira demo. O vocal segue na mesma linha, senão mais grave e cavernoso – é quase admirável que se trate do mesmo dono dos guinchos roucos e ásperos dos dois primeiros álbuns do Immortal (não que Abbath não tenha continuado por muitos e muitos discos como vocal, mas mudou, reconhecidamente, o estilo ainda mais, posteriormente, para algo um pouco mais parecido com um vocal death, o que ainda não é deixar seu terceiro estilo de canto condizente com o primeiro!). Não é exagero dizer que nesses registros Abbath pode ter mandado vocais mais baixos e graves que os do próprio Chris Barnes no começo do Cannibal Corpse – para que o leitor entenda o nível quase inumano de gutural aqui alcançado! Nessa “reformatada a meias” que a banda deu no seu estilo de uma demo para a outra, podemos dizer que desincorporou-se um pouco do Deathcrush (Mayhem) que estava injetado no grupo e injetou-se, em troca, mais de Morbid Angel.
Nesse som mais devagar, intenso e controlado, a banda quis transmitir, quiçá, uma maior coordenação sobre seus movimentos, maior domínio conceitual sobre cada instrumento, alterando a feição do som num lapso de poucos meses – com o fito de duas, uma: ou queriam divulgar inteligentemente e com esforços mínimos (6 canções) duas faces de seu versátil talento a fim de atrair o maior número possível de gravadoras; ou a evolução foi autêntica e sincera das unhas à raiz dos cabelos e os músicos treinaram e compuseram muito nessa época, buscando realmente deixar a sonoridade da 1ª demo completamente enterrada. A segunda demo é mais limitada que a irmã mais velha no quesito dimensão, pois apresenta somente 2 faixas. O mais engraçado é que a próxima demo, já como Immortal, será mais diferente da segunda do que a segunda era em relação à primeira: adentraremos no completo raw black metal sem meios-termos!
3. DESAMPUTADO E IMORTAL, MAS RESSAQUEADO?
Hervé Herbaut, dono da Osmose Productions, foi o primeiro representante de gravadora fisgado pelo som do Amputation e se lembra muito bem da transição do som da banda, que observou detidamente. Seria uma história de sucesso com 2 lados felizes: Immortal e Osmose estariam juntos por 6 full-lengths. “O que me atraiu em direção a eles foi esse deslocamento do death metal ao black metal em tão pouco tempo. Falava muito ao telefone com o Demonaz, que sempre nos prometia algo diferente do que ouvimos nas demos do Amputation, e isso foi cumprido quando saiu o primeiro disco do Immortal. Mudando de assunto, a primeira vez que eles vieram fazer entrevistas por telefone à imprensa especializada, no nosso antigo escritório, lembro que o Abbath não parava de vomitar de tão bêbado.”
4. A ERA TRVE–ANTI-TRVE: STORYLINE DA BANDA
A primeira demo do Immortal veio um ano depois da banda abraçar por completo o death metal sob a alcunha Amputation. Incrivelmente, o som estava mais primitivo do que nunca. Mais primitivo e, aliás, menos brutal – como mandava a estética do novo movimento. Não literalmente falando: a estética estava sendo criada, não era imposta, não existam ainda cânones, e o Immortal fez parte dessa forja que se tornaria legendária. O timbre da guitarra e o ritmo inclemente passam uma atmosfera de aspereza gelada, de som frio e setentrional. Esse sentimento inefável ao ouvir a técnica musical do grupo seria depois elevado a trademark do novo gênero, o True Black Metal (o True, em letra maiúscula, servindo para identificar o trio como norueguês, berço territorial da estética que seria exportada mundialmente).
Adeus definitivo aos vocais guturais e estupidamente abissais de Abbath: seu novo estilo era um silvo, ainda gutural, é lógico, agudo, que não vinha mais das entranhas mas da própria garganta, como se o ar não tivesse mais tempo de se elevar dos pulmões e tivesse de ser expelido imediatamente na cara do ouvinte, deparado com o sistema fonador de um ente alienígena alvinegro (referência a sua icônica maquiagem minimalista e monocromática inspirada no K.I.S.S., da qual ainda falaremos bastante). A produção não pode ser considerada perfeita para o mainstream listener, mas é exatamente o som que muitas bandas do reduto black procurariam ano após ano: muito reverb (eco), as notas das cordas e o bumbo tribal da bateria saindo abafados, como duma caverna mefítica. Das duas exíguas faixas dessa demo reinstauradora, Cold Winds Of Funeral Frost (rebatizada …Funeral Dust para o “álbum cheio” na seqüência) seria o destaque máximo.
O que pouca gente comenta é que o Immortal é cronologicamente a primeira banda de black metal norueguesa da second wave. Que me desculpem o maior relevo na cena do Mayhem e o óbvio primor de execuções primordiais (com as desculpas pelo trocadilho cacofônico) do próprio Mayhem (no template BM em si, no De Mysteriis, 1994) e de outros virtuoses como Emperor e Burzum – mas este patinho feio Diabolical Fullmoon Mysticismé quem merece os louros do pioneirismo mais bruto, tosco, cru daquele distante 1992. O som de catacumba das inúmeras demos do BM de garagem do Ildjarn já está todo aqui, em germe; parece que os membros da banda estão tocando a 20 metros do ouvinte, e cada um a pelo menos 5 ou 7m um do outro! A aura é inacreditável.
Dizem que a melhor aclimatação com este álbum (ou este tipo de álbum) só pode ser obtida ouvindo-se-o no meio de uma nevasca noturna. Infelizmente, nós habitantes de terras tropicais jamais saberemos o que é isso. Podemos, todavia, elogiar a sensação de sermos transportados para longe enquanto ouvimos suas faixas em pleno verão ou estação das secas em Brasília, como é o meu caso, e até à luz do sol de meio-dia.
Não que musicalmente seja algo tão inédito. Blood, Fire, Death e The Sign of the Black Mark, para citar só 2 obras do Bathory, têm certamente sua cota de influência nas composições de Fullmoon. Ainda assim, se é que há grande quantidade de imitadores por aí, é raro até os dias de hoje ouvir uma obra de BM que replique exatamente essa atmosfera.
Blashyrkh, uma espécie de nirvana macabro e horrendo, refúgio dos horrores da raça humana, onde se encontra a serenidade em face da imponência da natureza, com suas montanhas de gelo eterno e desertos de neve, espécie de dimensão não-euclidiana “acessada” pelos membros do Immortal e descrita esparsamente nas letras de quase todos os seus álbuns, surge modestamente em Fullmoon, num par de versos perto do final do disco. É na penúltima faixa, Blacker Then Darkness, talvez o ataque mais intenso (a segunda canção mais rápida, e certamente aquela com mais wall of sound e atmosfera mais ominosa) desferido no disco. Depois o conceito seria revelado mais integralmente aos fãs em canções como A Sign for the Norse Hordes to Ride (Pure Holocaust) e o tema-título de At The Heart of Winter, e ganharia seu próprio hino, Blashyrkh (Mighty Ravendark), epílogo do 3º disco, Battles in the North.
A explicação lógica para essa criação do imaginário vem de Demonaz: “Quando começamos nisso, nos sentíamos realmente sozinhos; era uma comunidade muito reduzida de pessoas no extreme black metal aqui em Bergen. Talvez 4 ou 5 pessoas, contando comigo e o Abbath. Nos sentíamos em antagonismo para com todos os outros. Já que quando nos reuníamos entrávamos no nosso próprio mundo, formamos o reino de Blashyrkh. Ele evoluiu ao longo dos anos, e de cada novo álbum, mas essencialmente ainda é o mesmo, se baseia no mesmo espírito. É um lugar que só nós temos a chave para abrir. Não é uma mitologia, uma criação literária, por exemplo. É uma forma de sentir o poder. Uma mística, uma experiência. São nossos lados negros, propriamente falando, que atravessam. O Immortal compõe dentro do Blashhyrkh. É nossa maneira sui generis de descrever nossos entornos e imediações.”
Até as efêmeras partes com guitarra acústica compõem maravilhosamente bem os interstícios de Fullmoon. Ao contrário de outros raw black metal, este disco possui até solos. Nada perto de Van Halen ou do thrash; mas nada tão repudiável como um risco de giz no quadro negro feito de sacanagem pelo professor que requer a atenção da turma, nem nada tão baixo ou encorpado como um solo de Pantera, que faria um fã de Immortal torcer o nariz. São mais melódicos e longos do que uma banda primitiva costuma acoplar a suas composições; entretanto, pode-se dizer que não são estranhos ao contexto.
Pesando todos os fatores, talvez seja este o canal mais acessível do forasteiro ao movimento True Norwegian Black Metal, pois há mais elementos do protoblack metal (anos 80) que nas demais bandas da cena (Gorgoroth, Enslaved, Darkthrone), o que não significa falta de inovação, já que teclados não eram solução comum em 92 para esse gênero tão iconoclasta, e o Outro (desfecho) do disco utiliza-o magistralmente para dar aquele toque de minimalismo e melancolia, não muito distante do timbre de guitarra mais depressivo e esquizofrênico de um Burzum, em termos de efeito ocasionado no ouvinte.
Aquele que se aventurar, eu diria, pelos 3 primeiros alguns do Immortal, deverá ser avisado: a ênfase está menos na memória individual das composições e mais no efeito hipnótico que a reprodução de todas as faixas em conjunto produz no ouvinte. Ia dizer no efeito hipnótico que desperta – mas seria uma contradição em termos. Ao ouvido destreinado ou intolerante, soará repetitivo, sem dúvida. Ninguém será visto assoviando riffs de Fullmoon Mysticism ou Pure Holocaust no meio da rua ou na fila do caixa…
Vale lembrar que Armagedda, baterista seminal da banda, gravou o Fullmoon mas já não estava no Pure Holocaust, de 93, cuja bateria foi gravada pelo próprio hiperativo Abbath, guitarras/vocais/batera da banda nestes tempos. Abbath não largaria a percussão até o 4º disco. Para apresentações ao vivo no período, foi recrutado Erick “Grim” Brødreskift, que se suicidaria em 1999 (ele também passou por outros grandes do gênero como o Gorgoroth). Em tributo, o Nargaroth compor-lhe-ia Erick, May Thou Rape The Angels (Erick, Que tu estupres os anjos). Singelo!
“O Pure Holocaust foi marcante pra mim”, diz Peter Tägtgren, frontman do Hypocrisy e produtor dos 4 álbuns do Immortal entre At The Heart of Winter e All Shall Fall (1999-2009), além de empunhador do baixo em algumas exibições ao vivo da banda no século XXI. “Sempre estive na cola da Osmose para tentar trazer os caras para minha gravadora. Por uma ou outra razão, nunca ‘captaram minha mensagem’, isso até que se passasse meia década.” Essa entrevista foi concedida em 2009. Do Pure Holocaust aos 5 anos citados, migramos, assim, de 93 a 98, ano em que Tägtgren finalmente firmou contrato com o Immortal.
Com sua capa branca cor da neve – faceta sem precedentes no black metal – Battles in The North (1995) cimentou a lenda Immortal – imortalizou os membros no hall da fama? Mais ou menos. Não é que o Immortal não tenha produzido e não produza sempre barulho, clamor e algazarra em discussões exaltadas sobre o BM. O que não está nunca garantido de antemão é se se trata de louvor do mais enaltecedor ou de puro repúdio e ojeriza. Numa palavra, o Immortal ingressou no hall da (in)fâm(i)a do black metal, por colidir com vários cânones do gênero (que eles ajudaram a fundar, veja a ironia). Sinceramente, a “capa branca de neve” foi só um pretexto para os fundamentalistas empilharem outras razões de “por que não vamos com a cara do Immortal”. Começaram a pipocar questões como: “Por que Euronymous (do Mayhem) ajudou esses caras? Eles não são satanistas de verdade, nem pagãos, nem fascistas, nem queimam igrejas! Não são homofóbicos, não ameaçam outros membros certinhos da cena, não brigam, não matam – eles só tocam música mesmo?! O que eles fazem usando a label black metal – e, pior, True Norwegian?! Quem o Abbath pensa que é pra inventar um novo estilo vocal no subgênero, esse coachar de sapo irritante? E que poses ridículas são essas nos clipes e apresentações? Eles são uma auto-sátira? Qual é a desse corpse paint mainstream e fanfarrão? Por que eles melhoraram a produção depois do 1º CD e agora incorporam elementos do ‘inimigo’ thrash?” Todas questões, como se vê, irrelevantíssimas ou boçais, se é que não meramente retóricas, posto que de respostas muito óbvias. Mas é justamente por isso que tais questões são de importância para o fã xiita da “cena underground”, o imbecil médio das legiões de adoradores (e odiadores, na maioria do tempo).
O videoclipe da música Grim and Frostbitten Kingdoms, icônico até mesmo para comentaristas de Youtube deste 2022,não ajudou a diminuir a “polêmica” em torno do trio à época, ousando usar a paleta de cores “inversa” à preconizada pelos “metaleiros extremos”. Dizem que os ouvintes mais contumazes da banda podiam morrer de overdose de vocábulos como frostbitten (quando tecidos orgânicos ficam inutilizados ou gangrenados devido ao frio intenso) ou grim (vários adjetivos em português, todos eles ominosos – eis um deles!). Ou seja: bandas com personalidade e uma estética definida, se não fosse uma estética ou outra (de uma das outras três bandas trve do movimento, todas de Oslo ou Bergen), estavam terminantemente proibidas – “FORA IMMORTAL!!!”
A despeito do exagero [não era tão preto-no-branco (pun) assim, a banda sempre dividiu opiniões, mesmo nesses setores mais subterrâneos cheios de “opiniões instintivas”, i.e. acéfalas, nunca sendo consensualmente idolatrada ou execrada, para dizer a verdade e ser mais fiel aos fatos] que eu promovi nos 2 parágrafos anteriores, ele é simétrico ao exagero caricato dos críticos linha-dura, por isso o estilo histriônico veio bem a calhar para falar da singularidade chamada Immortal dentro desta outra singularidade chamada cena black-norueguesa. Seja como for, um elemento discreto que chama muito a atenção neste clipe minimalista acima citado é Jan Axel “Hellhammer” Blomberg, o baterista mais rodado da galáxia. Aparentemente ele não quis usar corpse paint para gravar – o que significa que ele achava coisa de poser o tipo de maquiagem adotado por Abbath e Demonaz… ou que isso fazia parte de alguma piada ou sarro do trio perante o público preconceituoso, ou nenhuma dessas duas coisas… Só estou aqui especulando para alimentar mais debates xiitas, cof cof… Fato é que o baterista em questão parece um Jesus Cristo deslocado no clipe! O que deve ter aumentado a raiva de alguns não-simpatizantes é que Hellhammer é tido por muitos (pelo menos na década de 90) como o baterista de técnica mais abençoada no gênero. Impossível ter alguém mais trve no kit, em outros termos. Quem acha que o Immortal não é trve, perdeu uma grande batalha ou recaiu em contradição quando meteu o pau no clipe…
O Battles In The North vem a ser o disco do Immortal favorito de Herbaut, chefão do estúdio que o lançou: “Foi arriscado lançar essa arte branca, fomos e ainda somos muito insultados por causa disso. Mas, musicalmente falando, eu estava totalmente boquiaberto com a direção que a banda adotou, e muito confiante nos resultados!”
Blizzard Beasts (1997) é a quarta obra de estúdio. A partir do processo de elaboração de BB e da turnê subseqüente, Horgh passou a ocupar o posto de baterista, onde se sedimentaria. Porém, não é segredo de ninguém que em muitas das gravações, tanto na deste quanto na de 2 dos discos pretéritos, Abbath é que “sujou as mãos” no kit. Este álbum é bastante criticado, e autocriticado, diríamos, pois assim se expressou Abbath sobre BB (em 2007): “Tentamos tocar rápido além da conta”. Até o fã de longa data e futuro produtor Tägtgren tende a concordar. “Blizzard Beasts foi um álbum caótico. Eu não conseguia acreditar nos meus ouvidos quando pus o disco para tocar a 1ª vez. Puta merda! Que porra é essa?! Era tudo muito intenso, muita coisa rolando, e o som estava uma merda! Eu fiquei sem entender!” Adianto que discordo ao extremo: Blizzard Beasts é meu favorito do Immortal. Mas chegaremos num espaço em que eu tenha mais espaço para emitir esses juízos pessoais, se é que me entendem…
Segundo a perspectiva da própria banda e do novo encarregado dos últimos retoques de estúdio, a obra seguinte, At The Heart of Winter (1999), foi a redenção, uma gélida e polar vingança do jeito que o Immortal gosta de promover. Foi neste ínterim que a grave tendinite de Demonaz arrancou-lhe a guitarra. Abbath tocaria, portanto, os dois instrumentos de cordas em estúdio. A crítica especializada gostou da injeção criativa que esta mudança não-planejada trouxe ao som: a conceituada Terrorizer deu nota 9/10 ao trabalho. “At The Heart of Winter não deixa de ser um ponto de transição para todos nós. O Peter nos ajudou a achar o som correto para a banda.”
Antes de gravar Damned in Black no ano seguinte, Abbath passou o baixo para Stian “Iscariah” Smørholm para se concentrar na guitarra e na voz. O pessoal também não curtiu muito este álbum “preto” (na estética de capa e no título) e “death”, i.e., conceitualmente oposto ao black como a água ao óleo ou o yin ao yang. Foi o capítulo de encerramento com a produtora Osmose. Herbaut diz que isso não teve nada a ver com qualquer discórdia, já que a decisão de sair foi da própria banda. “E a verdade é que nós não tínhamos a grana que eles pediram para renovar, o que eu acredito que fossem uns 280 mil euros, se não me engano.”
Como se já não abundassem os motivos para serem repelidos por facções ortodoxas do underground, o Immortal fechou com o selo mainNuclear Blast. Sua nova “casa” seriam os estúdios e as pastagens bem verdes de Donzdorf, Alemanha. Até hoje o contrato é confidencial, então ninguém sabe o vulto da grana envolvida. No começo de 2002 saiu o primeiro filho desta parceria, Sons of Northern Darkness, título que saiu de um verso da canção Storming Through Red Clouds and Holocaustwinds (Pure Holocaust, 1993). Considerou-se um “retorno ao acme” para os artistas. Mas seria a última gravação da banda por pelo menos 7 anos e meio.
No quesito “exaltar a magnitude das paisagens naturais”, talvez o Immortal seja a legítima primeira eco-black metal band, antecedendo-se em muito à hoje popular Wolves in The Throne Room e suas tantas loas à região setentrional da Cascádia (abrangendo o ecossistema de vários estados dos EUA e do Canadá), zona de proteção ambiental que seguirá tanto melhor quanto menos for tocada pelas oleosas mãos do homem capitalista. Ao todo, o Immortal compôs cânticos ecológicos e macabros (no sentido blackmetaliano) 15 anos mais cedo; mas por alguma razão insistem em se lembrar mais dos passinhos de caranguejo do Abbath…
“Eu não me envolvo com política ou religião, e o Immortal não é um palco ideológico ou um culto – isso é para bandas punk”, esclarece Demonaz. Nisso, Wolves inThe Throne Room são realmente outros quinhentos: eles são notórios anti-trumpistas, “esquerdopatas”. Os europeus são infinitamente mais comedidos nesse tocante. “O que nos mobiliza ou concerne são o épico, o apocalíptico, o sentido sombrio das coisas, que leve uma assinatura escandinava – sempre do ponto de vista da Escandinávia. Sou indiferente à religião; não tenho o que dizer sobre pessoas que pregam ou profetizam; nem contra ou a favor, porque esses fenômenos não me tocam, eu desconheço qualquer relação com esta esfera. Claro que eu posso dizer que me associo a humores diabólicos, a uma atmosfera nebulosa e densa, coisas que existem de verdade. Posso considerar como nosso tema a escuridão de um modo geral.”
Sobre a Mãe-natureza e seu lado imprevisível e decerto retaliador, Demonaz considera que não teremos tempo para testemunhar as piores hecatombes conscientemente: “Penso que as pessoas subestimam a natureza. Acho que a maioria esmagadora não tem qualquer conexão com ela, não a freqüenta nem a busca, portanto não a sente. A natureza não julga moralmente; não teria qualquer problema ou hesitação em destruir a humanidade de uma vez; pode acontecer de repente, a qualquer dia. Eu acho que de alguma forma nossa era é a era desse final, que se aproxima. É meu sentimento profundo. Quando penso nas coisas que o homem promoveu em larga escala, creio que, se pudesse encarnar emoções humanas, ter algum propósito, a natureza gostaria de executar uma vingança sobre nós. Esse aliás é o principal mote do nosso All Shall Fall (2009).”
Oitavo full-length desta incansável horda de guerreiros monocromáticos, construído sobre um pântano de riffagens monstruosas, degelos, abominações e as promo photos intencionalmente ridículas de sempre, ASF, dentre nós há mais de uma década, ainda pela Nuclear Blast, é um daqueles retornos comemorados ou contemplados com assombro. Não é só a mãe-natureza que parece ter uma agenda maligna por meio deste disco: o trio, saído de um exílio auto-imposto, parece querer congelar e brutalizar todo o público musical a seu alcance em mais uma empreitada.
Por que a banda jogou a toalha por tanto tempo? Abbath Doom Occulta (primeira vez que cito o nome artístico completo de Olve Eikemo, que também quase nunca é conhecido pelo seu nome de batismo!), guitarra e vocais, Reidar “Horgh” Horghagen, o baterista que acaba de entrar no seu radar, e Stian “Iscariah” Smørholm (ex-baixista, que não voltou com a formação do All Shall Fall) haviam decidido fechar as portas por tempo indeterminado, embora seguissem bastante ativos musicalmente. Cada um deles se dedicou a projetos paralelos de menor ou maior porte. Iscariah se incorporou ao Dead to This World, grupo de blackthrash. Horgh pulou no barco do Grimfist, um grupo de thrashers mais puristas (além de ter participado do Virus, álbum de 2005 dos compadres do Hypocrisy), e Abbath, por fim, fundou um supergrupo chamado I, como já antecipáramos. Só tinha faltado dizer que Armagedda, o primeiro baterista do próprio Immortal, voltou a trabalhar com Abbath. Demonaz que nunca abandonou o Immortal de verdade, estando sempre nas composições e nos bastidores após a séria lesão em seus braços, também empreendeu sua jornada individual-conquanto-em-equipe, i.e., decidiu colaborar novamente com seu grande amigo Abbath, que por sinal é também seu ex-cunhado (podendo-se dizer que o filho de Abbath sempre o chamará de tio, ou seja, que os dois, além de um vínculo artístico de décadas, são praticamente parentes de sangue). As letras do material gravado pelo I, portanto, são da pena de Demonaz. O único full até hoje, Between Two Worlds (2006), é elogiadíssimo.
“A verdade é que precisávamos dar um tempo. Há muitos porquês, mas não quero entrar em detalhes sobre isso. Não éramos inimigos internamente, mas lidávamos com um nível considerável de problemas, vindos sobretudo de fora, e isso repercutia em nossa relação, evidentemente. Nós 3 sabíamos, do fundo de nossos corações, que era só um hiato, não um fim, mas também não queríamos sair e divulgar isso para a imprensa, falar em datas, deixar pessoas na expectativa. Trabalhei no I e quando me apercebi já estávamos reunidos em estúdio gravando material novo, isto é, o Immortal estava ressuscitado. Eu sempre soube que esse dia chegaria, e não tive nenhuma ânsia, para que acontecesse de forma natural.”
Abbath
“É fácil cair numa armadilha deixada por uma de dezenas de companhias e grandes gravadoras, e ver vários pedaços seus sendo abocanhados por manchetes insidiosas, uma pessoa aqui, outra ali. Os interesseiros. Não quisemos que o Immortal afundasse nesse ciclo. Antes que saísse do controle, preservaríamos a instituição.”
Demonaz
A propósito, já que essa entrevista da qual peguei a maioria das declarações dos membros do Immortal que traduzi foi realizada em 2009, ano do penúltimo álbum do artista, e já que todo blackmetaleiro gosta duma fofoca ordinária, Abbath foi perguntado sobre seu ex-colega Varg Vikernes, solto da prisão em maio de 2009. Depois de 16 anos de reclusão pelo assassinato do guitarrista Øystein “Euronymous” Aarseth, queriam saber do músico se ele já havia trocado uma idéia com o antigo companheiro de banda, o que ele gostaria de dizer a respeito disso tudo, etc.: “Não tenho nada contra o Varg; ele não fez nada comigo ou contra mim. O que ele fez, o que aconteceu, foi trágico; e não gostaria de tocar nesse assunto. Ele serviu seu tempo e está livre, e desejo que tome decisões melhores no restante de sua vida.” Inteligentemente, e sem ser grosseiro, Abbath mostrou que não tem nada a ver com os ‘feitos’ do outro, e a entrevista seguiu rumos mais objetivos!
“A capa do novo álbum (All Shall Fall) retrata os portões de Blashyrkh”, elucida Demonaz. É apenas o 2º disco da banda sem uma foto do grupo, com algo simbólico no lugar dos rostos dos músicos em maquiagem pesadíssima. O formato do portão é o de um corvo bicéfalo – portanto, temos a paleta de cores mais escura dessa vez, se alguém se importar. “Não foi demorado conversar com o Abbath sobre a arte e chegar à conclusão de que era hora de deixar o público conhecer um pouco mais de Blashyrkh, ainda que apenas o umbral, a entrada. Sempre gostei do conceito por trás de Beyond The Gates do Possessed. Acho que o espírito aqui é o mesmo.”
“Para mim a era da internet é a idade das trevas. As pessoas podem ver tudo sem se conectar com mais ninguém. Acho que isso esconde uma espécie de desespero generalizado. Muitos grupos musicais estão neste mesmo desespero. Farão qualquer coisa para ser notados. Não pensam duas vezes em se inscrever para programas como o American Idol, se expor numa variedade de reality shows… O limite da vida privada que eles expõem no MySpace ou Facebook quase não existe! Tudo, absolutamente tudo hoje, é na base da autoexposição. As pessoas são inseguras, estão lá, sentadas em casa, tirando centenas de fotos delas mesmas e publicando na internet. Acho que uma quantidade relevante de pessoas sente uma crise de identidade por tocar a vida dessa maneira.”
Demonaz
Depois de conseguir derrubar uma série de perfis do Facebook que se faziam passar por ele, Abbath concorda com a perspectiva de Demonaz sobre a Era da Interfossa, como chamam. “Não tenho redes sociais, só uso a internet para trocar e-mails. Fiz nosso agente postar no nosso site oficial sobre impostores: qualquer um que aparecer se dizendo o Abbath, que os fãs saibam que não sou eu, não dêem ibope. Não tenho problemas com o pessoal dos memes, do humor, que tira sarro da estética do grupo e tal. Mas somando iniciativas particulares tudo isso pode virar um oceano caótico. Tudo bem parar um pouco e se divertir, mas dedicar a vida a emular um determinado outro, ou a opinar sobre o outro? Essa é sua vida? Que porra é essa que o mundo virou?”
Demonaz é ligeiramente mais conciliador que seu parceiro: tem um MySpace (lembre-se de que a entrevista é de 2009) e, claro, um endereço eletrônico de caixa postal. Mas ele diz que o negócio é “não moscar” nesses espaços. “Lido com as novas tecnologias a minha maneira. Todos se deixam afetar demais por essa coisa toda; respiram a world wide web, não podem viver sem ou fora. Olha, me sinto muito feliz de ter crescido antes de tudo isso. Meu público, meu trabalho já estavam sedimentados quando começou essa era. Bom, diria que ter um equilíbrio na vida pessoal só ficou mais difícil nesse novo milênio – eu até diria que o Blashyrkh faz parte da nossa resposta para esse dilema, a busca de um equilíbrio pessoal, de uma integridade apesar da sociedade da informação lá fora.”
Pode-se dizer que a maquiagem do Immortal é a mais característica e marcante desde o K.I.S.S. Muitas vezes a “arte facial” de Abbath é sinônima de black metal em si, goste-se ou não. “É simples e direta. No comecinho da banda, usávamos só a parte branca da maquiagem. Um dia fiquei de frente para o espelho e comecei a experimentar uns lances. Fiz isso que você está vendo aí, uma coisa meio Gene Simmons mesmo, com a maquiagem preta, e encaixei no restante da maquiagem branca que já usava. Imediatamente senti que era isso! Mostrei pro Demonaz e ele foi tão rápido quanto eu em concordar. Muita gente acha graça, acha burlesco. A gente se fode pra isso. Nós damos a última risada sempre!”
Para Abbath, a “pintura de guerra” (corpse paint pode ser chamada também de war paint no estilo) é o que facilita sua transformação de Olve Eikemo para uma besta da tormenta parecendo um urso bípede de armadura ou um emissário do deus-trovão, uma espécie de Hermes que deve comungar com as massas: “A maquiagem me torna Abbath; eu sempre sonhei com isso, desde moleque. Como Alice Cooper diz que foi o caso dele no documentário Don’t Blame Me, sou do clube dos dupla-personalidade!”
Para Demonaz o ritual não é menos importante, embora no momento desta entrevista ele não subisse mais ao palco. “Mesmo assim eu ainda me maquio, como nos velhos tempos. A última vez foi para a sessão de fotos do All Shall Fall.” Talvez de um modo ainda mais crucial, a maquiagem demarca a separação dessas entidades, Demonaz e Abbath: Com o I e sua banda particular cover de Motörhead, Abbath não usa corpse paint. Demonaz, da mesma forma, está usando o rosto limpo nas promo photos do seu próximo projeto, dessa vez individual mesmo (sem Abbath), epônimo. (O álbum, March of The Norse, é de 2011, mas como eu-lírico de quem realizou recentemente uma entrevista, ficaria meio esquisito jogar a obra para um passado remoto!¹ Por razões que ficarão evidentes ao longo desta matéria, MoTN foi o único álbum do copyright Demonaz.)“Neste caso, o cosmético representa muita coisa: sem maquiagem, sem Immortal!”, ambos são concordes.
¹ Juízo pessoal acerca da obra: muita espuma para pouca qualidade. Um disco de power metal “sujo” e lento aparentemente apreciado pela crítica; para mim, riffs sem-graça repetidos ao longo de arrastados 40min. Dispensável. Veja este parágrafo de uma resenha: “É fato que escutar um mesmo padrão simplificado de novo e de novo pode causar ou induzir um estado de transe. Simples como são, as composições geram esse efeito. Após muitas ouvidas, cheguei à conclusão de que o efeito foi pensado antes da composição, este álbum foi planejado milimetricamente. É como se cada música fosse um riff e MotN se reduzisse a uma única canção com 9 riffs.” É exatamente isso: chatice – se planejada ou não, deixo a critério do ouvinte! Para encerrar, mais um fragmento, de outra resenha, para o pessoal técnico que entende de notação musical: “Eu posso jurar que, tirando a intro acústica e o interlúdio, TODA FAIXA DO DISCO TEM O MESMO 6/8 COM GALLOPS!”
“Nunca vou esquecer uma certa noite de 1991. Eu e o Abbath estávamos remando num barco da vó dele, do lugar que a gente morava até uma ilha. Usávamos maquiagem completa e caminhamos em terra a noite toda bebendo uísque quando chegamos. Nos separamos e trilhamos por uma hora até nos reencontrarmos. Queríamos sentir a atmosfera, aquele silêncio. Havia uns turistas lá e acho que nós demos um puta susto neles. O pânico deles era ver, na calada da noite, dois elementos que eles não compreendiam, que eles não esperavam em absoluto encontrar. Lá pelas 5 ou 6 da manhã, voltando para a casa do Abbath, vimos que as ruas estavam estranhamente desertas, ninguém por perto. Um ônibus escolar estava parado na estrada de terra, o motorista sozinho. Acho que se ele pudesse esconder o veículo no mato ele o teria feito, quando nos viu. Tudo isso foi porque aqueles turistas nos viram e logo espalharam a notícia que dois malucos, selvagens talvez, demônios, estavam andando por aí. Realmente é de se pensar: o que eles achavam que nós queríamos com eles ou o que nós estávamos fazendo de verdade?” Demonaz
Essas sessões de varar a noite com corpse paint se tornariam a base para a comunidade místico-xamanística que foi criada entre Abbath e Demonaz, sempre com um terceiro membro alternativo, em meio à atmosfera enclausurada do Immortal. No ano de 2009 os dois foram em setembro para uma espécie de “acampamento” ou “jornada” por Lofoten, nas regiões setentrionais mais remotas da Noruega. Esse é o conceito de férias (e nunca diga “férias de verão” quando o assunto for Immortal!) desta dupla! “É um lugar sensacional de onde se pesca praticamente todo o bacalhau norueguês”, Abbath esclarece. “Nós vamos a essas montanhas e sempre encontramos novas inspirações boreais para novas composições!”
Já divorciado, Abbath no entanto revela que mantém uma relação muito amistosa e próxima com a ex-mulher, irmã de Demonaz, conforme já situamos. Hoje (2022) o filho desse casamento tem 27 ou 28 anos. Para eles, parentesco genealógico é um de seus vínculos secundários ou casuais, em que quase nunca meditam. “Eu e o Demonaz compartilhamos da mesma cosmovisão, ele é minha outra metade; cruzamos a mesma encruzilhada – sempre foi, sempre será. Raramente nos desentendemos.” Mais adiante vamos ver que sinuosas curvas essa relação umbilical apresentou ao longo do tempo!
“O Abbath pode me ligar no meio da madrugada e sem esperar nenhuma frase eu vou interrompê-lo para dizer: ‘Caralho, eu tava pensando nuns riffs!’… E ele: ‘Pois é, foi por isso que eu te liguei!’. Estamos em diálogo sem estar, é assim continuamente. É quase telepático.”
Como dito, Demonaz teve uma séria lesão nos braços que o impossibilitou de continuar tocando em alto nível (ainda mais riffs de metal extremo) em 1999, mas ele nunca deixou de estar em todo show, no camarim, trabalhando com a banda, estabelecendo contatos, fazendo o social e participando da parte criativa em si: “E se eu não estiver lá na hora, o Abbath não vai tocar do mesmo jeito. Temos essa conexão espiritual. Trabalhamos juntos há pelo menos 20 anos, não é como se fosse uma coisa de ontem!”
“Não seria o Immortal sem o Demonaz e suas letras, então é bom tê-lo ao lado para os shows”, Abbath endossa. “Ele está sentado ao meu lado no hotel enquanto faço a maquiagem. Temos um papo, eu ponho Motörhead nos fones – eu sempre coloco Motörhead quando estou fazendo esse ritual pré-show. Durante o show ele fica entre o cara da mesa de som e o cara das luzes e vai controlando e gerenciando tudo de um ponto de vista privilegiado: ‘Mais fumaça! mais gelo seco, porra!’.”
Para Demonaz, esse ritual tão consagrado do amigo é “parte da magia”: “Um dos melhores momentos para mim sempre vai ser essa meia hora antes de uma apresentação, antes de subir no palco, quando o Abbath está retocando o rosto e estou por perto. Sentimos evidentemente aquele frio na barriga de mostrar ao mundo e aos interessados o nosso trabalho, as nossas entranhas. Adoro essa parte: eu gosto quando antes da batalha soam as trombetas!”
Em 2007, por exemplo, a banda, quase sempre em trio sem contar o “quarto elemento” Demonaz, isto é, a dupla fixa do Immortal mais 2 músicos de estúdio e de palco, preparava-se para expandir a irmandade dando as boas vindas a O.J. “Apollyon” Moe, numa das constantes mudanças de membros seja no baixo ou na bateria, os instrumentos não-originariamente manipulados por Abbath a não ser em caso de necessidade. Apollyon é mais conhecido por seu desempenho no posto de baixista com a banda de black-thrash de Oslo Aura Noir. “Foi um convite bem direto e informal do Abbath para me juntar à banda, e meu sim foi imediato. Immortal é uma das poucas bandas que me fariam dar esse aceite instantâneo, sem reflexão. Gosto de todas as fases do Immortal. Sobretudo nos shows – o Abbath é um rei do entretenimento, e o Horgh tem uma presença de palco inigualável. E em vez de recear a responsabilidade só me veio à mente: com tudo isso, eu não posso arruinar nada, vai dar certo com certeza!”
Como Apollyon mora a 10 horas de carro da sede dos ensaios do Immortal, eles não se reuniam tanto assim nessa formação. “Não, não fazemos tanto, no quesito quantidade, mas compensamos em intensidade quando por fim nos reunimos. Antes de um show específico ou uma turnê, faço uma viagem para ficar uma semana ‘enterrado’ no estúdio e ensaiamos todo santo dia. Mas é aquela coisa: somos veteranos, não precisamos mais ensaiar tanto como antigamente, tudo que cada um de nós faz já fez muito na vida! É até perigoso ensaiar demais porque você acaba cansando do seu material, e você pode identificar um músico enjoado de suas performances assistindo-o. É fácil notar a diferença do artista estimulado para aquele que não está. Então creio que esse é o melhor arranjo de todos.”
No momento dessa entrevista que transcrevo, a banda, curiosamente, antes mesmo da turnê do All Shall Fall, vislumbrava um rápido próximo disco, já contando com 4 canções inéditas. Não sei se saberemos um dia exatamente quais eram, nesse ponto. Abbath declarou àquela época que não levariam outros 8 anos para lançar mais uma obra. Ironias da vida… Abbath atribuía à mãe-natureza, de qualquer maneira, a última palavra, misturando, mais ou menos, o destino da banda, as letras do Immortal e o papo anterior sobre Juízo Final: “A humanidade nunca mudou tanto em tão pouco tempo. Não sei se veremos o fim do mundo, mas será definitivamente o fim do que costumava ser. Prepare-se para o caos com um belo sorriso no rosto – encare a coisa sem medo. Ouça Immortal.” O carrasco ou Anjo marqueteiro? Talvez. Carismático? Com toda a certeza!
Depois de ler tantas menções a uma relação transcendental de amizade e trabalho entre Abbath e Demonaz, aspecto que eu desconhecia antes de entrar nessa “terceira ou quarta” jornada de “Immortal da manhã à noite”, me propondo a pesquisar mais sobre a banda para completar a história do EVOLUTION OF THE CULT, fiquei ainda mais pasmo com o desenrolar dos últimos acontecimentos, i.e., o que aconteceu com o Immortal de 6, 7 anos pra cá. Vamos por partes!
“Sobre o Northern, se escutá-lo bem você entenderá por que não aposentamos a banda. Tivemos complicações e desentendimentos no passado, com o Abbath, em 2003, então o melhor foi parar por um tempo. Quando aconteceu uma segunda vez (2015), para mim ficou claro que tínhamos de seguir cada qual seu caminho. E confesso que esse álbum não estava nos planos[lembra que eles já estavam com este novo álbum semi-gravado?]. Quer dizer, na verdade, sempre que eu sento para criar e compor, com quem quer que eu esteja trabalhando, sempre sento para criar o álbum definitivo do Immortal. Com cada álbum foi assim. Estamos bem sem o Abbath, podemos lidar com isso. Aconteceu, e ele está em outra e nós estamos aqui, simples assim.”
Não acho que seja simples assim!…
“Não trabalhamos conceitualmente. Fomos gravando canção por canção. Tudo foi inspiração natural. Quando se fala em tocar guitarra, todo mundo tem um estilo que se desenvolve de acordo com os anos e se torna sua assinatura, de certa forma. Em nosso inconsciente, certamente queríamos trazer à tona algo que fosse 110% Immortal. Começamos do zero em 2015 com a faixa de abertura do novo álbum. Queríamos algo bem veloz. Daí nós seguimos o flow, criando o álbum composição por composição. Não havia planos prévios de forjar o material numa unidade de estilo assim ou assado, e acho que nunca estivemos tão focados no songwriting (na composição) como agora. Quando você faz parte duma banda, seu maior desejo é fazer uma gravação melhor ainda que a última em que trabalhou. Com este, não acho que deixamos o último (agora penúltimo) do Immortal para trás, acho que simplesmente nos deslocamos da estética de muitos deles. (Risos)¹ Tem muito de um feeling old school neste disco. Claro que, ao meu ver, este feeling brilha junto com nossas influências thrash de sempre.”²
¹ O que queria dizer Demonaz? Que ele não gostava das opções criativas de Abbath? Não ouvi essa entrevista, mas pelo texto sinto uma espécie de sarcasmo amargurado!
² Notou o paradoxo?! O Immortal já foi uma unidade, uma dualidade ou trindade, metamorfoseando-se muito no passado. (Abbath+Demonaz+alguém nos atribulados 1990, ou ainda Abbath+Horgh+Iscariah de 1999 a 2002 ou Abbath+Horgh+Apollyon de 2006 a 2015, a formação mais estável até hoje – Demonaz, desde 1997, por sinal, era apenas o “quarto elemento” nessa conjugação trinitária, atuando nos bastidores ou “das sombras”, com o beneplácito de Abbath, é claro; não uso “das sombras” aqui em qualquer sentido pejorativo, mas o fato é que devido a sua lesão ele não era membro oficial – ou pelo menos instrumentista – da banda, ele não subia aos palcos, exercia relativamente pouca influência e controle artisticamente falando; podemos dizer que um engenheiro de som possuía o mesmo peso que ele na banda, descontando as contribuições de lyrics, que, aí sim, são algo mais mensurável em termos de criação compositiva – parece-me que ele não criou hora alguma riffs ou solos de guitarra, p.ex.! A formação atual é tão descaracterizada que o Immortal, que quase sempre foi um trio – configuração já considerada exceção em bandas com guitarra e baixo –, atualmente – ou oficialmente até 2020, já que por ora o nome encontra-se impugnado, e não temos acesso a muito mais informação que isso – é constituído somente de Horgh e Demonaz, e Apollyon, o baixista das gravações de Northern Chaos Gods, saiu da banda antes do lançamento do álbum, ainda em 2017…) Agora que o matrimônio se esgotara, Demonaz tenta abstrair todo o passado, e, sobre aquela coisa de irmãos criativos, que trabalhavam por telepatia, nada mais resta – mas não engana ninguém, sabemos que ele compartilha muito do estilo estético do próprio Abbath. Criticá-lo seria fazer uma autocrítica. Elogiar o novo som da banda é a mesma coisa que elogiar as origens e os trabalhos com o Abbath – que sinuca de bico, hein, meu velho?! Para músicos que já passaram dos 50, é praticamente impossível, ainda mais mantendo-se no subgênero, reinventar-se, a essa altura do campeonato. Ele mesmo o sabe, pelo que declarou sobre como um guitarrista compõe e toca, mas não o admite abertamente – o marketing sempre fez e sempre fará parte do black metal, por mais autêntico que ele seja face a outros estilos “modinha”. Nós, a crítica, só estamos aqui para apontar essa contradição, que os fanáticos do gênero querem chutar para debaixo do tapete, mal disfarçando o volume de poeira! É claro que quando um décimo segundo jogador de um time entra em campo, ele vai ser vaiado ou aplaudido de acordo com o desempenho de toda a equipe, e o mérito ou a culpa nunca é todo(a) dele – é essa analogia que eu faço aqui.
Abbath o grupo, segunda formação. A quarta da esquerda para a direita é a brasileira Mia Wallace, do Nervosa.
“A banda aluga um espaço para ensaios, e os custos vinham sendo divididos entre os últimos três membros da banda, Abbath, Demonaz (Harald Naevdal) e Horgh (Horghagen Reidar). Harald e Reidar não queriam mais pagar sua parte do aluguel, já que a banda, na opinião deles, estava inativa. Olve (Abbath), como songwriter hegemônico da banda, dependia pessoalmente desse espaço, e manifestou interesse em continuar arcando com o aluguel sozinho. Os outros dois simplesmente abandonaram o arranjo e deixaram por isso. Olve entendeu esse gesto como uma dissolução da banda.”
Advogado de Abbath, via comunicado à imprensa.
Esta carta divulgada à imprensa ainda argumenta que Nævdal (Demonaz), por ter estado 18 anos sem tocar guitarra, e Horgh(agen), por ter-se limitado a tocar a bateria, não sendo compositor majoritário de canções, não poderiam responder em nome do Immortal. Além do mais, Abbath alega, e de forma muito convincente, aliás, que ele e seu pseudônimo se tornaram praticamente sinônimos da marca IMMORTAL™, sendo compositor principal e frontman, i.e., aquele que fala – além de cantar – pela banda – todos sabem que o vocalista é o mais filmado e visualizado, aquele que sai centralizado nas fotos de divulgação, etc., etc.! Co-fundou a banda e nunca esteve de fora de nenhum trabalho da mesma. Como musicista profissional, desta forma, Abbath, diz, não poderia viver, ou seria injusto e complicado viver, sem os dividendos resultantes do vínculo empregatício com o Immortal. Ou seja, para Abbath, quando os dois colegas saíram da jogada, a banda se dissolvera, mas ele ainda era a banda, e para ele estava fora de cogitação enterrá-la definitivamente.
A mesma carta, em outro trecho não-transcrito, ainda revelou que o Immortal estava obrigado por força de contrato a lançar mais um disco, mesmo após o lançamento de Northern Chaos Gods, pelo selo Nuclear Blast. Não só isso, mas que Abbath já teria quase completado um CD de canções inéditas, em parceria com outros músicos.
Mais um trecho:
“[A objeção de Nævdal e de Horghagen ao pleito de Eikemo de usar o nome da banda] soa como uma tentativa de vedar a prática da própria profissão a Olve Eikemo. Ele passou 25 anos incorporando o personagem Abbath e atrelando sua imagem e sua música à marca IMMORTAL. Não me parece razoável que ex-membros de uma banda possam prevenir Eikemo de registrar a marca IMMORTAL para si, especialmente uma vez que ele atende mais pré-requisitos para esta operação do que eles próprios, que presumivelmente, após o lançamento clandestino de um novo álbum, não têm planos para o futuro do nome da banda.”
Nævdal teria respondido o seguinte à divulgação da carta: “Eu li, e nosso advogado leu. Viremos com uma resposta. A carta [deles] contém informações equivocadas.”
Em 2008, em entrevista à revista Guitar World, Abbath comentou sobre a (primeira) ruptura da banda, a de 2003: “Claro que foi por razões pessoais. A banda é pessoal. Somos família. Somos irmãos. É como um casamento. Quando você se casa com alguém, você acredita no casamento. E quer continuar, mas às vezes precisa de um tempo. Muitas bandas só mamam os úberes (fazem dinheiro fácil). Podíamos ter continuado e feito muita grana. Mas nunca o fizemos. Foda-se o $$ e a fama. Nada disso significa alguma coisa se você não tem alma. E estávamos começando a perder aquela chama interior. Não somos estúpidos. Somos muito inteligentes quando se trata do nosso negócio, do que sabemos fazer melhor. Pensamos a longo prazo. Para citar Paul Stanley: ‘O K.I.S.S. não é a última moda, é um estilo de vida.’ O mesmo vale para o IMMORTAL. É da nossa vida que se trata.”
Aguardando ansiosamente pelas cenas dos próximos capítulos de “Immortal Inc. – o processo judicial”…
5. UM GOSTINHO DE CADA DISCO: PRÓS E CONTRAS, OU SÓ PRÓS E SÓ CONTRAS DE CADA ÁLBUM DOS IMORTAIS.
Primeiro, um reiteramento do que meio-mundo já sabe: comunidades, ainda mais no metal, para mim sempre tem um sentido pejorativo. Principalmente do lado crítico: tudo aquilo de que eles reclamam só tem interesse histórico para mim; normalmente ignoro ou sou veementemente contrário ao ponto de vista da dita “maioria”, ou de vozes barulhentas embora isoladas que acabo lendo ou escutando por aí. Quanto aos prós, podemos dar um desconto, e amiúde nos identificamos com as virtudes que os próprios xiitas apontam na banda, então serve como um bom norte, bússola ou termômetro (para ficarmos nas metáforas de temperatura, tão pertinentes à banda). Então como o tal do underground listener aprecia cada álbum da banda, cabendo uma pincelada minha no processo? É ao que se dedicam os próximos parágrafos. Como já falamos mais dos três primeiros álbuns na seção anterior, as informações novas mesmo surgirão a partir do 4º grupo de resenhas.
DIABOLICAL FULLMOON MYSTICISM
Em várias dimensões, escolhas estilísticas deste álbum foram usadas por outras bandas da cena (mais notadamente o Satyricon, cujo debute é bem similar – e não podemos negar a semelhança da técnica vocal entre Abbath e Satyr): as ternas e atmosféricas passagens acústicas, que não são longas, mas deixam sua marca nos exíguos ~35min desta obra-prima; a estética fantástica e ‘amadeirada’ (não, isso não é uma resenha de enólogo – em vez de sentir, como nos outros álbuns do Immortal, um frio congelante e a aspereza de uma localidade nefasta e remota, sente-se a estada num bosque ou em grutas mais cálidos, jamais pisados pelo homem), os teclados ‘barrocos’, pelo menos no sentido de evocar catedrais góticas. Diabolical Fullmoon Mysticism nem parece um primeiro álbum de banda (finjamos por um momento que o Immortal não nasceu das cinzas de outras bandas do espectro extremo), possuindo certa maturidade composicional. As músicas fluem como se fossem suites de uma mesma canção, sem conotação alguma com a “monotonia dinâmica” do gênero progressivo, onde o termo suíte é muito usado. Diria que os próximos discos são mais focados na pureza do conceito e da expressão, enquanto esta é uma obra mais total, se é que me faço entender. Um belo cartão de apresentação.
Voltando ao tema das guitarras acústicas, me parece que o Ulver leva excessivo crédito pela sua implementação, quando cronológica e até qualitativamente vemos o Immortal antecedê-los e superá-los palpavelmente. O melhor é o contraste dessas passagens escolhidas a dedo com o tom mais “crunchy” (não gosto da tradução ao português “crocante”, que faz parecer que estamos analisando um cardápio de sorveteria e descrevendo pistaches) e sujo, confuso, embaralhado… A melodia acústica, portanto, torna-se o complemento perfeito, porque estranho, a cereja sobre as bolas deste sorvete artesanal. Além disso, esse tom mais “intimista” também contrasta com os secos blast beats da bateria, intensificando a sensação de prazer doloroso constante nos clássicos do BM. Os “whoa!” de Abbath também são uma peculiaridade que favorece a obra – a intervenção vocálica como puro instrumento, quando não comunica uma mensagem verbal, mas apenas um som esquisito e, por que não?, sinistro. Não é uma sessão de música comum, senão que ao mesmo tempo se configura como um ritual.
Armagedda, aliás, não é um baterista excepcional e brilhante; não que Abbath, o baterista improvisado das próximas gravações, tenha talento nesta posição, ou uma técnica comparável a um baterista nato, mas justamente pelo amadorismo de Abbath é que a bateria dos próximos discos é algo único e inimitável, superior às batidas de Fullmoon, um pouco presas e acanhadas, com medo de fazer mais que o básico. Terá sido apenas coincidência a saída precoce de Armagedda da banda? Obviamente temos que dar um desconto, pois a qualidade da gravação e mixagem é a mais pobre de toda a discografia do Immortal, tornando a comparação algo injusta. O reverb pode beneficiar a guitarra, o baixo, o eventual teclado e os vocais, mas tem um efeito deletério para a bateria, que parece obstruída por um tapume em relação aos outros músicos. É quase possível ter uma idéia geográfica dos artistas num estúdio bastante amplo e visualizar suas posições – embora tudo possa ser falso, e ao fim e ao cabo o estúdio pudesse se resumir a uma saleta com os três músicos bastante espremidos (vale lembrar que Abbath também gravou o baixo).
A Perfect Vision of the Rising Northland, o ambicioso outro de 9min, talvez seja o destaque maior. Reminiscente dos experimentos minimalistas e envolventes de Quorthon no Bathory, é aqui que a brutalidade e o trecho acústico ao final, sem que se contradigam, mais brilham. Os riffs desta canção apresentam um caráter hipnótico (mais do que nas 5 canções anteriores, já hipnóticas em si), e há um solo de guitarra dos melhores da carreira de Demonaz. Em 1992 não era comum o uso de solos melódicos no BM, e esta pode ser considerada outra nuance em que o Immortal foi pioneiro.
Por fim, mesmo que soe repetitivo, tenho de exaltar aquele que rouba as atenções no disco: Abbath. Muito criticado pelo metaleiro médio por seus frog croacking vocals, vemos pela primeira vez (já que ele mudou seu estilo em relação ao grave do Amputation) como o estilo gutural seco pode se juntar aos instrumentos em vez de se chocar com eles, e pode retratar complexas emoções com a ajuda das letras, ao passo que outras bandas tentam copiar o estilo mas falham na parte da expressão de emoções via vocais. Abbath pode ter um alcance limitado em termos de freqüências ou notas, mas sem dúvida é convincente como ator. Não digo de forma pejorativa: o BM é o estilo de metal mais calcado na performance de palco, na incorporação de outras personas em suas apresentações, como no palco do teatro. Não só no gestual, mas nas cordas vocais, Abbath cumpre o requisito do “showman das trevas”. Tem alma, enquanto muitos outros vocalistas do gênero parecem zumbis desencarnados e unidimensionais.
PURE HOLOCAUST
Quase todas as capas do Immortal têm os rostos dos músicos estampados, mas Pure Holocaust se sobressai a todos no quesito “carisma”. É uma capa instantaneamente icônica. O mais irônico é que, apesar do amor da banda pelas paisagens nevoentas, justo nesta foto não há nada que evoque neve, e os fundamentalistas sem dúvida apreciam o fato de a cor predominante ser o preto.
Para compreender a proposta do novo álbum e o amadurecimento natural da banda é preciso voltar ao epílogo do primogênito, Diabolical Fullmoon Mysticism, no formato da já enaltecida faixa A Perfect Vision of the Rising Northland, cujo título inclusive trai todo o simbolismo que carrega como “portal” ou “marco” para a banda – uma passagem para algo muito mais insólito, que o grupo denominou Blashyrkh. A letra termina com a descrição do firmamento se abrindo para engolir o eu-lírico, transportando-o a outra dimensão, uma espécie de cemitério de almas não-euclidiano de gelo eterno.
Pure Holocaust é já esta dimensão não-euclidiana, espécie de alternativa igualmente assombrosa e carregada de inversões estéticas aos contos de terror de Lovecraft e a mitologia Cthullhu, com um matiz norueguês que lhe é todo original em relação ao escritor estadunidense. Temos a primeira versão do Immortal que se consagraria: o de um caos controlado em estúdio, diferente do approach atmosférico do primeiro álbum. Não que PH não seja atmosférico, em absoluto. Mas seria estereotipá-lo dizer que só se trata disso, uma vez que a violência musical cai como uma bigorna na cabeça dos ouvintes. Onde Fullmoon era uma meditação quase estóica e indiferente sobre a lúgubre condição humana, PH mais parece uma luta de machados em punho contra a única coisa que não se pode vencer: a própria natureza.
O tremolo das guitarras é quase incessante. A bateria é uma descarga de blast beats, com o jeito sui generis de um estranho à função de tocar o instrumento. É uma nevasca na tundra em formato sonoro. Talvez a única reminiscência dos experimentos semi-acústicos do primeiro álbum esteja na breve utilização de sintetizadores em As The Eternity Opens, sétima e penúltima faixa deste assalto de quase 34min.
Se DFM ajudou a moldar o gênero BM, PH é já uma exploração de seus limites possíveis, tão cedo quanto o ano de 1993 permitia. Simplificação é força e definição, neste caso: velocidade, aspereza vocal crescente, esta aura de “incômodo” voluntário ao ouvinte que tenta não lhe deixar qualquer zona de respiro. Até por isso é muito importante que este álbum não tenha excedido a quantia dos 40 minutos, ou seria declarado explicitamente como tortura pelos tribunais noruegueses!
Não tem-se muito o que falar de PH, na verdade: a fórmula foi repetida com cada vez mais intensidade nos dois próximos álbuns, por isso todo o template foi lançado aqui, e o que se disser sobre os 2 próximos trabalhos do Immortal no fundo também se aplica ao sophomore release.
BATTLES IN THE NORTH
“Não escute Batalhas no Norte casualmente: não vai descer bem. Sente-se à noitinha num canto frio da sua sala em plena estação invernal – ou, ok, se for atrapalhar demais e produzir sensações desagradáveis em seu corpo, sente-se numa poltrona perto da lareira, desde que num dia realmente gelado – e deixe que essa música mágica chegue até você.”
gradymayhem, Metallum Encyclopaedia
Muitos vêem essa obra como um passo atrás depois do elogiado porém pouco melódico e marcante, talvez homogêneo demais, Pure Holocaust, na minha opinião pessoal o pior (menos melhor!) da banda. Aqui temos 33 minutos em 10 canções que reviram os conceitos dos dois primeiros discos do avesso, muito embora hoje todas as características de BiTN sejam consideradas canônicas do black metal. Ou seja, quer dizer que o grupo evoluiu girando 180 graus, e todavia permaneceu nos moldes do subgênero de origem norueguesa. O tempo das músicas é extremamente acelerado e, se havia alguma referência ou alusão ocultista a Satanás e Belzebu antes, ela foi completamente abolida das letras deste álbum branco, cujo tema obsessivo é só e tão-só a neve, as tempestades e nevascas e a desolação abaixo de zero!
Uma solidez branca, sempiterna e polar, sem começo nem fim. Apenas um eterno estado de auto-realização no campo de batalha mais inóspito. Assim eu descreveria o sugestivo Batalhas no Norte. Propositalmente as músicas foram editadas para não terem “começo” ou “fim” lógicos. O ouvinte já está imerso no pântano absoluto de agressividade musical desde o primeiro segundo e não é possível prever quando será feito o arbitrário corte na composição, dando uma sensação de boxeador caluniado pelo árbitro: ele queria descansar entre 2 rounds, mas sem sequer ouvir o gongo descobriu que já tinha voltado a apanhar do adversário e ser empurrado às cordas, sem a menor transição. Uma bela duma ousadia aniquiladora de cânones da música!
Eu também achava este álbum quase impenetrável, de começo. Hoje suas melodias cravam fundo, vejo-o como “mais comercial” (se é possível dizer isso no BM ortodoxo ou que ainda estava sendo definido em sua ortodoxia!) que as empreitadas anteriores: as canções são instantaneamente memoráveis, pelo menos comparadas ao Pure Holocaust. O som é seco, muito seco. Parece com calotas polares que jamais derreterão. Sem dúvida uma das marcas registradas dos trabalhos do engenheiro de som e produtor Eirik Hundvin, mais conhecido apenas como Pytten. Abbath parece mais impessoal e inumano. Ao contrário do que muitos pensam, isso nada tem a ver com uma suposta deterioração vocal, muito menos com uma péssima escolha estilística (pelo menos na minha opinião) ou, o que é pior, e muitos alardeiam no BM, incompetência técnica. Este é o único tipo de vocal que parece poder habitar no Blashyrkh criado pela banda. Qualquer outro tipo de rendição de voz “humana” teria de ser criticada. Abbath, o abbathismo (seus croaking vocals únicos) e o Immortal “clássico” (diria que deste, o 3º, até o 6º disco, de onde tiro o quinto, não obstante – embora muitos creiam que o 5º é que é justamente a magnum opus da banda, juízo do qual sou obrigado a diferir) são uma Trindade indissociável. Um álbum sem Abbath (como o último da banda no momento em que escrevo) deveria ser crime…
Onde PH, numa espécie de transição, ainda usava algum reverb atmosférico, BiTN elimina qualquer indício de “atmosfera artificial” e aposta tudo no timbre espaçoso e hiper-crocante de guitarra-baixo para engolfar de vez o ouvinte. O que 2 anos não fazem na indústria musical – em 1993, Pure Holocaust parecia já ter chegado ao limite do estilo! Não seria crível que a banda optasse por um estilo ainda mais brutal que aquele – e dessa vez é mais pegajoso e marcante, quase um milagre… Coisas que devem acontecer em temperaturas extremas e negativas, tipo de “mágica” cujos bastidores o brasileiro se resigna a admirar, desconhecendo seus fundamentos.
Em contraste com as novas obras, portanto, é que finalmente DFM parece até caloroso e muito disciplinado – mas a percepção de quem ouvia a banda estreando, em 92, deve ter sido bem diferente. Só posso cogitar sobre isso, já que do prisma do século XXI é impossível ir além em especulações sócio-históricas deste tipo. Já conheci o Immortal completamente ultimado dos discos posteriores e incorporei esse som mais cedo do que o ritualístico Fullmoon em minhas funções cognitivas… Você que ouviu a discografia do Immortal na ordem linear e não tinha muito contato com o estilo –– quais são as suas próprias impressões a respeito da evolução da banda?
Respeitando as aspas que abrem a “resenha” deste disco, a primeira coisa a praticar antes de mergulhar em Battles in The North é: assista ao clipe de Grim and Frostbitten Kingdoms, linkado mais acima! Um dos audiovisuais mais originais já produzidos… Curiosamente, a bateria que se escuta não é tocada pelo convidado do clipe. O notável Jan Axel “Hellhammer” Blomberg faz apenas uma representação cenográfica (e que representação, sem pedais, em meio a uma montanha desolada, vestindo roupas inapropriadas para o frio!). O áudio foi tirado dos esforços de Abbath na batera, e assim temos o segundo e último CD em que o cara acumula nada menos do que três funções: vocais – é claro! –, percussão e também o baixo.
É simbólico que o outro (décima canção – cada álbum vai se apresentando, na história inicial do Immortal, com cada vez mais faixas ou composições individualizadas, movimento que parece inteiramente orgânico e lógico)seja batizado Blashyrkh (Mighty Ravendark) (pronuncia-se BLAQUÍRK, aliás). É como se a banda finalmente dissesse: É, chegou a hora de intitular uma música com o nome de nosso recanto extra-dimensional; finalmente chegamos ao som que queríamos desde o início; os dois primeiros álbuns ainda não mereciam que este título figurasse diretamente no caput de nenhuma música, só na letra, discretamente… O tempo da música é o mais lento de todo o BiTN e a atmosfera torna-se mais épica do que nunca, a ponto de até os detratores do 3º disco, todos que conheço, confessarem: Blashyrkh (…) é uma das melhores canções da banda!
É muito comum para quem ainda está conhecendo o catálogo do Immortal pensar que acabou de pôr as mãos numa demo dos caras, tamanho é o caos deste trabalho. A wall of sound só vai ceder com o auxílio da disposição e interesse do ouvinte, e algumas necessárias repetições do bolachudo na vitrola. Ao contrário das primeiras impressões de inacessibilidade e desorganização, para gente como eu logo BiTN passará a ser considerado frio (no pun intended) e calculado em cada passo, criação de artistas entrando em seu apogeu e maturidade.
Embora as guitarras não sejam tão cheias quanto em PH, sem usar tantas tracks na gravação nem padrões intrincados no mesmo nível, Demonaz sabe para onde ruma com um verniz mais thrash infundido no black metal ortodoxo do Immortal (E por que thrash e não death? Porque a produção é menos pesada que no metal sueco old school e o jeito de tocar é um pouco mais dinâmico e solto que no 2º estilo). Power chords são a exceção, havendo tempestades de tremolo nos riffs, em perfeito contraste com a agressividade aparentemente irrefletida e incontível da batera semi-amadora sem constrangimento de meter blast beat atrás de blast beat (ideal para o contexto!) e a rispidez vocálica do mesmo homem (já o baixo, o terceiro instrumento de Abbath, é confessá-lo-ei, é humanamente inaudível!… claro, entretanto, que faz diferença como ‘eco’ da guitarra do parceiro Demonaz). Abbath, na realidade, parece gravar tão perto do microfone que o segredo de seu chiado raspado característico é praticamente revelado: um bom técnico vocal poderia dizer quais os movimentos que sua glote está fazendo, como ele está puxando o ar e quanto ele usa o nariz em cada estrofe, imagino, sem ter de recorrer a imagens! Porém, nem todos nós somos técnicos vocais: lembram que eu pedi para verem o clipe Grim and Frostbitten (…) antes? É muito importante para “pegar” o espírito dos vocais, já que no próprio clipe Abbath é mostrado em zoom facial, com seus dentes brancos, e mostraria as próprias cordas vocais se a pele do pescoço fosse transparente – a lente da câmera está no olho do furacão, salpicada de pingos de chuva, enquanto o rosto do frontman (nada menos que o rosto da entidade Immortal) é o foco indelével desta miniprodução.
Eu amo o fato de que nenhuma faixa se estenda por muito mais que 4 minutos. Também era essencial, como nos lançamentos anteriores, que essa “barragem” não chegasse a durar 40 minutos, ou o valor do álbum certamente diminuiria alguns pontos, pois nosso nível de concentração começaria a baixar. Um belo contraponto aos lançamentos de digipack com conteúdos bônus de hoje – BiTN envelheceu excepcionalmente bem para quem odeia as convenções da indústria fonográfica, i.e., qualquer black metaller sério!
Com a chegada de Dimmu Borgir e Cradle of Filth ao grande público em 1995, o vagão do black metal inteiro se aproximava perigosamente de um território kitsch e extravagante. Eu pessoalmente adoro Cradle of Filth. E o Immortal é considerado como visualmente ridículo por muitos fundamentalistas, então tem esse ponto em comum com is ingleses… Mas essa característica não deixa de merecer menção: Dimmu Borgir, preenchendo suas composições com teclados (ou, diria, afogando-as em teclados!), e Cradle of Filth, na Ilha da Rainha, alcançando imensa popularidade ao fundir elementos primitivos do BM ao gothic, ameaçavam, mesmo que involuntariamente, o futuro do BM sem polidez e destinado ao consumo underground, esse de que falamos aqui.
BiTN adquire ainda mais importância histórica tendo aparecido nesse estranho umbral que marca a metade dos anos 90… Diria que para o período foi o cume do cume do death black metal (standards de brutalidade auditiva aparentemente ainda não-superados), já que o pouco de thrash destilado na obra é tão furioso que acaba resvalando para o gênero extremo primo ou irmão mais velho do BM, ironicamente o território em que o Immortal começara sua carreira. Hoje, obviamente, temos marcos muito mais extremos desse mesmo deathened black metal, como Panzer Division Marduk do Marduk. Só que álbuns desse patamar só foram possíveis graças a Battles in The North, que ensinou-lhes o caminho. Por outro lado, a extensão atmosférica dessa exaltação da natureza (ainda que em seu pior, i.e., algo que oprime qualquer ser humano!) faz deste álbum uma perfeita contraparte para qualquer trabalho do Nargaroth, os reis da “ambiência” (rios correndo calmos, pássaros gorjeando). Obs: não escute faixas desse disco avulsas em “playlists” por aí – ouça-o inteiro e organicamente, como produto da natureza que é!
BLIZZARD BEASTS
Esse petardo de 1997 vem a ser, no frigir dos ovos, ou no congelamento perpétuo das montanhas, como seria mais adequado em se falando de Immortal, meu favorito da banda. É o Immortal em seu auge criativo e igualmente na apoteose de sua fúria instrumental. Oito músicas precedidas por uma instrumental aclimatadora (intro) em escassos 29 minutos, o que significa que aqui as notas se conjugam de forma densa, cada segundo trazendo muita arte nas “costas”. Maioria das canções vai de 2 a 3 minutos e meio.
Horgh é o novo baterista, posição que ocupa até hoje. Demonaz começou a desenvolver sua tendinite mais ou menos nessa época, supomos que devido à incrível ferocidade dos riffs deste trabalho de estúdio. Segundo consta, para finalizarem o álbum, o Abbath já teria suprido algumas das partes de guitarra, com Demonaz levando como podia e, num ponto crítico, se aposentando da função após reiteradas consultas médicas, e após averiguar a gravidade de suas lesões, intratáveis para os recursos da época (embora já tenhamos visto que nada é tão irreversível assim quando se trata de lesões esportivas ou de artistas cuja performance tende a se nivelar com a dos melhores atletas de alta performance!).
Fato é que as guitarras do Immortal nunca foram tão técnicas e velozes como em BB. As influências de death metal começam a se fazer sentir, embora fossem totalmente relegadas para o próximo trabalho, voltando só no Damned in Black. As mais insanas e complexas melodias de Battles in The North são levadas ao extremo. A bateria está ainda mais alta na produção, embora comprimida em qualidade, o que acho que foi intencional. Novamente, para não fugir à regra, os vocais foram bem-masterizados na produção final.
Embora eu possa entender por que as pessoas costumam preferir álbuns mais tardios, com Abbath 100% cuidando das guitarras (e, nessa toada, possa até ver como conseqüência lógica por que At The Heart of Winter, o sucessor imediato, e Sons of Northern Darkness, tendem a ser tão populares na fan base), quando a banda se dirigiu a proporções mais épicas, dignas de tocar em festivais como o Wacken Open Air e atrair multidões de fora do movimento BM, se não existisse essa tetralogia de álbuns da era Demonaz como executor (e não só compositor e letrista) estou certo de que nada do futuro seria possível ou atingiria um tão alto nível, visto que constituem a base de todas as evoluções subseqüentes, e acho que nem pessoas como Peter Tägtgren entendem a dimensão dessa minha afirmação, pois denigrem o BB o quanto podem, como nas entrevistas acima.
Blizzard Beasts traz, embora com alguma maquiagem, influências dos riffs de Morbid Angel à tona. Trey Azagthot, em decorrência, deve ser visto como um dos maiores influenciadores deste trabalho magnânimo da banda. Só ouvindo após algumas vezes é que o verdadeiro apreciador poderá demarcar esses elementos death metal, que estão normalmente escondidos debaixo das camadas permanentes de neve das letras e dos furiosos ataques instrumentais! É realmente algo bem sutil, ou eu estou completamente equivocado e imaginando coisas…
A atmosfera congelada sempre foi um must para o Immortal, e desde o despontar dos 90 cada novo trabalho sempre conseguiu ser mais do que a soma de cada parte. Embora o debute, Diabolical Fullmoon Mysticism, comparativamente falando, seja hoje sentido como um álbum mais ‘quente’, digamos que nada nele é verão: no máximo, é a transição outonal em que a secura do frio e o desaparecimento progressivo do sol ao longo dos dias da estação vai tomando perceptivelmente o lugar da umidade abafada e mormacenta mais ligada ao outono, i.e., não estamos, nem ali, subjetiva e cronologicamente distantes do inverno arquetípico.
Se o desenvolvimento da banda continuar sendo comparado ao ir e vir cíclico das estações, podemos dizer que Blizzard Beasts é o momento culminante e mais característico do inverno total. Não coincidentemente, depois dessa blitzkrieg na neve que não dava espaço para muitos outros matizes e emoções, a banda mudou para um conjunto mais focado no bom acabamento de composições individuais, começando a abandonar aos poucos a atmosfera opressiva e abraçar tecnicismos. Não significa mudar do vinho para a água ou entrar em decadência, apenas uma mudança de foco em que troca-se a percepção imersiva do disco como um todo por outras maravilhas com mais personalidade e impacto individual. São duas formas de uma banda extrema cativar seus consumidores. Muitas bandas nascem e morrem em um desses departamentos, sem saber desempenhar essa “transição outonal” que, em verdade, é um revigoramento, afinal as estações nunca cessam de passar e nenhum declínio deve ser entendido como outra coisa senão uma metáfora.
As faixas de BB consistem em uma série de barragens sonoras que acertam rapidamente no rosto, e comparando-se uma com a outra não se vêem muitas fissuras no gelo: tudo é muito consistente, internamente. Com um tempo de menos de meia hora para tudo se desenrolar isso se torna mais exeqüível. Mas quem disser que falta qualquer momento memorável que impregna na cabeça está se esquecendo de Mountains of Might, o grande hit de BB. Suas proporções épicas, prefigurando At The Heart (…), aliadas a um refrão monolítico, insistente e pegajoso, contrastam levemente com as demais faixas.
Ao passo que as canções são centradas em riffs de frente crocantes, o Immortal integra como ninguém as diversas instâncias que fazem uma composição, isto é, tornam o todo exuberante e melhor que as partes (ou movimentos ou ainda temas, se falássemos de música clássica – e cá entre nós, não é este o Immortal clássico no palco-estúdio?). Tremolos gelados representam algumas dessas ligações, afora solos épicos que só esta banda sabe fazer no BM inteiro, sem com isso escapolir do próprio gênero BM (não é uma banda híbrida com outros estilos, i.e., apesar de mesclar muito death e thrash, ninguém se refere ao Immortal como uma banda de death/black metal, porque todas as influências “estranhas” servem a um propósito uno: a grandiosidade e singularidade de seu black metal), e tudo isso em composições compactas, sem a duração esperada de behemoths do metal progressivo! Afinal, o ritmo da bateria e dos instrumentos de corda é lancinante demais para imaginarmos uma música de 12 minutos. Longas composições até existem na discogradia do Immortal, mas sempre que isso acontecem eles alternam a velocidade, chegando às fronteiras do doom – enquanto que em BB composições “golias” não têm vez.
As mais longas do CD, que não são longas, mas apenas relativamente maiores, cotejadas com suas irmãs efêmeras do disco, dão uma pista do que viria na seqüência. Falo de Nebular Ravens Winter (aperfeiçoada em 2016) e Battlefields, ainda mais coesas que a média do álbum, com nuances de um epic thrash a ser desenvolvido propriamente apenas na era …Winter, cuja descrição ocorre poucas linhas abaixo. Para dar uma imagem do que se pode estar ouvindo sem ter um conhecimento profundo de muitas bandas do estilo metal (extremo ou não) ou sem ter chegado a ouvir Blizzard Beasts antes de ler a resenha, o leitor e futuro ouvinte deverá primeiro ouvir Pleasure to Kill do Kreator e pensar como esta música ficaria se transportada para a cena norueguesa 10 anos depois. Mas ainda tem um toque mainstream, uma certa reminiscência do tom cheio, abrasivo, melodioso mas linearmente bronco, i.e., uma sensação de resistência do mesmo som apesar da necessidade da dinâmica interna, o que o Metallica realizou bastante bem em …And Justice for All (que tem 10 minutos de duração e, assim como a faixa do Kreator, batiza o próprio álbum em que apareceu). Alemanha mais Califórnia desemboca na Noruega. Tudo isso, claro, apenas subliminarmente, mais obscuro e glacial quando assimilado pelos músicos aqui em questão. Nos vocais, Abbath está mais para o Bathory mais precoce.
Simplesmente incompreensível o discurso hegemônico de que Blizzard Beasts é o patinho feio (corvo lindo e branco?) da discografia do grupo. Finalmente estabilizados na formação há algum tempo (o que, desafortunadamente não duraria demasiado), esta magnum opus é o resultado de dedicação, inspiração e um ataque frontal sem tergiversações, utilizando tudo que de mais demente e demolidor já tinha sido manifestado por bandas vinculadas de perto ou de longe ao movimento do metal negro.
AT THE HEART OF WINTER
Muitos consideram este trabalho o casamento (não o primeiro, mas um arquetípico) entre o (progressive) thrash e o black metal. Porém, onde muitos vêem o epítome da criatividade da banda e o capítulo mais proeminente dessa fusão, eu vejo sinais de estafa, como se sair do subgênero fosse a única maneira de gravar um álbum de inéditas àquela altura, ou como se, para não criar clones de trabalhos passados, mesclar um “thrash melancólico” à fórmula tivesse sido a única maneira encontrada de prestar dinamismo ao material. Explicando como posso, embora o thrash não seja um elemento estranho para o Immortal nem mesmo a essa altura, é sim a primeira vez que a metade thrash parece obliterar por completo a atmosfera ominosa do black metal norueguês – isso tem uma nomenclatura mais fácil do que a explicação, sem ouvir o disco: trata-se de thrash metal melódico, e não sua vertente mais negra, viril, de first wave BM e com aquela sujidade digna de um Bathory. Tem lá seus momentos. Confesso que devo ter tendências metafísicas a torcer o nariz para obras relativamente unânimes, ou de clamor exacerbado e imerecido.
Também não gosto tanto da divisão das músicas: apenas 6, com tempos que variam de 6:03 a 8:56, ou seja, uma ruptura completa com o que se via até BB. O tom da guitarra parece sempre o mesmo, uma espécie de cripto-acústico, evidentemente com a propriedade estética de nos transmitir uma sensação de degelo soturno. Falta espessura, faltam as estalactites da caverna. Acho que Blashyrkh acabou derretendo um pouco, ficando menos majestosa e mais pantanosa. Incidentalmente, chamam Sons of Northern Darkness, o clássico mais moderno da banda, de At The Heart of Winter mal-produzido, e com “mal-produzido”, entender: BEM-produzido! Como no black metal os valores se invertem, acham a produção muito… moderna, limpa, polida, e em detrimento dos valores do old school… Mas a verdade é que o estilo de ambos se parece, e entendo por que não estejam entre meus momentos favoritos do grupo.
O que eu mais detesto sobre At The Heart of Winter, a música-título, é que o riff central me parece uma antiga abertura de programa da Globo cagada e cuspida, um programa que por mais que me esforce não consigo me lembrar, nem encontrar qualquer comprovação na internet! Globo Comunidade ou qualquer coisa bem cult dos anos 90. Às vezes essas coincidências acontecem, qual é o problema? É que essa má impressão de ver o Immortal associado a algo de segunda classe nunca me abandona… Um comentário de resenha que me chamou muito a atenção, por conter o juízo exatamente oposto ao meu é: “Isso não é um epic black metal estéril e redundante repetindo as mesmas uma ou duas seções de novo e de novo por oito longos minutos; a música é dinâmica e nunca se demora demais no mesmo tema.” Mas o pior é que <as mesmas uma ou duas seções de novo e de novo por xxx longos minutos> são a melhor descrição que encontrei para ATHOW! Ao mesmo tempo em que os entusiastas tentam defender o álbum da acusação de esnobismo, comum quando uma banda produz algo muito mais “progressivo” e “dinâmico” para os próprios padrões, deixam escapar que na verdade estamos diante de uma peça de wankerismo puro e simples, pois “Abbath [guitarrista no disco pela 1ª vez] usa todo o espectro das notas musicais”. Tudo bem, mas essa não é necessariamente uma virtude nem mesmo num disco do Pink Floyd!
Como de praxe, nada a contestar sobre os vocais abbathianos. Numa nota alta, a segunda metade da faixa de encerramento, a otimamente batizada Years of Silent Sorrow, é meu destaque pessoal.
DAMNED IN BLACK
Um álbum “odiado” e que eu exalto com a ajuda de todas as minhas entranhas, só para variar! Adeus sacarina do mar de resenhas do álbum anterior (a internet está aí para se ver que eu sou realmente um estranho no ninho em relação ao Heart of Winter, uma lasca de gelo descolada do continente) – bem-vindos, de novo, os detratores de um suposto simplismo compositivo! E de volta com as capas icônicas e ainda mais absolutamente massacradas e ridicularizadas – ô, o Immortal voltou! Só faltava mesmo xingarem a capa por ser quase toda preta (Blackshyrk?), e destoar das picturizações invernais da banda, já que com Battles in The North o chilique foi o contrário!
Onde a proeminência cabia ao melodic thrash no trabalho anterior, vejo o mesmo destaque sendo dado à virulência de um bem-forjado death metal, achatando e comprimindo o rolo atmosférico com que a banda passa por cima dos deuses e do mundo, como um disco do Immortal tem de fazer (com faixas individuais num espectro de duração mais estreito de 3-7min). Uma das razões para uma paleta escura na capa já pode ser detectada nos títulos das faixas: nem tudo, dessa vez, gira cicloneamente em torno de neve e de borrascas e precipitações do céu carregado! Tudo soa como a continuação lógica de Blizzard Beasts, talvez do outro lado do espectro, já que yin-yangprecisam do branco e do preto para funcionar – é como se Heart of Winter nunca tivesse acontecido, mais ou menos o cumprimento retroativo de um desejo meu, que em 2000 ainda estava longe de conhecer o Immortal e, aliás, de começar a gostar de música, e música boa!
É interessante observar a hipocrisia do resenhista-médio de DiB: critica os blast beats unilaterais do álbum, mas há quantos deles o Immortal não apresenta a mesma bateria? Inclusive no mimado Heart of Winter – só que lá a produção tíbia jogava todo o ímpeto das viradas e pezadas incessantes para o fundo, sonicamente falando!
SONS OF NORTHERN DARKNESS
Entramos na era da internet – o que possibilitou a intensa popularidade do Immortal, mesmo entre a nova safra de metaleiros, mediante um trenzinho de memes nunca enjoativos! – e os já veteraníssimos noruegueses continuam empilhando bíblias (!) de composições do gênero que ajudaram a forjar. Seria impossível usar um medidor para situá-los entre o orthodox e o modern BM porque eles conseguem encastelar todo tipo de referência retrô com novos takes, experimentalismos e produção moderna sem que o jogo dos caras soe forçado ou deslocado em relação ao espírito da banda, sempre mutante – seja você mesmo, mas não seja sempre o mesmo, um amigo me dizia…
No comando dos riffs de guitarra mais uma vez, Abbath continua a roubar a cena e monopolizar os holofotes. Seu estilo no Sons of Northern Darkness em particular remete muito ao de Dave Mustaine no Rust in Peace, pelo menos em momentos definidos. Por mais estranha que essa observação pareça, ela é verdadeira: One by One possui gallops de guitarra idênticos a Take No Prisoners ou Polaris!
Além disso, para manter a tradição de álbuns realmente inéditos da banda, ao contrário de tantos grupos que se limitam a relançar o mesmo trabalho com letras diferentes e replicar a mesma e velha fórmula com micro-randomizações, as guitarras foram afinadas um tom inteiro abaixo (na linguagem técnica, D standard): isso mais os riffs reminiscentes do thrash dão ao álbum um quê de peso que o distingue de quase tudo do black metal gravado àquele tempo. É diferente até da secura dos adoráveis e repelentes ao mesmo tempo, se é que o fã entende, Blizzard Beasts e Battles in The North. A faixa Demonium parece mesmo uma revistada em BB com uma produção muito mais avantajada e classuda. A esse ponto na carreira, aliás, não é só a produção que adquiriu um “outro patamar”: ouso dizer que o Immortal chegou ao auge da maturidade em termos de intercalar momentos abrasivos e lentos com porradas inclementes nas composições. Destaque para o efeito de reverb nos vocais de Abbath em In My Kingdom Cold que fazem parecer que ele canta no meio da tempestade, decrescendo ainda mais a “temperatura do Himalaia”.
Era inegável que a simbiose do grupo com o produtor Peter Tägtgren crescia a cada trabalho. Dá para perceber, com menos rodadas do disco, cada nota e inovação. Sons of Northern Darkness agrada, portanto, aquela ala mais tolerante do BM que preza a técnica e uma guitarra bem-tocada e com boas possibilidades de ser ouvida em cada evolução. Para uma comprovação da afirmação, ouvir à antiteticamente batizada (porque a Antártida fica no sul!) Antarctica. Ou eu deveria dizer que ela não é o polar oposto de todas as letras sobre Blashyrkh? Uma grande curiosidade sobre este álbum para disfarçar o constrangimento pela piada inopo(lar)tuna: é o primeiro da banda na Nuclear Blast, i.e., Immortal praticamente“goes pop”! Dizem que a Nuclear Blast quase mudou de nome para Nuclear Blast Beats em 2002… Parece irônico que no começo mesmo dessa nova história a banda iria se dissolver pela primeira vez, ainda mais levando em conta a sincronia de estúdio – os músicos começam a se desentender justamente em meio ao processo criativo. Para se ver a que custo algumas obras de arte são paridas…
ALL SHALL FALL
Dizem que neste disco o Immortal se tornou menos metal, e nisso menos black metal, o que fãs dificilmente perdoam, e mais rock ‘n’ roll. Ou pelo menos black ‘n’ roll, para não acharmos que foi algo tão drástico ou mesmo facilmente detectável para ouvintes de primeira viagem. Os mais fanáticos dirão que foi o último prego no caixão da segunda onda do black metal, capitaneado pela Noruega. Quanto drama! O hiato forçoso da banda teria feito os músicos perderem a intimidade com os instrumentos e o entrosamento com os colegas, sem volta?! Ah, claro! Nenhuma narrativa de banda de black metal que desagrada os fãs após álbuns bombásticos está completa sem o capítulo de quando eles se venderam (ou quando compraram de volta a alma a um desapontado Lúcifer) ou efetuaram seu sold-out. E, francamente falando, isso acontece com – quase – todas as BM bands que eu tive o imenso prazer de conhecer, então se tornou um tropo ou clichê da relação destes músicos com estes seu exigente público. Público extremamente exigente, justificando o gênero a que dizem pertencer…
All Shall Fall já diz essa verdade íntima no próprio nome: tudo deve cair, desabar… Mas quer saber? Quem disse que não há quedas de pé e grandiosas? Essa expertise da banda para bons riffs e toda a sabedoria no songwriting não desaparece do dia para a noite, nem por causa de alguns anos em hibernação. Afirmemos e reafirmemos: All Shall Fall está longe de ser o melhor momento da instituição Immortal mas, se pensarmos no destino geral das bandas de 2nd wave, seja por demérito próprio ou apenas por difamação de ex-entusiastas, o Immortal parece ser o que leva a melhor. Não falemos daquele ex-ser humano que virou o Gandalf e renegou completamente o estilo. O Mayhem, de quem eu tanto gosto em sua fase contemporânea, incansável na arte de surpreender, é detonado pelos puritanos, que os consideram menos do que cinzas do que já foram. Na verdade não importa o que o Mayhem fizesse desde a morte do Euronymous, a recepção seria fatalmente a mesma. Quem sabe desde a morte ainda anterior do Dead! Bandas norueguesas da segunda onda que seguem quase todas ativas e inovando, mas, para os “autoproclamados especialistas”, que traíram ou saíram por completo do movimento. Chame-se-o de segunda onda ou não, eles não traíram nada, eles estão carregando a tocha e revitalizando o movimento em seu núcleo, independentemente da qualidade que surge na terceira onda, onde onde quer que nos encontremos neste momento (quarta onda? não faço idéia!). Mas esse é um papo para outro texto…
Sete anos. Número cabalístico. O que terão representado na vida dos músicos e na manutenção ou queda de qualidade de suas performances? Na verdade há certa contigüidade entre estes trabalhos tão distantes no tempo, assim mesmo: Sons of Northern Darkness já demonstrava certa tendência a incorporar cada vez mais interlúdios (que não são interlúdios reais, presentes na enumerção das faixas, i.e., estão dentro das músicas e não constituem produções independentes) limpos e outsiders. Isso só foi mais intensificado. Os maledicentes dirão que o supergrupo de Abbath montado no meio do caminho, que o fez curtir um “retorno ao rock” durante a paralisação da banda principal, a banda I, foi mais um degrau, antes de chegarmos a esse, nessa transição. Between Two Worlds (que não será resenhado aqui) parecia mais heavy metal, mas do tipo black ‘n’ roll, que uma dessas cartadas extremas que os membros do Immortal, como bons jogadores de pôquer, viviam dando. Antes de criticar a mudança, devemos pensar primeiro na pressão sobre os caras para “manter o nível”, surpreender ainda outra vez, et.. Conservadores ou não, Abbath & cia. resolveram apostar nas suas forças mais consolidadas e que não os trairiam nesse comeback: os riffs em profusão e sua concatenação meticulosa. É um trabalho de guitarra, principalmente. Saudosos da atmosfera reinante nos primeiros álbuns têm todos os motivos para se chatear! Quem liga pra eles? O novo Immortal, mais corpulento na produção e no volume sonoro, não podia fazer milagres e nada sacrificar aos deuses de Blashyrkh a fim de obter um novo trabalho nível “A”.
Enfim, vamos ser curtos e grossos: All Shall Fall é o mais hard rock dos álbuns do Immortal. Viva-se com isso. Mesmo assim, é raro ver hard rock com croak vocals! O croachar do sapo nunca morre… Confiram só o solo de Norden on Fire. Nada a ver com Diabolical Fullmoon, não é verdade? Não esqueçamos que essas coisas acontecem debaixo de nossas vistas e, quando não desejamos reconhecê-las, inconscientemente passam batidas. Pure Holocaust, a segunda obra, já parecia uma estreitada no som, para torná-lo mais mainstream, se comparada com o 1º trabalho de estúdio. Ninguém reclamou na época – e por quê? Porque ainda era demasiadamente black metal (mas quem afirma o que é ou não é black metal são os revisionistas, a cada ano!). Como se houvesse só um black metal! Talvez se reconhecesse isso. Mas quando a mudança se dirige a algo como o acessível hard rock e não a experimentalismos bárbaros e obscuros, sai de baixo! Menos pode não ser sempre mais, mas sem dúvida é uma tentativa válida, e cria novos discos inéditos. All Shall Fall é exatamente isso. E sem dúvida a Nuclear Blast gastou uma porção de dindim para manter o áudio perfeito para os caras. E não deve ter economizado no marketing, idem. Esse é o epítome do profissionalismo da banda, e isso alguns por aí não podem ignorar… Escutam, para depois apenas maldizer.
Claro que não é só isso que explica a recepção do álbum. Houve problemas. Problemas de verdade, os não-intencionais. O processo de composição foi indubitavelmente acelerado porque os integrantes voltaram a se bicar. Romperam em 2003, ficaram oficialmente desativados como banda por 3 anos até se reunirem, e o álbum durou um bom ciclo de “Copa do Mundo” para sair (4 anos). Significa que o trabalho em equipe se mostrou mais árduo do que eles mesmos, conhecendo o passado, esperavam. Nesses casos, muito do que acontece é chegarem ao seguinte plano de carreira: Olha, vamos nos concentrar em turnês, tocar nossos velhos hits, não precisamos matar uns aos outros agora enquanto criamos novas músicas, já que cada um tem um conceito sobre música, e sem dúvida o conceito de cada um mudou com o tempo, de forma diferente do conceito dos outros membros. Vamos aproveitar a fama e essa reunion da banda! Black metal nem sempre se resume a lançar novos trabalhos e superar-se a si mesmo sem a menor tolerância para deslizes… Façamos as coisas com calma, não somos iniciantes! Imagino que, se esse não rolou como papo, deve ter ficado ao menos subentendido entre eles…
E sobre a composição de material novo, lembrando que eles estavam sob contrato para fazê-lo, teve de acontecer em algum momento. Suspeito que um pouco “em cima demais” do deadline estabelecido pela gravadora, para azar deles e o nosso. Suponho que eles passaram no máximo 2 anos escrevendo estas 7 canções, porque tem ainda todas as semanas que envolvem gravá-las, mixá-las, masterizá-las e promover o álbum antes do lançamento, o dia designado pelos chefões da parte comercial! Dois anos não é um bom tempo de preparação para uma banda já veterana, que não precisa compor com tanta velocidade para se exibir ao mundo. Ainda mais com um álbum com poucas músicas. Cada uma tem de ser muito boa, ou as pontuações nas resenhas já sofrem consideravelmente. Além disso, nenhuma delas se tornou um novo clássico da banda, o que também não ajudou a estabelecer concessões ou contemporizações. Acabaram julgando o pacote de forma homogênea. Mas sem dúvida sempre há canções melhores, as que chamamos de canções para singles, para clipes, para abrir ou fechar o álbum, e outras consideradas mais medíocres ou menos chamativas. Normal.
Muitos fãs de longa data entram em negação e quase não consideram All Shall Fall como um episódio legítimo da trajetória da banda. Mas sem dúvida o público que compra lançamentos da Nuclear Blast não se resume a uma rodinha de cricris, então o Immortal foi à mídia e mostrou do que são capazes no estado pré-nova ruptura em que se encontravam (nunca diga “ruptura definitiva”!), como que dizendo nas entrelinhas: Se querem conhecer nosso catálogo, cheio de coisas ainda melhores, comece por aqui, e depois cave mais!
NORTHERN CHAOS GODS
O fim? Sem dúvida não há consenso nem para isso, não importa a perspectiva de quem resenhe ou acompanhe uma banda. Mas, na minha opinião, sem Abbath, este é “o álbum que não deveria existir”. Não se trata de qualidade vocálica nem qualquer detalhe mais específico, mas uma espécie de “conceito da banda”, que neste caso não pode funcionar sem uma figura multi-talentosa e longeva como Abbath. Demonaz não canta mal. É até mais energético que Abbath na função, e mais “black metal”, mas isso não significa que combine com o legado do Immortal. Em alguns momentos parece mesmo que Demonaz tenta imitar o estilo do ex-parceiro (cf. Into Battle Ride). Este com certeza é um álbum mais veloz que os dois últimos, mas falta algo. Where Mountains Rise chega inclusive a repetir o riff de At The Heart of Winter (a música), o que pra mim é bem revelador: nenhuma idéia nova, apenas saudosismo barato. Nesse ponto, a necessidade de fechar um álbum com uma track de maior duração já se tornou um clichê vergonhoso, veja só a duração da última canção!
Não deixe o papo simplista e bipolar dos fãs enganá-lo, contudo: não é o álbum para quem considerou o comeback de All Shall Fall fraco, nem muito menos o inverso. Podemos dizer com a segurança de quem não irá gerar polêmica que nem o último de Abbath nem o único sem Abbath têm o que os demais discos da discografia do Immortal oferecem. E é por isso que, para não encerrar a matéria numa nota baixa, recorro a mais uma curta resenha…
ABBATH, BY ABBATH, BANDA DO ABBATH
…Se um Immortal sem Abbath ainda pode ser considerado Immortal, é mais do que justo cobrir o outro terço do “núcleo da banda” (sem esquecer Tägtgren, Apollyon e outros que colaboraram nos registros mais recentes). Abbath continua produzindo um som derivativo do gélido black metal do Immortal e certamente ouviríamos essas canções sob esse moniker não fossem, por enquanto, os desdobramentos de uma batalha judicial que ora se mostra desfavorável ao músico, porém cujo desfecho é imprevisível. Por razões de “coerência” e “extensão”, não irei resenhar o segundo álbum do projeto-solo do Abbath, nem acrescentar o terceiro, que já está às vésperas de sair no momento em que redijo. Fica como um contraponto único ao Northern Chaos Gods, até por ser o meu favorito desta nova banda, pelo menos no momento atual, e, acessoriamente, por vir com a cara do Abbath estampada em close na capa – nada mais direto podia ligar essa maquiagem icônica ao legado do Immortal!
Álbuns de black metal super bem-produzidos: polêmicos, dividem a fanbase. No caso de Abbath, Abbath (2016), tirando os fanáticos, a crítica é positiva. Dag Erik Nygaard e Danial Bergstrand, os engenheiros de som, criaram uma wall of sound com muita distorção, preservando o senso melódico das guitarras, que poucos álbuns no estilo old school poderiam replicar. Esse tipo de produção mais clean permite que a sempre subestimada performance de Abbath como guitarrista brilhe em meio à escuridão temática e atmosférica de sua nova banda. Ao que consta, ele não é o lead guitar da formação, só cuida da guitarra-base, mas isso não o impede de soltar um ou outro solo mais trad metal que não vêm, esteja certo, em detrimento do resultado final. Outro instrumento sobressalente é a bateria muito bem-coordenada de Creature, que sabe revezar os blast beats com batidas estilo hard rock enriquecendo o trabalho – que podemos classificar como black ‘n’ roll mais uma vez, sem medo das vaias dos ouvintes ortodoxos. Acontece que em produções top-notch como essa na verdade perde o sentido falar de “instrumentos sobressalentes”, porque até o baixo de King ov Hell faz a diferença e é audível em inúmeros segmentos. Enfim, tudo que os músicos performam realmente aparece na gravação final. E é quase um alívio poder ouvir o baixo num álbum de metal em pleno 2016, já às portas da aposentadoria do Matusalém Black Sabbath (que parou em 2017), reconhecido até hoje como um dos únicos do gênero em que o baixo cumpre uma função de primeiro plano!
Sair – ou ser expulso – da marca Immortal parece não ter reduzido a auto-estima de Abbath Doom Oculta; antes, pelo contrário. Além da performance dual digna de crédito, não é justo que ele não recolha o mérito de, em pouco tempo, ter juntado músicos capazes e comprometidos com o projeto composicional em que, obviamente, ele é a força criadora principal, para que tudo fluísse em ordem (uma caótica ordem, em se tratando de um subgênero de black metal que bebe da fonte do Immortal).
A produção clean não deve nunca soar pejorativa mesmo num estilo tão subversivo, porque até as linhas de guitarra mais imundas ficam mais distinguíveis ao ouvido humano, ainda que percam alguns pontinhos insignificantes em termos de atmosfera. Significa que os riffs mais ortodoxos ganham certa aura de destaque em meio aos demais, mais próximos do heavy metal clássico. Os vocais de Abbath, embora muita gente diga que são estacionários, sempre evoluem de gravação para gravação. Mantêm o inconfundível tom raspado e contam com um minimal reverb para resultar diabólico e ameaçador.
Embora o Immortal desde sempre tenha prestado ênfase ao riff work, esse talvez seja o primeiro CD em muito tempo em que podemos dizer que o riff work conduz as composições acima de todo o resto e o resultado é tão superior (volto a me referir ao indelével Blizzard Beasts). Dessa forma, podemos detectar influências de death-thrash mais do que em qualquer outro trabalho-solo do homem (isto é, contando as seqüências a esse disco e o disco único do I), parecendo-se, em alguns momentos, com um Blizzard Beasts Vol. II.
Para os mais “classicistas”, Root of the Mountain fará um sorriso aparecer no rosto, com suas linhas de baixo indiscutivelmente derivadas do Deep Purple no seu auge (a referência clara é o petardo Black Night).
Winter Bane, por outro lado, tem os vocais mais versáteis de Abbath num longo período e um videoclipe de alto nível. São quase 7 minutos de peso e conservação de fôlego em meio a toda uma algazarra que não deixa a peteca cair. Ao contrário da iniciativa de Horgh e Demonaz, temos um trabalho com originalidade, não uma compostagem do que o Immortal já foi só para atender aos fãs menos críticos (e com menos críticos queremos dizer, paradoxalmente, aqueles que mais reclamam, mas de ninharias, evidente).
O estar-egg essencial dos ursos-coelhos em preto-e-branco é um cover de Nebular Ravens Winter, do inimitável – 3ª citação! – Blizzard Beasts (e é notável que no 4º verso dessa canção encontremos a expressão “Winters bane”, explicando a referência no contexto do álbum). Ainda tem um outro, menor: um cover de uma lado B do Judas Priest.
Para arrematar, o álbum é literalmente, em conteúdo, embora não formalmente, uma continuação do que a banda Immortal deveria seguir sendo.
Por que eu coço minha barba? Os motivos da existência são antropomórficos, believe me. Eu dou alma ao que antes era puro impulso. O que este impulso ou protoalma diz a minha elucidada alma? O que posso responder à primeira pergunta? Eu sou/estou irritado e quero fazer isso, alguma coisa, não sei bem o quê… Minhas mãos não querem parar, elas querem continuar, mesmo que meus dedos doam e meu cérebro precise de repouso… Meu corpo nunca está em inércia, especialmente o meu, se podemos estabelecê-lo. Todos somos seres humanos, certo? Mas você é mais inquieto que todos a sua volta, isso com certeza, não tem erro nem tiro no escuro!… Crise de propósito de propósito?! O que está faltando nesta falta que é a náusea que é a vida, Rafael? Vamos tentar responder isso ruminando, pois pelo visto uma resposta categórica ‘inda não ‘tá pronta, oh my, yare yare.
A única a existir. Produzida pelo desacordo, temporário, de menor ou maior duração, entre nosso corpo e uma nova maneira de pensar que adquirimos com a idade, i.e., no nosso devir: não o por que existimos ou não deveríamos existir? mas algo totalmente mais simplório e cabível, menos melodramático: por que esta é minha vida, e não a do que trabalha somente porque quer, do que não trabalha porque não precisa, ou do que tem um emprego em que se auto-realiza? Do que possui a mulher mais bela e condizente com seu temperamento, etc.? Porque no fundo esta é a única questão metafísica, que não pode ser resolvida, a menos que esse desacordo alma-corpo, FALSO, finalmente passe, de alguma forma. Eu só posso ser eu, e não aceitaria ser outra coisa. Na saúde ou na doença, minha saúde e minha doença, em minhas restrições, em minha miopia literal, que o vulgo não consegue suportar ou preferiria qualquer coisa a ter de hospedar… Só a pergunta: por que eles são tão tolos? faz algum sentido, provisório. O avesso por que não correspondo às expectativas deles? é tão absurdo quanto qualquer credo espírita ou imaginar-me fora do meu próprio corpo: este, único mundo, sou eu. Uma férdade, fusão última de verdade e fé. Porque não existe, nem nas leis materiais, algo diferente do que aquilo a que me dedico e aquilo que sofro. Acostumar-se a isso é tautologia e jogo de palavras.
A única a existir. Produzida pelo desacordo, temporário, de menor ou maior duração, entre nosso corpo e uma nova maneira de pensar que adquirimos com a idade, i.e., no nosso devir: não o por que existimos ou não deveríamos existir? mas algo totalmente mais simplório e cabível, menos melodramático: por que esta é minha vida, e não a do que trabalha somente porque quer, do que não trabalha porque não precisa, ou do que tem um emprego em que se auto-realiza? Do que possui a mulher mais bela e condizente com seu temperamento, etc.? Porque no fundo esta é a única questão metafísica, que não pode ser resolvida, a menos que esse desacordo alma-corpo, FALSO, finalmente passe, de alguma forma. Eu só posso ser eu, e não aceitaria ser outra coisa. Na saúde ou na doença, minha saúde e minha doença, em minhas restrições, em minha miopia literal, que o vulgo não consegue suportar ou preferiria qualquer coisa a ter de hospedar… Só a pergunta: por que eles são tão tolos? faz algum sentido, provisório. O avesso por que não correspondo às expectativas deles? é tão absurdo quanto qualquer credo espírita ou imaginar-me fora do meu próprio corpo: este, único mundo, sou eu. Uma férdade, fusão última de verdade e fé. Porque não existe, nem nas leis materiais, algo diferente do que aquilo a que me dedico e aquilo que sofro. Acostumar-se a isso é tautologia e jogo de palavras.
“Deus” é sinônimo de onipotência, o conceito humano para o uno, ilimitado e intangível, uma chave de acesso ao transcendental via linguagem: quatro letras que encerram a idéia de tudo que está por trás da existência e da possibilidade de se ter qualquer idéia. Como tal, “Deus” cresceu com o homem. É seu mito, sua raiz. A determinado ponto foi sistematizado em escrituras – o que não o desvencilha do paradigma panteísta, não obstante: panteísmo é a crença de Deus sendo tudo e todas as coisas. O universo, a natureza. Aqui está o ponto a que desejava chegar para comprovar a inexistência de Deus, se é que o leitor não preferirá legitimá-lo de uma forma diferente… (vide adiante) Serei lógico; acompanhe:
O caráter de onipotência de Deus é sua definição pura. Significa que para tal entidade inexiste o impossível. A realidade inteira é o desenrolar de sua vontade. Como tal, só pode ser ele mesmo (o que é vontade de Deus é deus, e não há o que não seja): voltamos ao Panteísmo, ainda que sejais cristãos. Se tudo é deus, eu também sou deus. Afirmar deus é negar-me a mim mesmo. Penso que sou livre para escrever que sou livre. Tenho autonomia na decisão. A simples crença na assertiva basta ao leitor a fim de negar Deus. Porém, sigamos adiante, rumo aos limites da argumentação: se se aceita que eu sou Deus para não negá-lo, eu me anulo. Eu existo – o leitor existe – e aceitar-se como Deus representando a própria impossibilidade do Ser de existir é pífio. Existo e por isso automaticamente Deus deve ser negado.
Ainda que eu fosse Deus – esse é o único método, entenda o leitor, de poder afirmá-lo (a legitimação em “forma diferente” supracitada) –, ou tudo sou eu (tudo que acontece é minha vontade – sua liberdade acabou de ser formalmente morta), ou eu sou uma PARTÍCULA de Deus. Mas um poder infinito não se divide: a principal característica divina é a unidade, é ser a arrumação coerente do todo. Não existe, portanto, essa conveniente solução intermediária. Retomando, há dois (ou três) paradigmas: 1) TUDO é Deus (e sua Vontade), sob o alto preço de não existirmos (nossas individualidades não passam de ilusão, falsas consciências de Deus regidas por uma, e só uma, verdadeira consciência); 2) NADA é Deus. Esta possibilidade permanece de pé, pois permite que existamos; 3) O indivíduo é DEUS. Incabível. Porém, interessante observar que “3)” não existe senão como subconjunto de “1)”. Deus não pode ser um subconjunto, nem mesmo possuir um subconjunto! Deus não pode existir se há no universo qualquer consciência que levante o problema. Perdemos um deus no momento em que passamos a acreditar nele.
A visão de que cada nação possui o governo que merece é ilusória e precisa ser abolida. Sequer há o que se pode chamar de nação, e não porque o Estado-nação não respeite nações, mas porque o próprio conceito de nação está seriamente em xeque. Não existe o povo, por mais que o tópico-frasal da sociologia coaja qualquer sociólogo incipiente a dizer o contrário. O que acontece em um país como o nosso é a tendência auto-implosiva do Capital: uma plutocracia que impede o movimento revolucionário, porquanto este só representa perigo sendo massivo. Uma vez que estão destruídas as condições para que ele o seja (tome como base a mídia brasileira, que impossibilita o menor pensamento transgressor), fica na mão do indivíduo consciente a decisão: dada a impossibilidade democrática de atingir minhas metas e a inviabilidade de qualquer negociação pacífica com o Estado e demais forças, baluartes da moral do Ocidente, diria um Nietzsche, eu devo lutar e arriscar a piorar ainda mais drasticamente minhas condições de existência neste mundo ou eu devo me conformar, manter minha propriedade, minha liberdade, enfim, meus direitos civis, minha relação com a família, meus estudos e meu emprego? Parece que, diante de impasse de tal ordem, sempre escolheremos a segunda opção. Mas, para ser auxiliado por um provérbio simples contudo verdadeiro, “nada é eterno”. O que se depreende disso? Aparentemente, o momento da luta pela ruptura irreversível do sistema é invariavelmente empurrado para frente e jamais concretizado. Não há como imaginarmos, de fato, que poderia haver uma “anarquização” da sociedade moderna a ponto de transformar poderios incalculáveis como o produto nacional bruto e o exército americanos em cenários tão imprevisíveis quanto as Farc no território colombiano ou as milícias mexicanas em guerra de trincheiras com o Estado. A própria constituição do rebelde como exceção é a quase refutação de qualquer esperança. Para a vida dos ainda vivos no momento deste texto, e do seu autor, o cenário é tão ou mais desanimador: escolho minha profissão estável, minha ficha criminal limpa e meu conhecimento socrático-cristão a contragosto, mesmo ciente de que são postulados inversamente proporcionais à “sociedade” como se constitui de fato (não passando de idealismos vis, disfarçáveis para alguns, mas intransponíveis para todos), por julgar que só encurtaria minha vida se lutasse contra tudo e todos, ou reduziria cabalmente meu já ridículo quinhão. Faticamente, assim funcionam as coisas. Onde está, então, a mágica que torna o inimigo invencível do homem um respeitante do ditado de que “nada seja eterno”? Nele próprio. O invencível (figura sem corpo, apenas a idéia que temos enquanto somos escravos do próprio Ideal) é a vítima derradeira de seu próprio sucesso. As contradições do Capitalismo tornam-se mais agudas à medida que seu êxito se torna mais inquestionável. Há um ponto de ruptura nas auto-vitórias do maleável Capital e da casca de todo seu conteúdo, a moral do Ocidente. As fendas já aparecem. Existe um momento em que as condições de existência do regime não podem ser mantidas nem que se o almejasse: contramedidas apenas aceleram o colapso, e por mais que tal lição seja aprendida o colapso, em si, não pode ser evitado. Não procede a crítica de Marx de que “o que um homem vê, os outros vêem, ou o vêem vendo”, apontando para o fato de que, se o homem faz sua História, então ao se corrigir o rumo da História que Marx queria levar a cabo, a história realizada é o Capitalismo (Fim da História, no qual já depositei minhas fichas). Digamos que apenas se espera pelo inevitável. Longe de uma visão de espírito (neo-hegeliana), trata-se da constatação, pelo homem que se enrolou no pólo natureza-cultura, de que ele, o homem, junto de seus produtos, é a natureza. E pulsa. Como vida, não pode se negar a vivê-la excedendo o limite “x”. Esse limite “x” é o dia da derrocada do sistema capitalista em decorrência das próprias ultra-contradições e da soma das vontades individuais da grande maioria de manter o sistema intacto (o que implodirá as últimas ilusões de chances que tais grupos poderiam possuir). Não me encarem como um profeta, mas como um bom leitor.Sigamos…: a saturação da moral do Ocidente se avizinha. O tal dilema da escolha pessoal, lutar ou se conformar, deixará de fazer sentido. Será o momento de cada um agarrar sua oportunidade. Obviamente, muitos se recusarão a agarrá-la, mas cada fracasso terá seu papel: amantes da vida precisam de seres humanos inferiores para exercerem sua dominação (paradigma natural). Não desejo ser mal-interpretado. Significa que o homem moderno não rompe integralmente com seu passado, uma vez que coexistirá (e coexiste, pois há homens modernos hoje, embora não no comando do que quer que seja) com os pseudo-modernos, criaturas que atualmente parecem ditar a História e que no entanto não compreendem ou não podem evitar o problema futuro de ter compreendido hoje que não se tratam de indivíduos modernos, mas entes mais fracos, pré-modernos, pré-históricos. A diferença fundamental é que no leme da embarcação histórica encontraremos, na coexistência reformulada do fim do Capital, os modernos. Lembre-se que, coletivamente, ao olhar ao redor, jamais fomos modernos. Se você é um moderno e guarda seu tesouro, sua vida pré-moderna será transcendida e transvalorada logo. É bem verdade que muitos nessas circunstâncias morreram sem ver a verdadeira Aufklärung sangrenta. E outros vão morrer. Mas isso fazia parte da modernidade deles. Há alguns modernos que vêm antes dos outros. Nem por isso são menos modernos. A História está sendo feita, não há Idealismo em minha convicção: é que os modernos dão suas parcelas de contribuição desde muito antes deste texto, que aliás nasceu de seus esforços; e embora isoladamente esses esforços não consigam vencer o inimigo chamado de “o invencível”, quem está tramando, neste exato minuto, em laboratório, a própria e inaudita morte são os pré-modernos, figuras que já divisam sua extinção no horizonte (nenhuma contramedida pode surtir efeito se se permanece no âmbito da visão progressista autofágica). Se há algo de desesperador na vida, é a vida, aquela mesma que cria o sentimento do desespero (e já é um privilégio usufruí-lo!), que recai no auto-perceptível fatalismo. Alguns andam lendo meu blog e me apelidando de oráculo. Porém, eu sou o oráculo do fim dos oráculos: a única e caprichosa meta-tendência quem traça são vocês. A tendência do auto-expurgo do mundo. O Ocidente é um monstro que se come a si mesmo e quanto mais come mais julga o prato delicioso sendo portanto apenas bom senso e não qualquer dom premonitório que me permite asseverar que ele nunca deixará de se comer até que suas funções vitais sejam desligadas – porque ele acredita piamente que está cada vez mais corpulento, quando seu aspecto ao observador alheio (o moderno, imerso no estômago do monstro e que pode ser ejetado na ocasião oportuna) é o do definhamento. E não há meios de um monstro que só triturou tudo com seus dentes de repente aprender a fazer outra coisa… É a natureza desse bicho que se crê anti-natural e imortal. Mas o que é a imortalidade? Tem-se de estar vivo para não estar morto, ou para pensar nesses dilemas. E a vida não pode ser anti-natural, posto que da natureza provém. Portanto, sem sentido, o monstro explode. Esse bicho acredita no Fim da História. Mas a natureza não acredita em equilíbrios…
Ambiciono traçar o papel de David Hume e de Immanuel Kant na filosofia moderna em algumas linhas, recorrendo a certo número de observações que considero não menos pertinentes que originais. Kant pode ser entendido sem Hume (embora ilustrar alguns conceitos kantianos com a ajuda de Hume não seja contra-indicado), mas Hume (e suas limitações), hoje, não pode ser corretamente introduzido sem um bom número de referências a Kant.
MENSURANDO A GRANDEZA DE ALGUNS FILÓSOFOS
Hume está para Kant no século XVIII como Feuerbach está para Marx no XIX. E assim como o Hegelianismo informa em grande medida todas as correntes filosóficas posteriores, atribuo ao conceito de Idéia em Platão uma importância essencial para o desenvolvimento dos pensamentos de Hume e Kant. A diferença crucial neste contraste improvisado é que Hegel viveu na mesma Alemanha de Feuerbach e Marx, com poucos anos de diferença, havendo um contínuo ininterrupto entre eles, como uma perfeita fotografia da evolução do Idealismo alemão, quase frame a frame. Platão, por outro lado, viveu antes de Cristo, o que não o impede de projetar sua poderosa luz e sombra sobre qualquer filósofo posterior de renome; portanto, é sua obra que escolho para “mentora” destes dois ícones do século do Iluminismo.
As analogias não se encerram por aqui: Feuerbach foi exímio hermeneuta e crítico do trabalho de Hegel, consciente de todas as suas limitações; porém, ao filosofar da própria pena, o que seria a continuação natural de seu trabalho inicial de demolição, nada de essencial veio a produzir. Ele foi louvado pelo Marx jovem, mas depois severamente criticado pelo Engels maduro em seu livro sobre Feuerbach – que nada faz senão parafrasear e sintetizar as concepções marxianas acerca de Feuerbach, como o próprio Engels admite no prefácio (na ausência de Marx, que já havia morrido, como uma espécie de última homenagem). Com a visão panorâmica adquirida pelos autores Marx e Engels após décadas de desenvolvimento do materialismo histórico, foi tarefa simples para a dupla verificar que havia progredido tanto a ponto de no final da vida passar a ver Feuerbach – que lhe servira de estímulo durante a fogosa juventude – como um mero retardatário, olvidável na história do pensamento, alguém que envelhecera mal como autor de filosofia. O principal erro ou limitação de Feuerbach foi ter se tornado vítima da própria “ressaca esterilizante” do sistema que tanto ajudou a “refutar” – o Idealismo hegeliano –, não havendo possuído a competência para, partindo de um ponto qualquer do próprio hegelianismo semi-defunto, ensaiar um revigoramento da filosofia, o que Marx lograria logo na seqüência a partir de sua releitura do princípio da negação da negação.
Uma “síndrome” similar desponta em David Hume, conhecido como “o ceticismo encarnado na modernidade” (já que na Antiguidade também temos diversos avatares da escola cética que nada lhe devem). Não digo que, em paralelo ao raciocínio sobre Hegel-Feuerbach, Hume “refutara Platão”. Platão é o “filósofo perfeito”, o mais atemporal de todos eles. Mas Hegel segue hoje de maior estatura que Feuerbach, apesar de seus defeitos, hoje visíveis para o estudante vulgar; e Platão permanece intacto como marco na contemporaneidade, ponto de entrada, parada e até arremate em termos de Filosofia, sendo necessário lê-lo e relê-lo, abandoná-lo só para a ele voltar em seguida. Platão seria Pelé contra um Hume “jogador de destaque num clube mediano”. Isso é o que me autoriza a usar esse contraste tão insólito.
O complemento que o platonismo atualmente exige, a fim de que possa ser recepcionado pelos leitores modernos sem muitas perdas, precisa ser retirado dos escritores que estão mais próximos de nós no tempo, ainda que a prosa poética multifacetada de Platão siga inigualável quando lida na fonte. Não diria que Hume compreendera a filosofia de Platão sob a forma de sistema, pois seria leviano de minha parte achatar os escritos de Platão confinando-o, dessa maneira, a um quadro teórico em que todas as partes teriam de estar coerentemente subordinadas a um todo, o que jamais foi sua intenção e, duvido, um desígnio inconsciente seu que acabou por escapar-lhe e se realizar em suas obras. Houve, decerto, ao longo da história, quem compreendesse o platonismo como um sistema, mas estes, quer fossem platônicos ou não, acabaram, através deste procedimento, por diminuir Platão e gerar mal-entendidos em cadeia entre os intérpretes do mestre. Se se encara o platonismo como sistema fechado de idéias, no sentido moderno (como pode-se falar dos sistemas cartesiano, humeano, kantiano e hegeliano, por exemplo), torna-se tarefa simplória exaltar ou execrar uniformemente seu legado, ao preço de eliminar inadvertidamente detalhes e nuances que fazem de Platão “muitos Platões”, cada um deles utilíssimo para nós. É como o velho provérbio de jogar o bebê fora junto com a água da bacia…
Além de erro meu, seria colocar na boca de Hume algo que ele nunca atestou por palavras, e confessar que ele também errou e foi um destes que acusei de “maus leitores” de Platão. Contudo, a noção essencial que Hume deveria incorporar, a fim de desenvolver a contento seu “ceticismo aplicado”, ele incorporou: trata-se da Idéia de Platão, que para não dar ensejo a mal-entendidos chamarei de axioma da representação nestas páginas. Portanto, poderíamos limitar o Platão desta comparação Hegel-Feuerbach-Marx/Platão-Hume-Kant a dois ou três livros, ou até ao sétimo da República somente, que contém a famosa passagem da alegoria da caverna. Hume soube ler Platão e utilizá-lo a seu favor. Mas estacou não muito além de algumas considerações muito específicas sobre o valor da experiência na vida humana. Quem soube, finalmente, sair de uma aporia que incomodava os racionalistas modernos (todos os filósofos que vieram depois dos Escolásticos e Patrísticos) foi Immanuel Kant, a não mais que algumas centenas de quilômetros de distância do próprio Hume, de quem foi virtualmente coetâneo. Foi ele o primeiro, depois do próprio Platão, a entender corretamente em toda a sua extensão o axioma da representação. Quando se fala de “certo” ou “errado” em Filosofia, vale o lembrete: o que eu chamo de correto é o que está em voga hoje (e nunca para todos, evidentemente). Por conseguinte, Kant, enquanto intérprete de Platão, enquanto crítico de Hume, e em boa parte do que filosofou de forma autoral, é um pensador atual e relevante, nosso legítimo contemporâneo. Kantiano é o substrato da Fenomenologia do século XX, mesmo que os fenomenólogos tenham muitas críticas cabíveis que fazer a Kant. É necessário reconhecer heranças para avaliar contribuições filosóficas duradouras.
AS METAFÍSICAS DE HUME & KANT: UM PANORAMA
A base da epistemologia de Hume (epistemologia numa pergunta: como é possível o conhecimento?) inclui considerações a respeito de 3 degraus de uma escada, nitidamente distinguidos por ele,¹ e que abarcariam a condição humana, além de explicarem por si sós um bom fragmento da história da filosofia: (1) os instintos (chamaremos de escola naturalista a dos filósofos que deram primazia aos instintos na explicação da natureza do conhecimento), (2) os sentidos (de onde o próprio Hume extrai a nomenclatura sistema dos sentidos em sua obra Investigação Sobre o Entendimento Humano), (3) e, por fim, o ceticismo, que é a crítica dos dois degraus anteriores, o que Hume chamaria de sistema aperfeiçoado dos sentidos, seu sistema. Embora naturalistas, “sensualistas” (ou empiricistas) e céticos existam em todas as épocas da filosofia, Hume considera os dois degraus inferiores dessa “escada epistemológica” como um discurso sobre o passado da disciplina: com a escola naturalista esgotada, os filósofos se voltaram para a importância dos sentidos ou da experiência para a obtenção do conhecimento. Embora conhecido hoje como “filósofo apologista da experiência”, o segundo degrau não é onde Hume se auto-situa. Ele usa sua nomenclatura de “sistema dos sentidos” para classificar, ora veja!, uma espécie de “baixo clero” da escola empirista, da qual ele se arroga o título de melhorador. Chegamos ao terceiro estágio, seu método cético. Um cético é essencialmente um filósofo, ou seja, o termo traduz a competência na capacidade de duvidar, que é o principal motor do progresso filosófico.
¹ Não com estas palavras. Essa figura de linguagem para explicar Hume é de minha inteira responsabilidade: em nenhum lugar o autor faz qualquer menção a uma escada com três degraus.
Mas e a razão, onde está a razão? “Inimigo” da razão, ou do mau emprego da razão na explicação da natureza do conhecimento, sempre cauteloso quanto aos exageros típicos de escolas do pensamento, Hume só discorrerá sobre ela enquanto subordinada aos sentidos, daí eu não haver sequer incluído a escola racionalista¹ (Descartes, principalmente) nos degraus da minha escada.
¹ Separar os filósofos em escolas e dar-lhes epítetos é didático, mas generalista e inconveniente num nível mais profundo. O reducionismo de chamar Leibniz de “o filósofo da mônada” ou Spinosa de “o filósofo da substância” ou “panteísta” em nada ajuda a entender esses autores. Até epítetos mais aceitáveis como Schopenhauer, o filósofo da Vontade podem encerrar noções muito vulgares e inadequadas. Por isso previno o leitor: ali onde René Descartes é tratado, em livros-textos, como sinônimo de racionalista, há “peguinhas”. Logo abaixo me refiro a Descartes e sua filosofia como “idealismo”, geralmente equiparável a racionalismo. Mas não estaria errado em enfatizar seu lado sensualista ou empiricista, e isso porque os qualificativos sempre dependem de uma abordagem ou contexto. No caso específico da crítica humeana a Descartes, pode parecer que Descartes é racionalista ou idealista e nada mais. Deixo, pois, os leitores de sobreaviso sobre o perigo de “crer demais” em interpretações consagradas. Tampouco deve-se tentar pensar a alcunha idealismo aplicada a ou por um autor do século XVII ou XVIII, na França ou no Grã-Bretanha, como apresentando qualquer correlação considerável com o idealismo platônico da Grécia pré-cristã ou com o Idealismo romântico alemão de 150 anos depois de Descartes! Todo cuidado é pouco.
Para me aprofundar em Hume e para explicar o kantismo, recorro de agora em diante a citações de Hume, que virão entre aspas. Meus comentários, em azul, guiarão o leitor sobre o contexto das afirmações:
N.B.: Além disso, grifei em verde trechos que são considerados refutados pela filosofia séria de hoje, i.e., conteúdo defasado; e em vermelho trechos de suma importância para a exposição presente.
“[A filosofia] não pode mais recorrer ao instinto infalível e irresistível da natureza [naturalismo, mera noção enganosa ou, antes, verificada como impossível de ser alcançada através da ‘equipagem’ do ser humano], pois tal caminho nos conduz a um sistema completamente diferente, que se demonstrou falível e mesmo enganoso.” Refutação do naturalismo e do idealismo cartesiano, duas correntes de pensamento filosóficas – ambas refutáveis já uma pela outra através de ceticismos incompletos ou parciais, segundo Hume. O ceticismo de Hume estabelece-se a si próprio num patamar superior a ambas essas tendências, que são, na história das idéias, afinal, apenas diferentes manifestações do mesmo equívoco epistemológico. Na linguagem de Hume: os naturalistas e os racionalistas erram porque exageram em suas crenças injustificadas. Não duvidam o suficiente.
“E justificar esse pretenso sistema filosófico por uma série de argumentos claros e convincentes, ou sequer por algo que se assemelhe a um argumento, é algo que está fora do alcance de toda a capacidade humana.” Descoberta de que a raiz da imperfeição tanto do naturalismo quanto do pseudo-ceticismo cartesiano são a mesma: o racionalismo, ou a fé na razão, que os primeiros filósofos da modernidade elevaram a uma categoria superior aos instintos e aos sentidos, mas que é mera ficção ou arbitrariedade, i.e., a razão apresenta no fim das contas um conteúdo vazio, contaminado pelos próprios instintos e sentidos dos filósofos racionalistas.
“Por qual argumento se poderia provar que as percepções damente[sentidos e raciocínios] devem ser causadas por objetos externos inteiramente distintos delas, embora a elas assemelhados (se isso for possível), e não poderiam provir, seja da energia da própria mente, (I) seja da sugestão de algum espírito invisívele desconhecido, seja de alguma outra causa que ignoramos ainda mais?” (II)
Começo da compreensão da dialética interior-exterior no homem. Sujeito e objeto são díspares, porém categorias os intersecionam num uno: cores e formas. A mente e uma mesa são objetos materiais, vermelhos, marrons, brancos, pouco importa, sólidos, etc. (I) é uma alusão avant la lettre a um tipo de solipsismo: conjetura-se: e se… todos os objetos exteriores que apreendemos forem apenas criações nossas? despidas de materialidade, meras ilusões? Evocação hiperbólica de noções mais atenuadas, como a das sombras na alegoria da caverna, do criticismo kantiano (que, sublinho, Hume não conheceu) e das próprias considerações de uma filosofia ainda mais tardia a Hume e Kant eles mesmos, i.e., a fenomenologia do século XX, em que entendemos o axioma da representação, sob a alcunha de fenômenos, como meras aparências e ao mesmo tempo como nossa realidade relativa. O (II) seria uma alusão direta à Coisa-Em-Si: uma causa que está além do homem, e que incita à metafísica vã, ou seja, a meras especulações, sem jamais poder ser refutada ou provada. Logo voltaremos a citar a Coisa-Em-Si.
“Reconhece-se, de fato, que muitas dessas percepções não surgem de nada exterior, como nos sonhos, na loucura e em outras enfermidades. E nada pode ser mais inexplicável que a maneira pela qual um corpo deveria operar sobre a mente para ser capaz de transmitir uma imagem de si mesmo a uma substância que se supõe dotada de uma natureza tão distinta e mesmo oposta.”
Poucas linhas, mas tão prenhas de significado! Trata-se primeiramente de uma crítica do materialismo ou objetualismo mais rasteiro, que concede a prioridade à matéria e ao objeto em detrimento do sujeito, continuando o exemplo acima: a hipótese de que as percepções da mente devam ser causadas por objetos externos. O que Hume quer dizer com isso? E com “objetos inteiramente distintos porém assemelhados” à mente? Significa que para o filósofo grosseiro ou tosco, ou isso ou aquilo deve ser escolhido: ou a realidade advém da própria mente (o mundo todo é ilusório) ou a matéria não-viva comanda nossos corpos. Para o torpe filosofar, que só vê extremos ou duas opções incondicionais, sem matizes, era assim que se colocava a questão. Não pode, para eles, haver um compromisso entre o que é tão “distinto”: é certo que nós, seres com consciência, somos feitos dos mesmos elementos (átomos) das naturezas mortas ou do mundo vegetal ou dos insetos, todos sem consciência, mas uma rocha não pode ser igualada a um ser humano, porque não sente nem raciocina! Nessa formação limitante, caso não se queira enxergar o mundo como ilusão de um Eu, recorre-se ao que é igualmente tachado como disparate por Hume: A pedra é como ela é, então ela possui uma faculdade que nem o mais desenvolvido dos humanos possui: a de demonstrar-se a si mesmo. É a solução do realismo exacerbado, que vê no olho do observador da pedra apenas um escravo da própria pedra. Para se provar que a pedra é real (pois se fosse, de outra forma, condicionada pela mente, a pedra seria apenas uma ficção do sujeito), diz-se que a matéria determina o real, e dá-se (a pedra dá!) de antemão aos sentidos aquilo que eles devem sentir, dá-se à mente o que ela deve pensar. A quem se ri do caráter ridículo dessa hipótese, não é outro o motivo do termo “objetivo” em complemento a “conhecimento”, e “objetividade” em ciência dita pura ou bruta, que estamos fartos de ler e ouvir falar: se se quer um conhecimento preciso, tudo deve ser objeto, ou então subordinado ao objeto! Nós não nos curamos, nem mesmo na linguagem técnica, desses atavismos falaciosos…
Em segundo lugar, esta passagem é a assunção humeana de corpo e mente como instâncias irrevocavelmente separadas. Por mais que isso seja desagradável para o leitor atual, é necessário compreender que Hume devia efetuar essa separação para progredir em seu ceticismo, ou estaríamos efetuando uma análise anacrônica e falsa do seu sistema filosófico: para o homem cético escocês não havia nenhum inconveniente nessa dualidade – antes, haveria na unidade mente-corpo. (Perceba que nisto Hume é muito inferior a Platão, que não cinde mente e corpo.)
O corpo representa, nesta instância, os sentidos. A mente a capacidade de abstração. O que a substancia? A matéria cinzenta, o cérebro, nosso sistema cognitivo. Sentidos e razão não possuem qualquer coincidência entre si. Nenhum pode sobrepor o outro, ambos são sempre contraditos e contradizem o outro, mas isto, esta conjugação paradoxal, é o homem. (Vejam que, se há de haver um sentido de unidade em qualquer parte, Hume vê no ser humano, o invólucro de mente e corpo; mas não admite mais do que isso: não admite a sinestesia ou mistura entre razão e sensação.)
Voltando à dicotomia sujeito-objeto (reino da distorção X reino do “real”): por que é tão difícil reconciliá-los nesse sistema filosófico? Nós sequer possuímos uma “imagem objetiva” de nosso próprio corpo, seja internamente seja externamente. Ex: não sabemos a prioricomo são nossas entranhas e como funcionam nossos sistemas biológicos como o digestório-excretório, o circulatório, o respiratório, etc., antes de uma investigação racional sobre tais temas. A mente também não pode comunicar conceitos ao corpo, e ela mesma não se conhece fisicamente ou, como queira, no nível espiritual, de forma objetiva, dadas nossas intrínsecas e palpáveis limitações. Não há uma instância maior-que-o-real a que se possa recorrer para a arbitragem imparcial de todo esse impasse: no sonho, basta que se acorde. A causa está fora do sonho, por isso o sonho pode ser objeto de investigação do sujeito acordado. Na loucura, o louco não pode investigar-se, mas pode ser objeto de estudo. O homem, o filósofo, não pode investigar-se e investigar o mundo da mesma forma como o sonhador investiga o sonho e a medicina investiga o paciente (nas Investigações Hume descreve a medicina como ciência abstrata, o que seria impensável hoje!). Neste caso, se é dada primazia ao sujeito, estamos dentro de um sonho, chamado mundo, e somos portadores de monomanias ou loucuras parciais que não podemos exatamente explicar ou esclarecer. Eis o que se pode construir, com segurança, sobre as bases de um ceticismo esclarecido (humeano). São nossos limites epistemológicos. A única alternativa seria recair no problema anterior, o da objetivação integral da realidade, o império do objeto ou da coisa – seres humanos como coisas. Logo, a alternativa não é viável.
“PERGUNTA – É uma questão de fato se as percepções dos sentidos são produzidas por objetos externos a elas assemelhadas – como se decidirá esta questão?”
Ainda o mesmo. Nossos olhos enxergam outras matérias porque são matéria também (idênticos, em última instância, ao que observam), ou nossa visão (sentido) cria a matéria tal qual a observamos? Hume encontra-se preso entre os dois extremos e embora não se disponha a escolher de maneira cega entre “o ovo ou a galinha”, sua única solução, que ele reconhece como parcial (duplo sentido), é pender para o lado do sujeito no binômio sujeito-objeto. Parcial porque a filosofia não pode concluir sobre aquilo que não pode experimentar, (1) e parcial porque aquilo que parte de um indivíduo não é “realmente” uma “realidade” (imparcial) (2).
Tal debate parece hoje inocente, mesmo da perspectiva epistemológica. Até por isso é necessário esclarecer o leitor, no entanto, que tampouco fala-se aqui da investigação física sobre o fenômeno da visão, da óptica e das cores (já que usamos presentemente este sentido como exemplo, e não à toa: a visão é dos 5 sentidos de longe o mais explorado pela filosofia ocidental, em detrimento do tato, paladar, audição e olfato), que até a época de Hume não estavam solucionados nas bases atuais (a resposta encontrando-se na luz enquanto onda – para esta questão, podemos ignorar suas características de partícula – em interação tanto com a retina humana quanto com o objeto). Não é este “ângulo cru”, ou de ciências exatas, que interessa neste livro de Hume. Ele está, ao invés, a se perguntar: Que é a verdade, qual é o fundamento do real? (Dimensão epistemológica)
Essas mesmas perguntas, repito, são para nós inocentes, pois a filosofia kantiana decidiu-se sobre esse aspecto, sem recorrer quer ao ovo, quer a galinha, dando o passo que Hume hesitou em dar ou, antes, escolhendo deliberadamente não dar o passo, e justificando esta não-ação, no que ficou conhecida como a síntese kantiana (ou ainda crítica, simplesmente) das correntes filosóficas importantes que o precederam. Em Kant, não é dada primazia à faculdade do olho (uma câmera senciente, por assim dizer, i.e., uma câmera ligada a um sistema nervoso) nem aos objetos. Reconhece-se que este era um falso dilema. A solução é o que eu chamei anteriormente de axioma da representação. Dá-se ênfase ao caráter relativista da apreensão do mundo inerente ao ser humano e ao “fenômeno”, conceito que detalharemos a seguir.
Nem existe nada de que se possa falar que seja externo ao ser (um cogitado real ou coisa-em-si), nem é o sentido do ser que cria ilusões sensórias em detrimento de acessar uma suposta realidade não-sensível, independente (o que poderíamos, hoje, tanto chamar de coisa-em-si – de novo, ou seja, tanto no extremo objetivista quanto no extremo subjetivista deparamo-nos com ela – como de absurdo). O ser é a própria realidade que observa; a pedra, a mesa, a luz, o olho humano são fenômenos (representações, aparências), única forma da realidade regida pelo tempo-espaço. Esse novo binômio agora introduzido, o tempo-espaço, é nosso único modo de vivência. Nosso corpo e mente já não se encontram cingidos à maneira humeana no sistema kantiano, posto que enquanto fenômeno eternamente aparente (ou seja, em modificação) ele é em si a elucidação dos conceitos de espaço e de tempo, conteúdo, forma e sua variação, que estão embutidos em nossos instintos, sentidos e cognição (se desdobra num e noutro desde que existe, até que deixe de existir – agora sensação e razão também são capazes de coexistir).¹ A realidade é relativa ao indivíduo porque dois corpos não podem ser conhecidos ao mesmo tempo da mesma perspectiva, nem ‘no mesmo espaço’, sendo cada apreensão fenomênica um ‘caso isolado’ na perspectiva de um só indivíduo ou de vários. Se Hume ainda falava de um Absoluto, mas ao mesmo tempo defendia haver uma impossibilidade prática de acessá-lo, Kant, na medida em que não trata da coisa-em-si de forma moral (ao menos não até redigir a Crítica da Razão Pura Prática, mas esta obra só nos interessará como contraponto a ser marginalmente criticado, neste artigo), mas apenas a cita (como que em referência à filosofia anterior), dispensa o absoluto, ao tempo em que, justamente, assim procedendo, conserva-o, somente que sob a forma do fenômeno (que não conhece distinção sujeito-objeto), único absoluto de seu sistema.
¹ Leia a nota de rodapé sobre a memória, no próximo parágrafo.
“RESPOSTA – Pela experiência.”
Como antecipei, Hume, vacilante, acaba por escolher o sujeito, embora de forma muito mais restrita que os subjetivistas (empiristas) que lhe precederam. E como Hume não segue pela senda kantiana, ele entende que o real (o fenômeno, ou ilusões diáfanas de acordo com seu sistema, trevas que ele tentará diminuir humildemente) possa ser paulatinamente investigado pela experiência (“sentidos acumulados”, “razão orientada pelos sentidos”, “sentidos orientados pela razão” até, como queiram, embora soe herético para os ouvidos de um Hume – e também “memória”).¹ Sucede que, na fenomenologia póstuma chega-se ao veredito: a experiência humana não “acumula” fatores necessários para o entendimento da própria experiência ou do real, como diz Hume, simplesmente porque os fatores necessários são tempo e espaço,¹ que são inerentes ao ser enquanto ser (e a única manifestação do ser é através do devir fenomenológico).² Em outros termos, Hume procura uma solução que já estava solucionada, sendo sua investigação tautológica ou até mesmo pré-tautológica, contraproducente e falsificadora (já que podemos entender o mundo dos fenômenos como, agora sim, a verdadeira tautologia).
¹ Como esta é uma INTRODUÇÃO À EPISTEMOLOGIA destes dois autores, achei por bem não carregar a cabeça do leitor e complicar demasiado a exposição logo de início com um último fator enunciado por Kant na sua primeira Crítica que completa um “tripé de fundamentos”, fechando o círculo de seu axioma da representação. Se possível gostaria de ter deixado esta parte fora até, mas como Hume, a dado ponto das Investigações cita a própria “memória” e o termo que aqui é conveniente citar, i.e., “aprendizado das causas e efeitos”, vejo-me compelido a citar, ao menos nesta nota de rodapé, o “terceiro elemento” da tríade kantiana, embora a explanação do sistema seja já auto-suficiente recorrendo-se estritamente a tempo e espaço e nenhum prejuízo decorreria de não haver falado neste terceiro aspecto, nem decorre de só dele falar agora. O fator que explica a memória e o acúmulo de experiências, no sistema kantiano, é o princípio inato de apreensão de causa-efeito; se já não fôssemos equipados desta intuição elementar, a própria passagem do tempo ou as mudanças do espaço (que são, em realidade, um único fenômeno que se separa, para nós, na expressão da linguagem) não seriam apreensíveis, o que demoliria todo o sistema. E na verdade quando falamos em espaço e em tempo já intuímos, por assim dizer, noções como a hegemonia de causas e efeitos no real, nos fenômenos. Nosso próprio conceito ou abstração mais ingênuo do que seria nossa memória envolve um recipiente, um contêiner, uma caixa, por exemplo, extensa e tridimensional, finita, capaz de armazenar, em diferentes etapas e períodos, informações, sendo que esta caixa nunca nos parecerá totalmente vazia nem cheia, embora deduzamos que ela tem um limite determinado – ainda que nem evoquemos aqui o esquema tão laborioso e complexo de um cérebro para a neurociência mais em dia, subdividido em inúmeros segmentos, dezenas de bilhões de neurônios, e com todas as regras das sinapses, i.e., das idas e vindas das ‘informações’ enquanto impulsos elétricos de ordem infinitesimal, e sua relação com as terminações nervosas por todo o corpo…, ainda que nem evoquemos tudo isto, esta imagem inocente da caixa já é o suficiente. Este modelo cerebral citado que, antes de dissecar um corpo, um ser humano não conhece em sua aparência nem em qualquer de seus atributos (não é exclusividade do cérebro: o mesmo se poderia dizer do intestino, p.ex.) a não ser através da educação ou instrução, direta ou indireta, comunicada por seres humanos que obtiveram estes dados no passado, i.e., numa palavra, mediante a razão. Em suma, a noção de causa-efeito nada mais é do que a articulação lógica que possibilita nossa compreensão (inata) de tempo e espaço como fundamento do real e articulação unitária regente de todos os fenômenos. De forma ainda mais simples: a dita razão ou conhecimento abstrato (a posteriori) nada mais é do que um tipo de super-conhecimento a priori, com diferença só de grau, mas não de qualidade, posto que não importa quão complicado seja esse conhecimento intelectual, a ele se remonta através de incessantes aplicações do princípio causa-efeito. Este insight kantiano assinala, novamente, a inédita compreensão moderna de outra parte da filosofia platônica: sua doutrina da metempsicose conjugada com a teoria das reminiscências, e o conseqüente postulado epistemológico de que “nada aprendemos, apenas nos lembramos do que sabemos”. Ou seja, para Platão até a sabedoria é um a priori, todavia é óbvio que ele não usa esta expressão.
² Se de alguma coisa eu me orgulho é de poder ter exposto o sistema kantiano sem vários dos termos esdrúxulos utilizados por Kant! Aquele que já se aventurou a lê-lo sabe do que estou falando… Schopenhauer, talvez o maior admirador de Kant que já existiu, Nietzsche e muitos outros não nos pouparam de comentários acerbos sobre como é árida sua leitura, como Kant escreve mal e complicado sem necessidade, etc.! Um dos termos que me guardei de usar no parágrafo acima, mas que já havia usado em negrito no artigo (e na nota ¹ acima), foi o a priori. Qu’est-ce que c’est, l’a priori kantienne? Que vem a ser esse tal a priori kantiano? Nada mais do que a afirmação positiva de Kant, que para ser percebida e enunciada por Hume exigiria que ele abdicasse de seu ceticismo esclarecido num ponto decisivo: como o homem não precisa aprender sobre espaço e tempo, já nasce sabendo-os, diz-se que tempo-espaço são percepções a priori de todo ser. Hume não admite conhecimentos a priori, e esse é o calcanhar-de-Aquiles de seu sistema.
“Recorrer à veracidade do Ser supremo para provar a veracidade de nossos sentidos é, certamente, tomar um caminho muito inesperado.” Aqui Hume está se referindo aos filósofos pré-modernos, no meio dos quais é suma autoridade, sendo seu ceticismo completamente equipado para refutar suas doutrinas exotéricas. E, coisa inusitada, o próprio Kant, na Crítica da Razão Pura Prática, continuação moral de sua clássica e inauguradora Crítica da Razão Pura, retrocedeu e recaiu no próprio erro que já havia superado anos antes: atribuiu ao Ser supremo mediado pela ética cristã no mundo fenomênico o fundamento de nossa conduta social! Ele fez isso porque não encontrou outra solução metodológica para o dilema moral que suas conclusões no primeiro livro traziam (ou que ele imaginava que traziam, seria mais apropriado dizer): a queda no niilismo desenfreado, uma vez que os fenômenos são relativos e, portanto, realidades últimas individuais e desconexas umas com as outras. Este novo modo de ver, que hoje chamamos mundano ou imanente, parece de súbito a Kant (crise de meia idade?) despido de algo muito importante, uma comunicação com o que batizamos de transcendência. No velho sentido, transcendência pode se referir a uma coisa-em-si, ou seja, a algo inalcançável para o ser humano; mas em Kant a transcendência ganha o novo sentido de realização moral mundana sob um princípio mais elevado. Talvez ele sentisse que faltava completamente ao homem moderno o senso (ironicamente) a priori de virtude que parece emanar do homem grego. Faltava, segundo ele, a explicação de como era possível a ética, isto é, a ação-no-mundo ao mesmo tempo individual e coletiva, isto é, a ação do homem de forma que fosse possível a vida estável em sociedade, fora da situação hipotética hobbesiana do estado de natureza (todos os homens contra todos os homens ou guerra perpétua ou ainda guerra civil, caso ocorresse numa civilização já constituída) e guiada por e para fins mais nobres do que a própria mundanidade fenomênica. Sua bem-conhecida resposta para esse relativo desespero veio na forma do imperativo categórico. Sua premissa é válida para poucos séculos europeus de civilização cristã, ignorando portanto qualquer desenvolvimento histórico tais quais a manifestação do Estado antes do modelo constitucional moderno, as civilizações anteriores, as civilizações não-européias e as civilizações póstumas, todas elas fenômenos transcendentais (no seu sentido) e estáveis, regidos porém por morais, culturas, religiões e códigos de ética alternativos ao tempo-espaço específico de Kant, i.e., a monarquia constitucional européia do século XVIII. Enquanto o grego antigo da polis achava uma orientação deontológica dentro de si mesmo e da comunidade de seus iguais, o homem kantiano ideal tinha de recorrer novamente ao Deus monoteísta judeo-cristão. Kant retomaria uma epistemologia independente da coisa-em-si, restituindo o transcendental à sua origem fenomênica, no seu terceiro trabalho clássico, a Crítica da Faculdade do Juízo, num campo mais delimitado, contudo: a fim de explicar a possibilidade da Estética.
“Este é um tópico, portanto, no qual os céticos mais profundos e mais filosóficos sempre haverão de triunfar quando se propuserem a introduzir uma dúvida universal em todos os objetos de conhecimento e investigação humanos.” No sentido aqui atribuído ao ceticismo, todos os trabalhos filosóficos ainda válidos para nossa própria idade foram efetivamente legados por indivíduos céticos, sem reparos.
“É universalmente reconhecido, pelos modernos pesquisadores, que todas as qualidades sensíveis dos objetos, tais como o duro e o mole, o quente e o frio, o branco e o preto, etc., são meramente secundárias e não existem nos objetos eles mesmos, mas são percepções da mente que não representam nenhum arquétipo ou modelo externo. Se isso se admite com relação às qualidades secundárias, o mesmo deve igualmente seguir-se com relação às supostas qualidades primárias de extensão e solidez, as quais não podem ter mais direito a essa denominação que as anteriores. A idéia de extensão é inteiramente adquirida a partir dos sentidos da visão e do tato, e se todas as qualidades percebidas pelos sentidos estão na mente, não no objeto, a mesma conclusão deve alcançar a idéia de extensão, que é inteiramente dependente das idéias sensíveis, ou idéias de qualidades secundárias. Nada pode nos resguardar dessa conclusão a não ser declarar que as idéias dessas qualidades primárias são obtidas por abstração, uma opinião que, examinada cuidadosamente, revelar-se-á ininteligível e mesmo absurda. Uma extensão que não é nem tangível nem visível não pode ser minimamente concebida, e uma extensão visível ou tangível que não é nem dura nem mole, nem preta nem branca [Hume quis dizer: sem cor], está igualmente além do alcance da concepção humana. Que alguém tente conceber um triângulo em geral que não seja nem isósceles nem escaleno, nem tenha qualquer particular comprimento ou proporção entre seus lados, e logo perceberá o absurdo de todas as noções escolásticas referentes à abstração e às idéias gerais. [Em nota] Tomou-se de empréstimo esse argumento ao Dr. Berkeley; e, de fato, a maior parte dos escritos desse autor extraordinariamente habilidoso compõe as melhores lições de ceticismo que se pode encontrar entre os filósofos antigos ou modernos, incluindo Bayle. (…) Ele [Berkeley] declara, entretanto, na folha de rosto (e sem dúvida com grande sinceridade), ter composto seu livro contra os céticos, bem como contra os ateus e os livres-pensadores. Mas todos os seus argumentos, embora visem a outro objetivo, são, na realidade, meramente céticos, o que fica claro ao se observar que não admitem nenhuma resposta e não produzem nenhuma convicção. Seu único efeito é causar aquela perplexidade, indecisão e embaraço momentâneos que são o resultado do ceticismo. [do ceticismo = do filosofar]”Aqui Hume estava muito próximo de chegar ao criticismo kantiano, por exemplo. Diríamos que estava “quente”, mas que alguns parágrafos à frente já havia “esfriado” de novo…
“Pode parecer muito extravagante que os céticos tentem destruir a razão por meio de argumentos e raciocínios, contudo esse é o grande objetivo de todas as suas disputas e investigações.”
“A principal objeção contra todos os raciocínios abstratos deriva das idéias de espaço e tempo; idéias que, na vida ordinária e para um olhar descuidado, passam por muito claras e inteligíveis, mas, quando submetidas ao escrutínio das ciências profundas (e elas são o principal objeto dessas ciências), [Aqui Hume se refere à Escolástica, o que nada tem a ver com nosso conceito de ciência profunda – para ele era a ‘velha metafísica’ somente.] geram princípios que parecem recheados de absurdos e contradições.” Significa, ainda, para além de uma crítica à Escolástica: podemos abstrair inúmeras conclusões físico-matemáticas falsas acerca do espaço e do tempo, o que seria produto de um uso indiscriminado e mal-feito da razão, mas o que há de empírico e sensível no tempo e no espaço é, por sua vez, irrefutável, indiscutível mesmo, ignorando e destruindo qualquer conceito ou abstração impróprios, em última instância. Daí é fácil intuirmos por que o espaço-tempo é a base do kantismo: eis a noção mais imediata e impregnada no Ser, a condição de possibilidade de todos os fenômenos e representações.
“Os assuntos ligados à moral e à crítica são menos propriamente objetos do entendimento que do gosto e do sentimento. A beleza, quer moral ou natural, é mais propriamente sentida que percebida. Ou, se raciocinamos sobre ela, e tentamos estabelecer seu padrão, tomamos em consideração um novo fato, a saber, o gosto geral da humanidade ou algum outro fato desse tipo, que possa ser objeto do raciocínio e da investigação.” Longe de mim, ao demonstrar que a epistemologia kantiana é, em síntese, a superação da epistemologia humeana, rebaixar ou relegar Hume a um canto irrelevante da história dos pensadores.Nesta passagem, por exemplo, se vê com assaz clareza que Hume, apenas 13 anos mais velho que seu ainda mais celebrado “rival”, respirando a mesma cultura portanto, poderia muito bem ter sido o autor de todo o criticismo kantiano, se rumasse por veredas não muito distintas de seu próprio método, posto que essas linhas por si só contêm em germe não só as conclusões kantianas mais sublimes (como os postulados da primeira e da terceira Críticas) como até o sensato corretivo dos devaneios kantianos sobre a moral (segunda Crítica)!
Minha idéia de escrever detidamente acerca de Hume e Kant num artigo veio-me como de supetão, lendo Hume. Em caso de que essa “estranha vontade” me ocorra novamente, continuarei a série, esmerilhando outros filósofos, sob o nome mais geral de HISTÓRIA DAS IDÉIAS.
Texto recuperado de sábado, 18 de julho de 2009 – com supressões para preservar identidades de terceiros
Sobre o incômodo de ser filmado, fotografado, gravado e exibido por aí. Essa “Síndrome de Glauber Rocha” (que declarou que quem se sentia à vontade à frente de uma câmera segurando um microfone deveria ter sérios distúrbios mentais) sentida na carne por quem, após o momento de aperto, pergunta ao amigo mais próximo: “Como me saí?”.
“Esse constante mal-estar, que é a captação da alienação de meu corpo como irremediável, pode determinar psicoses como a ereutofobia; tais psicoses nada mais são que a captação metafísica e horrorizada da existência de meu corpo para outro.” SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 443 [negrito meu]
Quanto mais amor-próprio, mais náusea (a nomenclatura é sartriana) diante dessas representações “objetivas”. A prova de que eu não estou equivocado é que me gosto ao espelho. Talvez já não me goste no espelho do elevador, acompanhado. Talvez deteste essas minhas extremidades anti-Popeye. Gostava de ser tão maior que minhas namoradas – estilo protetor. Outrossim, o beijo é sempre belo. Não cheguei à louvação do sexo-espelhado de D., no entanto!
Deve ser a natureza da lente viscosa do equipamento, que tira meu brilho e minha luz. O sol é meu amigo! Os lixos se sentem coesos entre si. Mas basta ver uma mulher para saber que ela se detesta quando acorda.
“Diz-se comumente que o tímido se sente ‘embaraçado pelo próprio corpo’. Na verdade, esta expressão é imprópria: eu não poderia ficar embaraçado pelo meu corpo tal como o existo. Meu corpo tal como é para o outro é que poderia me embaraçar.”Ibid.
Ninguém tem vergonha de sua voz idiossincrática. Minha neurose platônica: quem sabe os outros me percebam como eu realmente sou! Desses trastes, quem é que consegue se ler imaginando um ser brônzeo como eu detratando aquilo tudo, aquele castelinho de areia? De pavão a verme num segundo.
Narcisista? Eu diria que esse mundo da super-exposição é o contrário! Álbuns do Orkut: como alguém gostaria de ser visto. L., a magra. T., o sério. Eu, o melhor. Ma., a mulher. B., a sedutora. Me., a misteriosa, psicodélica, elegante. Tai, a audaz. Iza, a mínima. Tc.: ainda mais bela e irresistível. Dh.: suprema e centro do universo. S.: o eterno boêmio. F.: a despojada. Mas eu… eu matei meu alter ego, me tornei o alter ego dos outros. “Que foto horrível!” “Obrigado pelo elogio, sem tonsilas!”. E aí vem a tendência das fotos de banheiro, das fotos de chupeta…
Concluindo: não se trata de uma lei “quão menos satisfeito consigo, mais o sujeito se apreciará em terceira pessoa”; o artista é a refutação disso e é o meu ideal. Ele se exprime bem. Um texto meu é o ápice da beleza. Devo maximizar isso corporalmente. Creio que vim tendo o êxito que é possível. E, aliás, quanto à lei, pelo contrário, eu até exagero nesse desagrado. Uma gorda horrorosa seria realista. São “sem conserto”: a vantagem da graciosa. O fraco: desenvoltura que parece maior na foro (“sou ela!”).
Outra coisa: por que sempre me decepcionava com as fotos dela? Se já a via assim! Fusão de essências?
Explicação do meu ideal e síntese do meu dilema amoroso:
O que se sucede é que meu tipo de arte vai CONTRA toda a estética. Só mulheres esquisitas podem vir a gostar de mim. Mas minha carga já é forte demais para eu ter o mesmo tipo de preferência… Eis o impasse! É como se houvesse dois Rafaéis: o jovem hedonista de 21 e o mestre trágico par excellence. Eu quero a bela, harmônica, simétrica, sensível a minha assimetria.
“jamais encontro meu corpo-Para-outro como obstáculo; ao contrário, é porque nunca está aí, porque permanece inapreensível, que tal corpo pode ser importuno (…) Eis por que o empenho do tímido, após constatar a inutilidade de suas tentativas, consistirá em suprimir seu corpo-Para-outro.” [sublinhado meu]
Deve significar alguma coisa o fato de eu morar no quinto andar, ter 20 anos de idade e uma média normal de ascensos e descensos e nunca ter ficado preso no elevador. Qual seria a reação de um aparvalhado que se vê preso em uma caixa de metal? Chamar alguém, apertar botões, resignar-se? O celular deveria ser usado apenas de terça a quinta, se é que se me entende.¹ Não sendo emergência digna do Corpo de Bombeiros, o telefone serviria tão-somente para avisar os pais. Descendo ou subindo? Indo ou voltando? Sozinho e faminto? O fluxo burocrático e estomacal também fazem a diferença. Se acompanhado, do sexo oposto? Quão íntima? O mais curioso é que nesses casos – sempre, aliás – o vizinho é o menos próximo. Sou muito mais vizinho dos mendigos e dos “inganados” (perdão, ingazeiros) que do Aloísio. Perder-se-ia uma prova ou um dia de trabalho? Ou um gol do Ronaldo…
¹ Post-scriptum 11/03/2021: Meus pais nunca estavam por perto entre sexta e segunda-feira.
Quando escrevo, explodo. É a única forma de “dopar” minha acelerada pulsação mental. Doutores indômitos receitariam drogas. Acho que não preciso de drogas receitadas…
Preciso ser contra atletinhas de futebol americano, namoradeiros e namoradeiras incipientes e, sem dúvida, universitários sem noção do ridículo e do vidro blindado. Por que não largo esta caneta soerguida por algo flácido e promovo gastos de energia melhores? Talvez eu devesse ouvir a fase pop do Metallica, ler meu trigésimo quinto livro – nessas férias – ou simplesmente filar alguns salgados… Durante todo o jantar de gala, quem riu de maneira mais franca de meu humor tolo foi a empregada. Aliás, é preciso que essa hesitação em hora de chamar o servo pelo nome seja pontuada. Ter vergonha de ter um subordinado – porque o real embaraço é não saber lavar os pratos.
Quanto ao iPod, ele é o novo cachorro: a equivalência em miniatura do dono, só que um pouco mais esperto.
Acabo de desentalar minha garganta – em tempos de inchaço. Maldita e derradeira estação.
Uma coisa que andei notando é que todos aqueles que precisam ser rivais eternos só não rescindiram o contrato – ou perfuraram o duelo – por ocasiões extraordinárias. Exceções das exceções, a exata probabilidade de complexos de molécula virarem célula, é do que chamo:
Meu vizinho e amigo de infância e sua família tão elevada (“eles rezam muito, eu já estou no céu” – e eles têm três carros, eu sou Napoleão!) jamais terem encontrado referências negativas deles mesmos em mim – falo mal pelas costas e sobretudo pela frente, porém, quando mais seria necessário, para o blog leitor não há! Um mundo de malversações que se dissipa sem que o afeto pelo filho seja sequer ameaçado – talvez a mais grave ofensa por mim praticada, a seus olhos lívidos, seja meu cabelo grande. “Vais pegar uma pneumonia!”
Meu pai segue inabalável como herói e anti-herói da trama;
Aqueles que deviam ser esquecidos e deserdados voltam como bumerangue! E aqueles que, penso, estão no rol dos lembrados, estes são bumerangues falsificados. Luciana “do Bar” e tucano malvado prosseguem no jogo – peões. Mas não a prima do curitibano abobalhado. Priscilas e Patrícias diante das quais o melhor é não fazer nada.
Texto originalmente publicado em 8 de julho de 2009, porém escrito (sem boa parte dos parênteses) em 22 de março de 2009
PERGUNTA: Como a história se divide em dois, ou melhor, como precisamente ela se desenrola, tomando por base os principais autores e idéias dos espectros trágico e cristão que conhecemos? O tempo retilíneo cristão dá sinais, pelo meu intermédio, de que não tem a mínima capacidade de contra-atacar. Uma segunda pergunta é: eu tenho uma repetição na História circular, assim como um antípoda perfeito? Na verdade dir-se-ia que tenho infinitos, mas só preciso de um (dois) exemplo(s), o igual e o imensamente diferente – as sociedades, por mais contingentes, também parecem obedecer tão-somente a uma dupla de deuses, que se revezam no trono (Dioniso e Apolo).
Se temos Nietzsche e Sócrates, as duas pedras-de-toque do movimento da roda, resta uma indagação: se o alemão está “na base” do círculo, Sócrates está a 360° dali – ou seja, ALI, num novo círculo –, a 180° dali (no ponto mais distante do primeiro no perímetro da roda)…? E uma segunda indagação: se Nietzsche e Sócrates se encontram em opostos, o caminho de um a outro é uma “marcha a ré” ou uma seta de mão única? Se o primeiro for verdadeiro, é um semi-círculo e não uma circunferência. Além disso, os primeiros pensadores que vêm depois de Sócrates são “iguais” aos primeiros depois de Nietzsche (embora de sinal trocado) ou iguais essencialmente aos últimos antes de Nietzsche (decorrência da dúvida do fluxo)?
Obviamente, não existe alguém idêntico a mim depois de Cristo, tão-somente um perfeito anti-eu. Meu próximo eu, assim como meu eu anterior, são impossíveis de encontrar em registros históricos e estão, respectivamente, no fim da próxima era cristã e no começo da era grega (aqui eu ainda não havia desenvolvido o pensamento circular completo!). A questão não aborda, portanto, dois Nietzsches (espaço de 5000 anos, do que nada sabemos), mas um Nietzsche e um Sócrates e como essa dicotomia se constituiu. Se os pós-modernos são sofistas, parece que a roda está girando em sentido contrário (exatamente!). Então, retrocedendo (talvez o leitor mais atento já tenha entendido por que escolhi o termo acima para batizar esta série de resgates de artigos), encontraremos o legado de Sócrates: Marx é Platão, Hegel é Aristóteles. São Tomás é Agostinho.
Operação inversa: se os estóicos e os eudemonistas são os existencialistas, Zenão e Epicuro seriam Camus e Sartre (retificação póstuma: Zenão e Epicuro são posteriores a Sócrates!). Homero seria Shakespeare. Cristo estaria vindo… Ou quem sabe já veio… Quem seria meu antagonista ideal (eu já me fiz essa pergunta infindáveis vezes)? Alguém lutando por ordem antes do surgimento de Sócrates faz mais sentido que depois… Do lugar onde estou não posso analisar, dados os pontos cegos? (Ou talvez eu não queira analisá-los; ou não se pode tirar conclusões; ou as conclusões que se podem tirar são que “as peças não se mexem após esse acréscimo de sabedoria”.)
Inconcluso (intensa pesquisa histórica dos séculos VI a.C. a III a.C.? Se eu tiver descoberto uma lei do cosmo eu terei sido implacável na minha busca pela Verdade. O que um gauche aspirante a professor preocupado com seu futuro de longo prazo teria feito para se resolver?).
“Prever quando um gênio irá nascer e o que ele terá para dizer”
“Comte ficou datado muito depressa” – corrobora a contra-mão
(Três dias depois desse manuscrito durante uma aula na universidade eu teria a idéia de escrever “Hegel, Marx e Nietzsche: Aristóteles, Platão e Sócrates de cabeça para baixo”, como se anteviu pelo fim do penúltimo parágrafo – vide arquivo –, o que responde algumas das dúvidas listadas acima (já “proto-respondidas”, em negrito). O “pulo do gato” foi ter lido a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de autoria do jovem Marx.)
“Exprimia uma vontade de sentar-se debaixo de uma árvore no meio do nada e nunca mais ser encontrado”
Escrever um livro: só quando eu tiver o meu espaço, os meus pensamentos, o controle sobre as coisas e, o principal, poucas coisas.
Pensei em alguém com um colchão e um conhaque em um cômodo – cubículo – de paredes descascadas. Havia ainda um lavabo mínimo e uma “louça de cozinha” – na verdade outra pia simples, no próprio quarto. Seu hábito preferencial é caminhar sem trajeto fixo enquanto fuma e pensa. Pensa cometer um crime. Está desempregado e seu dinheiro se aproxima do fim. Não pensa em pedir auxílio para a família. Retraiu-se, escondeu-se de todos os amigos, desde que está alojado ali. Fará uns bicos por alguns fins de semana. Lavar carros, atuar como garçom. Mas não pensa em converter mais nada em rotina. Pensa na prostração que o levaria à morte por inanição. Mas se julga de índole fraca para isso – acabaria desistindo. Talvez um crime banal e a reclusão com subsistência subvencionada pelo Estado? É branco e sua família acabaria por interceder. Um jovem de berço ligeiramente nobre já não pode pensar em uma vida de cárcere… A não ser que fizesse da fuga sua única constância. Que matasse alguém que não podia matar e tivesse de se considerar um foragido irrecuperável. Matar o pai! Brilhante, porém nada inédito. E agora tudo não passava de idéia mal-resolvida… De sua vida pregressa, nada se sabe OU não se trata de alguém demitido, mas de um professor que declinou do magistério – e que antes disso se envolvia com alunas, estabelecia rixas com seus colegas e adulterava provas. Tinha toda a capacidade normal atribuível a um jovem recém-egresso de um bom curso de sociologia. Dir-se-ia que suas leituras complementares até excederam sua formação superior – ele sentia que sabia até demais. Fosse por relativa insegurança na transmissão do conteúdo em sala, pela falta de sentido disso ou por não encontrar público real para suas palavras, o mérito é de difícil julgamento, recusou-se a respeitar as normas de seu ofício. Uma catarse? Uma vingança! Decidiu não mais simular indiferença em relação às cantadas das garotas. Teriam 15 anos, assim como todos os meninos. E nenhum entendimento da vida que os esperava nos próximos dez. Muitos pegariam em revólveres, fariam supletivo porque haviam largado a escola ou iriam conseguir, eventualmente, uma bolsa para se formarem. Mas não seria comum. Não seria interessante. Melhor pensar que todos os alunos não passavam de imprestáveis, lixos sociais. Teria sido então que seu apreço pelo ser humano havia decaído tanto que automaticamente matou. Acasalou com a pupila e depois sentiu nojo – decidiu ignorar que tivesse pais ou a obrigação de ir à escola no dia seguinte. OU como cometer um crime? São muitos eventos, mas nenhum dignificante para um escasso grande homem. Seu dever autorizaria sua morte, seu ingresso no anel, seu infinito, sem um grande ato? Decidiu amealhar fundos para conseguir exibição nacional: excesso de cocaína e invasão do congresso? Não, bobo demais. Talvez se tornasse um traficante e com isso se comprouvesse. Os objetivos se tornaram pequenos demais. Nada de ser pássaro-apolíneo-solitário.
…Essas idéias são boas, mas o ideal é “normalizar” o personagem e elaborar um elenco que interaja bem.
Algo me aflige. E não é como antigamente. Subitamente sinto-me atrofiado: faz tempo que não utilizo polegar e indicador para escrever (a dupla dinâmica). E já há um tempo o ruído do ônibus da madrugada me seduz. NÃO É COMO DAS OUTRAS VEZES!
Não quero mais compartilhar esse excerto – como faria em janeiro, em julho, dia 4 de agosto…
Do que eu preciso? A solidão é a companhia pela qual meu coração neste segundo bate forte. As asas libertadoras da moral dos pais.
Estou farto de não poder caminhar, fumar e ser livre. De escrever o que devia FAZER.
Pouco valor tem a forma. E o conteúdo – se mentira. Passemos à natureza:
Rotina, tempo, submissão – 3 problemas.
Contingência, desamarrar-me, voar.
Neste verbo há algo de encantador: na minha insônia, muito mais. Quero a bem-aventurança – e nada de herança. De que me vale a avareza?
Ninharias. Eu, podendo, atirava fora a TV. Lembrei-me há 10 minutos do Carlos Gomes. A cibercultura –outrossim a Morte de GAIA (o que fazer?).
Quero caminhar até saber o que fazer. Já NÃO DEPENDO DE NENHUMA PARAFERNÁLIA ELETRÔNICA, NEM STRICTO SENSU… Que diabo é o latim?
Eu sou, de fato, MANÍACO?
Vêm meus surtos piorando?
Poderá ser uma virilidade extrema que a sociedade mata. Mas encontro chaveiros esparsos, se as portas estão trancadas!
Ludibrio… com a linguagem.
A resposta da RUA está na CASA.
Uma geladeira dispondo de conhaque; tênis e meias sempre embotados. A esquina, moradia. EU DEMANDO SOLIDÃO. SOLIDÃO INCLUSIVE OBJETAL.