7 de dezembro de 2017 a 14 de janeiro de 2018 – trabalho depois interrompido por 5 anos e meio.
ANTECEDENTES
“Um dia hão de dizer que Heine e eu fomos de longe os primeiros artistas da língua alemã – numa distância incomensurável de tudo o que simples alemães fizeram com ela.”
Nietzsche
“Walter Benjamin e Elias Canetti, que parecem ter dado ouvidos a Kraus, passaram batido por Heine.”
Ler um dia seu Quadros de Viagem, a magnum opus; mas também Cartas de Helgoland (pelo visto ainda sem versão portuguesa).
“Heine foi o antídoto para a poesia oceânica de Victor Hugo.”
“‘O poeta impecável’ Théophile Gautier, ‘mago perfeito das letras francesas’, não foi apenas amigo de H., mas um tributário confesso de sua obra.”
“Álvares de Azevedo (…) Sua pequena obra-prima, ‘Namoro a Cavalo’, escrita presumivelmente em 1851, é de nítida inspiração heineana.”
“Jamais um Proteu tomou tantas formas, jamais o Deus da Índia passou sua alma divina numa série tão longa de avatares.”
Gérard de Nerval, seu amigo íntimo e primeiro tradutor francês.
“Quem adora a arte como sua divindade e também dirige preces ao seu bel-prazer à natureza, ultraja tanto a arte quanto a natureza.”
Ludwig Börne, poeta contemporâneo e desafeto – ou talvez seja palavra muito forte, pois quando um não quer, dois não brigam – de H. que será ainda bastante citado.
“E se o bom Deus quiser me fazer totalmente feliz, que me conceda a alegria de ver, nessas árvores, cerca de 6 ou 7 de meus inimigos enforcados. – De coração comovido hei de perdoar, antes de suas mortes, todas as infâmias que me infligiram em vida – sim, temos que perdoar nossos inimigos, mas não antes de serem enforcados.¹ – Perdão, amor e compaixão.”
¹ Se contradiz a meio caminho, mas tudo bem.
OS GRANADEIROS (tradução minha)
À França rumavam dois granadeiros,
que na Rússia haviam sido prisioneiros.
E quando chegaram no território alemão,
Sentiram-se como degolados.
Lá ouviram ambos as más novas:
Que a França fôra derrotada.
O grande exército vencido e aniquilado,
E o Imperador, o Imperador aprisionado.
Lá choraram juntos os granadeiros
Suas indignantes misérias.
Um diz: Como dói em mim,
Como ardem minhas velhas feridas.
O outro diz: Já era a Canção,
Também eu quero perecer contigo,
Mas tenho mulher e filho em casa,
Que sem mim não se sustêm.
Que me importa mulher, que me importa filho,
Eu levo comigo desejos melhores,
Deixai-os mendigar, quando estiverem famintos,
Meu Imperador, meu Imperador aprisionado!
Concede-me, irmão, um favor:
Agora, quando eu sucumbir,
Leva meu cadáver contigo até a França,
Enterra-me em solo francês.
A medalha de honra em faixa vermelha
Deves tu sobre meu coração depositar;
Na mão deixa-me a pederneira,
E afivela em mim a espada.
Quero descansar e ressoar no silêncio,
Como uma sentinela, na lápide,
Até um dia ouvir canhonadas,
E relinchos da Cavalaria.
Então meu Imperador cavalgará sobre meu túmulo,
Várias lâminas tilintam e incendem;
É aí que me ergo da cova, armado,
Para o Imperador, para o Imperador defender.
UM OCEANO DE ADMIRADORES
Resenhador anônimo contemporâneo ao poeta:
“A poesia deve agir como a – religião.”
“revelam-se como os piores e mais lamentáveis aqueles poemas onde o autor se faz de delicado ao extremo e suspirante, especialmente nas canções de amor.”
“quanto menos ele honra a finalidade da poesia, tanto mais tem compreendido e considerado a essência da mesma.”
“O autor utilizou a linguagem da canção popular alemã na maioria de seus poemas. Em todos impera aquele tom popular que os adeptos artificiais da empolação convencional ridicularizam como simplório, e que em sua verdadeira simplicidade só pode ser atingido pelos grandes poetas.” “Goethe mirou um alvo completamente diverso; ele deu à canção popular um colorido para o chazinho da tarde.” “não podemos nos admirar o bastante pelo fato de não termos encontrado nas canções populares de H. a matéria ou eco de qualquer canção alemã já existente”
“A mera burguesia, a mera humanidade é o elemento único que vive na poesia de H.”
“NAS ASAS DA CANÇÃO
Por séculos afora,
Inertes no infinito,
Estrelas se entreolham
No amor irresolvido.
A língua em que murmuram
É rica e muito bela
Filólogo nenhum
Jamais há de entendê-la
Porem tenho-a aprendido
Em teoria e prática
A face em que eu orbito
Serviu-me de gramática.”
* * *
“Corto minh’alma ao meio;
Assopro-te a metade,
Te abraço, então seremos
Corpo e alma de verdade.”
* * *
“Com roupinhas de domingo,
Filistinos fazem festa;
Tal cabritos, dão pulinhos,
Passeando na floresta.
Eu, porém, cubro as janelas
Com a mais negra cortina;
Sob a luz do dia ou velas,
Grei de espectros me azucrina.”
* * *
“Se nos casarmos no papel,
Então vão todos te invejar:
Hás de passar a leite e mel
Os dias de papo pro ar.
Quando tiveres teus chiliques,
Prometo que não vou chiar;
Porém meus versos não critiques,
Que aí vou me divorciar!”
“DONA CLARA
(…)
<Os mosquitos, cavaleiro,
Me picaram no ínterim,
Tenho raiva dessa praga
Como do judeu chinfrim.>
(…)
<Mas me diz: teu coração
Balançou mesmo por mim?>
<Não duvides meu senhor,
Por Jesus, juro que sim,
Ele a que os judeus tratantes
E velhacos deram fim.>
<Deixa o Cristo para lá
E os judeus, minha rolinha.
Olha só como balançam
Suave os lírios na colina.>
(…)
<Não há uma gota falsa
De sangue dentro de mim;
Meu amor, não sou da raça
De Judá, nem sou muslim.>
<Deixa os mouros para lá
E os judeus, amada minha;
Vamos nos aconchegar
Entre os ramos de alecrim.>
E fez pra filha do alcaide
O mais delicado ninho;
Foi sucinto na palavra,
Mas prolixo no carinho.
(…)
<Creio que estão me chamando!
Meu querido, diz enfim:
Qual a graça do teu nome?
Não o escondas de mim.>
(…)
<Meu amor, deu-me o destino
Uma estirpe primorosa,
Eu sou filho do Rabino
Israel de Zaragoza.>”
* * *
“Nossa amizade agora cresce
A cada dia e nunca pára;
Virei alguém que se enraivece,
Estou ficando a tua cara.”
* * *
“Por qual das duas se apaixona
Meu coração que o amor balança?
A mãe tem ares de madona,
A filha é uma linda criança.
Ver essas formas graciosas,
Tão inocentes, que delícia!
Mas quem resiste àqueles olhos
Que sabem ler toda a malícia?
Meu coração parece, assim,
O amigo cinza e sem ação
Ante dois montes de capim:
Não sabe qual sua ração.”
* * *
“A cartinha que me escreves
Não me abala a alegria;
Para dizer que o amor já era,
Escreveste em demasia.
Doze folhas manuscritas,
Com letrinha de notário!
Quem deseja a despedida
Não se dá tanto ao trabalho.”
“Justamente eu tive que editar anais políticos, comunicar assuntos da hora, panfletar desejos revolucionários, acender paixões, dar petelecos incessantes no nariz do pobre Zé Povinho alemão, a fim de que acordasse de seu saudável sono de gigante… Óbvio que nada mais consegui do que provocar um leve espirro no gigantesco roncador, e de forma alguma despertá-lo… Também puxei-lhe com força o travesseiro, mas ele o endireitou com a mão trôpega de sono… Desesperançado, quis um dia incendiar sua touca de dormir, que, no entanto, de tão empapada com o suor dos pensamentos não produziu nada mais do que fumaça… e o Zé Povinho, dormindo, sorriu.
(…) Ah, se eu apenas soubesse onde repousar minha cabeça. Na Alemanha é impossível. A todo momento, um policial viria sacudir-me para verificar se estou mesmo dormindo; só de pensar nisso já me estraga todo prazer. Mas afinal, para onde ir? De novo ao sul? (…) Ficaram tão azedas quanto os limões as ditas laranjas douradas. [referência à Áustria] (…) Ou devo ir para o norte? Talvez ao nordeste? Ah! os ursos polares estão mais perigosos do que nunca, desde que foram civilizados e passaram a usar luvas glacé. Ou devo voltar à diabólica Inglaterra, onde não fui enforcado in effigie mas onde tampouco quero viver em pessoa? Deviam pagar para a gente morar lá, e, ao invés disso, a estada na Inglaterra custa o dobro dos demais lugares. Nunca mais quero pôr os pés nesse desprezível país, onde as máquinas são como homens e os homens gesticulam como máquinas. Que zumbem e silenciam tão assustadoramente. Quando fui apresentado ao enorme governante, e esse inglês de araque permaneceu imóvel na minha frente sem falar uma palavra por vários minutos, passou-me involuntariamente pela cabeça olhar as suas costas, para averiguar se haviam esquecido de dar corda no maquinário. Que a ilha de Helgoland esteja sob o domínio inglês já me é fatal o suficiente. Às vezes imagino sentir o cheiro daquele tédio que os filhos de Albion exalam em todo lugar. De fato, cada inglês emana um certo gás, o mortífero veneno do tédio, que observei com meus próprios olhos, não na Inglaterra onde todo o ar está dele impregnado, mas nas terras do sul, por onde o inglês vagueia solitário, e onde a auréola de melancolia que circunda sua cabeça torna-se bastante nítida no ensolarado ar azul. Os ingleses acreditam que seu denso tédio seja um produto territorial, e para escapar do mesmo, viajam por todos os países, entediando-se em todos os lugares e voltando para casa com um diary of an ennuyé. Parece o caso do soldado que caiu no sono: os companheiros besuntaram-lhe as narinas com excremento; quando acordou percebeu que a guarita cheirava mal, e saiu; mas não tardou a voltar, dizendo que lá fora também fedia, que o mundo inteiro cheirava mal.
Um amigo meu, que voltou recentemente da França, me assegurou que os ingleses viajam pelo continente por desespero da pesada culinária de sua pátria; nas tables d’hôte se vêem os gordos bretões engolindo somente vol-au-vent, crème, supréme, ragout, gelées e outras iguarias arejadas, e com aquele apetite colossal que treinaram em casa com a massa de roastbeefs e o plum pudding [pudim de ameixa] de Yorkshire, levando à ruína qualquer dono de restaurante. (…) Enquanto rimos da frivolidade com que observam as curiosidades e galerias de arte, talvez sejam eles que nos enganam, e o seu sorriso não passe, assim, de uma astuta camuflagem de suas intenções gastronômicas?
Mas por melhor que seja sua própria cozinha, a França não anda lá muito bem das pernas (…) Os atuais detentores do poder são os mesmos imbecis que tiveram suas cabeças cortadas há 50 anos... Do que adiantou? Levantaram do túmulo, e o seu governo está mais tolo do que antes, pois[,] quando os deixaram sair do reino dos mortos para a luz do dia, a maioria colocou, na pressa, a melhor cabeça que estava à mão, e com isso ocorreram desacertos irremediáveis: a cabeça, amiúde, não combina com o tronco e com o coração que ali dentro assombra. Muitos deles, conforme a própria razão espalha nas tribunas, têm cabeças cuja sabedoria admiramos, mas que, no entanto, se deixam logo conduzir pelos corações incorrigíveis aos atos mais estúpidos… É a terrível contradição – entre pensamento e emoção, princípio e paixão, palavra e ação – desses revenants!
Ou devo ir para a América, essa imensa penitenciária da liberdade, onde os grilhões invisíveis me apertariam ainda mais dolorosamente que os visíveis lá de casa, e onde o mais repugnante dos tiranos, a plebe, exerce sua rude dominação? Tu sabes o que penso desse país amaldiçoado, que outrora amava, quando ainda não o conhecia… E, não obstante, devo louvá-lo por obrigação do métier… Ó caríssimos camponeses alemães, ide para a América! Lá não há príncipes nem nobres, todos os homens são iguais, são um único caipira… Com exceção, é claro, de alguns milhões que têm a pele negra ou marrom, e que são tratados como cachorros. A escravidão, que foi abolida na maior parte dos estados, não me repulsa propriamente tanto quanto a brutalidade com que tratam os negros e mulatos livres. Também aqueles que em mínimo grau descendem de um negro – ainda que não tragam na cor da pele o sinal da descendência, mas tão-somente nos traços do rosto – terão de suportar as piores ofensas, ofensas estas que irão nos parecer até fantasiosas na Europa. Ao mesmo tempo, esses americanos têm o seu cristianismo em grande conta, e são os mais ávidos freqüentadores de igrejas. Tal hipocrisia aprenderam com os ingleses que, aliás, lhes deixaram suas piores qualidades. A utilidade mundana é, no fundo, a sua religião, e o dinheiro é seu Deus, seu Deus único e todo-poderoso. Naturalmente que um coração nobre poderá lamuriar-se em silêncio contra o egoísmo e a injustiça generalizadas. Mas se quiser de fato combatê-los, espera-o o martírio que ultrapassa todos os conceitos europeus. Creio que foi em Nova York onde um pregador evangélico indignou-se tanto com a judiação dos homens de cor que, desafiando o cruel preconceito, casou sua própria filha com um negro. Tão logo esse ato verdadeiramente cristão tornou-se público, o povo invadiu a casa do pregador, que somente através da fuga evitou sua morte; a casa, porém, foi arrasada, e a filha, a pobre vítima, caiu nas garras do populacho, para satisfazer-lhes a fúria. She was lynched, isto é, foi completamente despida, banhada em piche, rolada sobre os edredons rasgados e, nessa viscosa cobertura de penas, humilhada e arrastada por toda a cidade…
Ó liberdade, és um sonho ruim!”
O MANIFESTO ANTI-HEGELIANO-SEMITA DO MAIOR DE TODOS OS JUDEUS
“Os judeus deveriam se consolar com facilidade por terem perdido Jerusalém e o Templo e o tabernáculo e os talheres dourados e as jóias de Salomão… Essa perda é mínima em comparação com a Bíblia, esse tesouro indestrutível que conseguiram salvar. Se não me engano, foi Maomé que chamou os judeus de o <Povo do Livro>, um nome que até os dias de hoje perdura no Oriente e que é profundamente representativo. Um livro é sua pátria, sua propriedade, seu senhor, seu azar e sorte. Eles vivem nos pacíficos limites desse livro, ali exercem sua cidadania inalienável, ali não podem ser perseguidos, desprezados, ali são fortes e dignos de inveja. Imersos na leitura desse livro, muito pouco notaram das mudanças que ocorreram ao seu redor, no mundo real; povos surgiram e desapareceram, Estados floresceram às alturas e feneceram, revoluções assolaram o planeta… Porém eles, os judeus, estavam inclinados sobre o seu livro, e nada perceberam da selvagem caçada do tempo que grassava sobre suas cabeças. Assim como o profeta do Oriente os denominou o <Povo do Livro>, o profeta do Ocidente, em sua Filosofia da História, os chamou de o <Povo do Espírito>. Desde o mais remoto início, como observamos no Pentateuco, os judeus professam a sua inclinação ao abstrato, e toda sua religião não passa de um tipo de dialética, através da qual a matéria é separada do espírito, e o Absoluto é somente reconhecido na forma exclusiva do espírito. Que posição assustadoramente isolada não tiveram que assumir entre os povos da Antiguidade, que se dedicavam aos mais alegres serviços da natureza, compreendendo o espírito muito mais como manifestação, em símbolo e imagem, na matéria! Que terrível oposição não ergueram, portanto, contra o colorido Egito que coalhava de hieróglifos, contra a Fenícia dos grandes templos de prazer de Astarte, ou mesmo contra a bela pecadora, a adorável, doce-perfumosa Babilônia, e por último, até mesmo contra a Grécia, a florescente terra natal da arte!
(…) Moisés deu ao espírito, por assim dizer, as paliçadas materiais contra a invasão dos povos vizinhos: ao redor do campo onde semeara o espírito, plantou a áspera lei cerimonial e um egocêntrico sentimento de nacionalidade, como uma protetora cerca de espinhos. (…) eis que surge Jesus Cristo e derruba a lei cerimonial, que doravante nenhuma importância terá, proclamando também a sentença de morte sobre a nacionalidade judaica… (…) Foi uma grande demanda emancipatória, resolvida, contudo, de forma bem mais generosa que as atuais na Saxônia e Hannover… (…)
…e a humanidade toda, desde então, aspira in imitationem Christi à mortificação do corpo e à suprassensível entrada no espírito absoluto…
Quando voltará a harmonia? Quando irá o mundo se curar dessa ânsia por espiritualização, o insano erro através do qual tanto a alma como o corpo adoeceram? Um grande antídoto reside no movimento político e na arte. Napoleão e Goethe atuaram com precisão. Aquele, por ter obrigado os povos a admitirem todos os tipos de movimentos saudáveis ao corpo; este, por nos ter tornado de novo receptíveis à arte grega e criado obras de peso, nas quais podemos nos agarrar como nas estátuas de mármore dos deuses, para não afundarmos no mar enevoado do espírito absoluto…”
O HOMEM ETERNO DE HEINE, O ANIMAL MORAL
“Eu creio poder afirmar que a moralidade independe do dogma e da legislação, ela é inteiramente um produto do saudável sentimento humano, e a moralidade verdadeira, a razão do coração, irá perdurar eternamente, mesmo que o Estado e a Igreja venham abaixo.
Gostaria que tivéssemos uma outra palavra para isso que chamamos aqui de moralidade [Sittlichkeit]. Poderíamos ser levados a entender a moralidade como produto dos costumes [Sitte]. Os povos latinos vêem-se na mesma arapuca, ao tirarem sua morale de mores. (…) Existe, assim, um costume indiano, um chinês, um costume cristão, mas só existe uma única moralidade humana. Esta talvez não se deixe apreender em um conceito, e a lei da moralidade, que denominamos moral, não passa de uma brincadeira dialética. A moralidade se revela nas ações, e somente nos motivos destas, não em suas formas e cores, reside o significado moral. (…)
(…) As palavras mais estranhas do Novo Testamento são para mim as desta passagem do Evangelho de S. João, 16:12-13: <Ainda tenho muito que voz dizer, mas vós não o podeis suportar agora. Mas, quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir.> (…)
Uma certa ambigüidade mística predomina em todo o N.T. Uma astuta digressão, não um sistema, são as palavras: <Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus>. Do mesmo modo, quando perguntam a Cristo <és o rei dos judeus?> a resposta é evasiva. Assim também quando se indaga se ele seria o Filho de Deus. Maomé se mostra muito mais aberto e categórico. Quando lhe perguntaram algo semelhante, respondeu: <Deus não tem filhos>.
(…) Se aparecer um Salvador agora, não terá mais que se deixar crucificar para divulgar a sua doutrina com impacto... Basta que simplesmente mande imprimi-la e anuncie o livrinho nos classificados do Allgemeine Zeitung, a 6 cruzados por linha. (…) Que fonte revigorante para todos os sofredores foi o sangue que escorreu no Gólgota!… Esse sangue respingou nos brancos deuses de mármore da Grécia, que adoeceram de um horror interior e nunca mais se recuperaram! A maioria, naturalmente, já carregava a peste dentro de si, e o susto tão somente apressou-lhes a morte. Primeiro morreu Pã.”
“[Nota do tradutor] Pustkuchen, Johann Friedrich Willhelm (1793-1834): escritor e clérigo protestante; ficou conhecido por sua continuação do romance Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, sob o pseudônimo Glanzow. Quando teve a identidade revelada, foi impiedosamente ridicularizado pelo autor da obra.”
DE NOVO A BÍBLIA, A NATUREZA, A ARTE E UMA PITADA DE CULINÁRIA
“Na Bíblia não aparece qualquer vestígio de arte; o estilo é o de um bloco de notas, no qual o espírito absoluto, como se não tivesse qualquer auxílio individual, registra os acontecimentos do dia, quase com aquela mesma fidelidade aos fatos que usamos para escrever nossos bilhetes. Sobre esse estilo não se pode emitir qualquer juízo, apenas constatar o efeito sobre nossas emoções, e não se desconcertaram pouco os gramáticos gregos, quando tiveram que definir em conceitos convencionais muitas das belezas flagrantes da Bíblia. Longino fala de sublime. Estetas mais recentes, de ingenuidade. Ah! (…) Apenas em um único escritor sinto algo que me lembra o estilo sem mediações da Bíblia. É Shakespeare. Também nele irrompe às vezes a palavra com aquela assombrosa nudez que nos assusta e estremece; nas obras shakespearianas vemos às vezes a verdade encarnada sem as roupagens da arte. Mas isso só acontece em alguns momentos; o gênio da arte, sentindo talvez a sua impotência, delega, por um momento, sua tarefa à natureza, para depois reafirmar com ciúme ainda maior o seu domínio sobre a criação plástica e o divertido encadeamento do drama. Shak. é judeu e grego ao mesmo tempo, ou melhor, nele os dois elementos, o espiritualismo e a arte, se interpenetraram, plenos de conciliação, desdobrando-se num todo mais elevado.
(…) <Com o Espírito Santo se dá o mesmo que com o terceiro cavalo, quando a gente viaja pelo Correio Expresso; é preciso sempre pagar por ele, mas a gente nunca vê o tal cavalo.>
(…) enquanto eu debatia com o prussiano a Santíssima Trindade, lá embaixo, o holandês explicava como se diferencia o bacalhau do Labberdan e do stockfish; que seriam no fundo a mesmíssima coisa.”
SOBREVIVÊNCIA DE UMA VOCAÇÃO EXTEMPORÂNEA
“Os poetas, desde o triunfo da Igreja Cristã, formaram sempre uma comunidade silenciosa, onde a alegria no culto das antigas imagens e a rejubilante fé nos deuses se disseminam de geração em geração, na tradição dos cantos sagrados…
(…) O mundo não permanece no cessar-fogo inerte, mas na mais estéril circulação. Outrora, quando era jovem e inexperiente, acreditava que, na guerra de libertação da humanidade, ainda que os combatentes isolados perecessem, a grande causa venceria no final… E eu estremeço com estes belos versos de Byron: <As ondas vão uma atrás da outra, mas o mar segue adiante>.
Ah! Quando se observa por mais tempo essas manifestações da natureza, percebe-se que o mar que avança, volta de novo ao leito anterior num ciclo determinado, e mais tarde avança de novo, com a mesma violência, buscando recuperar o terreno perdido, e por fim, pusilânime, parte em retirada como antes, e embora repita esse jogo continuadamente, nunca vai adiante… Também a humanidade move-se pelas leis do fluxo e refluxo, e quem sabe no mundo do espírito a Lua também exerça a sua influência sideral.”
ESPARTANOS E HOLANDESES
“Assim como os espartanos preservavam seus filhos da embriaguez, mostrando-lhes um hilota bêbado como exemplo a se evitar, deveríamos fornecer às nossas instituições de ensino um holandês, para que a sua apática e inerte natureza de peixe provocasse nas crianças o horror à sobriedade. E deveras, a sobriedade holandesa é um vício bem mais mortífero que a embriaguez dos hilotas. Gostaria de quebrar a cara de Mynheer…”
INEXISTÊNCIA DA VIDA EXTRA-TERRESTRE
“Mas não há nenhum outro mundo habitado, como sonham alguns, tão só esferas cintilantes de pedra, ermas e estéreis,
Elas não caem por não saberem onde cair.”
A FARSA FRANCESA
“Os cabelos de prata que eu vira esvoaçar majestosamente nos ombros de Lafayette, herói de dois mundos, transformaram-se, ao observá-los mais de perto, numa peruca marrom que cobria miseravelmente um crânio estreito. E até mesmo o cão Medor, que visitei no pátio do Louvre e que, guardado sob bandeiras tricolores e troféus, comeu tranqüilo a ração que lhe dei: não era de forma alguma o verdadeiro cachorro, mas uma besta corriqueira que se apropriara da glória alheia, como é muito usual entre os franceses, e que, assim como tantos outros, explorava a fama da Revolução de Julho…
Pobre povo! Pobre cão, eles!
(…) Em julho de 1830 conquistou a vitória para aquela burguesia que valia tão pouco quanto a nobreza que substituiu, e com o mesmo egoísmo… (…) Mas acreditai: quando soar novamente o sino da intempérie e o povo tomar em armas, desta vez ele lutará em causa própria e exigirá o soldo merecido. Desta vez, o verdadeiro Medor há de receber as honras e a ração… (…)
Mas cala-te, coração, tu te expões em demasia.”
* * *
UMA GAIVOTA
“meus poemas repulsivos não são alimento para a rude multidão.”
“AS GARRAFAS PELO CHÃO
Solitário, este imbecil contempla a cama.”
* * *
GÊNIO OU APENAS UM ARISTOCRATA INSOLENTE?
“um certo desdém, como o que se encontra em homens que se acham superiores à posição que ocupam, mas que duvidam do reconhecimento alheio. Não era aquela majestade recôndita que podemos encontrar na face de um rei ou de um gênio, que se ocultam incógnitos entre a multidão; era decerto aquela insolência revolucionária, um tanto titânica, que se nota no rosto de qualquer pretendente. A sua atuação, os seus movimentos, o seu andar tinham um quê de segurança, de certeza, de caráter. Os homens extraordinários estarão banhados da irradiação de seu espírito? Nossas emoções pressentirão a glória que nós, com os olhos do corpo, não podemos ver? A intempérie moral, em tais homens extraordinários, atuaria talvez eletricamente nos temperamentos jovens e sensíveis que deles se aproximam, como a tempestade real influi nos gatos?”
“Dieffenbach, quando estudávamos em Bonn, onde quer que ele pegasse um gato ou um cachorro, logo lhe cortava o rabo, por puro prazer de cortar, o que muito nos irritava, porque os bichos gemiam insuportavelmente, mas depois perdoamos por ele ter, graças a esse prazer de talhar, se tornado o maior cirurgião da Alemanha”
O enigmático “Jean Paul” dos séc. XVIII-XIX: (*) “Pseudônimo de Johann Paul Friedrich Richter (1763-1825), um dos escritores mais populares e bizarros de seu tempo; anticlássico sem, contudo, identificar-se com os românticos, foi autor de romances labirínticos que uniam o sentimentalismo mais açucarado ao grotesco e o fantástico; tanto Heine quanto Börne apreciavam seu estilo e foram por ele influenciados. Passou os últimos 20 anos de sua vida em Bayreuth.”
“<Börne não sabe escrever, como tampouco eu ou Jean Paul.> Rahel entendia o escrever como o calmo ordenamento, ou seja, a redação do pensamento, a concatenação lógica dos elementos da oração, em resumo, aquela arte da construção do período que ela tão entusiasticamente admirava em Goethe quanto em seu marido [Varnhagen von Ense], e sobre a qual tínhamos então, quase que diariamente, as discussões mais frutíferas.” “ela nutria uma grande admiração por aqueles serenos escultores da palavra que sabem manipular, libertos da alma gestante, todo o seu pensar, sentir e observar como se estes fossem uma determinada substância, moldando-os plasticamente.” “Quero apenas salientar que para se escrever prosa bem-acabada é necessário se ter também, entre outras coisas, o domínio das formas métricas. Sem essa maestria, falta ao prosador um certo ritmo, fogem-lhe construções de palavra, expressões, cesuras e frases que só no discurso metrificado são admissíveis, e surgem dissonâncias que ferem os poucos ouvidos mais sensíveis.”
“Curioso! Se à distância ouvimos falar de uma cidade, onde habita este ou aquele homem ilustre, obrigatoriamente pensamos que ele seja o centro da cidade, que até os telhados estejam pintados com a cor de sua celebridade. Que surpresa não é então, quando chegamos a essa cidade, desejosos de encontrar o ilustre homem, e precisamos perder tanto tempo perguntando por ele, até encontrá-lo no meio da multidão!”
“Quando cozinheiras se encontram, falam sobre seus patrões; quando escritores alemães se encontram, falam sobre seus editores.”
“Como amei esse homem até o 18 de Brumário, e ainda lhe fui devotado até a Paz de Campo Formio, mas quando subiu os degraus do trono foi descendo cada vez mais fundo em valor; e poder-se-ia dizer que ele despencou da escada vermelha!”
Börne
(*) “Konstablerwache: praça em Frankfurt, que em 1833 foi tomada por estudantes revolucionários, planejando explodir o Parlamento alemão.”
UM HOMEM & SUAS COISAS: Discurso sobre a Censura
“Agora eu tenho a maior preocupação que, na minha estupidez, eu venha [a] escrever além da conta, e tenha que fugir repentinamente – como haverei de empacotar, na correria, todas essas xícaras e o bule? (…) Na pressa eles poderiam se quebrar e, de modo algum, quero deixá-los para trás. Sim, nós homens somos bichos estranhos! O mesmo homem que coloca em jogo a calma e alegria de viver, ou até mesmo a própria vida, para afirmar sua liberdade de expressão, não quer perder algumas xícaras, e se torna um escravo silencioso para preservar um bule de chá. (…) Chego até a acreditar que o vendedor de porcelanas era um agente austríaco, e que Metternich teria me entulhado de louças para me domesticar. Sim, sim, por isso custou tão pouco, por isso aquele homem era tão convincente. Ah! O açucareiro com a felicidade conjugal foi uma isca tão docinha! (…) Quando se usam meios inteligentes contra mim, eu nunca me enraiveço; só a estupidez e a burrice me são insuportáveis.”
Börne
INIMIZADES METAFÍSICAS
“Seu rancor contra Goethe talvez também tenha tido um começo local; eu disse começo e não causa; pois ainda que a circunstância de ambos terem nascido em Frankfurt tenha inicialmente atraído a atenção de Börne a Goethe, o ódio que se inflamou dentro dele contra esse homem, e ardeu cada vez mais impetuosamente, foi só a conseqüência necessária de uma diferença arraizada profundamente na natureza de ambos. Aqui não age uma maledicência mesquinha, mas uma repugnância desinteressada que obedece às pulsões inatas, uma disputa que é tão antiga quanto o mundo, que se manifesta em toda a história da humanidade, e que irrompeu com maior nitidez no duelo que o espiritualismo judaico travou contra o prazer de viver helênico, um duelo que ainda não foi decidido, e que talvez nunca termine: o pequeno nazareno odiava o grande grego, que ainda por cima era um deus heleno.”
“Eu digo nazarena, para não utilizar o termo <judeu> ou <cristão>, conquanto ambas as expressões sejam sinônimas para mim, e não sejam usadas para definir uma crença mas um temperamento. <Judeus> e <cristãos> são para mim palavras com significados coincidentes, em oposição a <helenos>, nome que tampouco uso para denominar um determinado povo, mas um direcionamento do espírito e um modo de ver, inato e igualmente ensinado. (…) Desse modo, havia helenos em famílias de pregadores alemães, e judeus que nasceram em Atenas e que talvez descendessem de Teseu. A barba não faz o judeu, ou a trança não faz o cristão, poder-se-ia dizer aqui com razão.”
“os nazarenos têm, algumas vezes, um certo bom humor saltitante, uma certa vivacidade cômica de esquilo, até amavelmente obstinada, e doce, e também brilhante, mas à qual logo sucede um turvamento do ânimo; falta-lhes a majestade da satisfação que só encontramos nos deuses conscientes.”
* * *
“Ah, que alívio! Enfim eu levo
No Hades uma vida boa!
Vou me embebedar do Letes
Pra esquecer minha patroa.”
“ROSA VELHA
(…)
Um pelinho piniquento
Na verruga me atrapalha –
Filha, vá para um convento,
Ou te apruma com navalha.”
“O cão ainda abana o rabo, mas morde quem lhe estende a mão.”
“judaísmo: doença hereditária e milenar”
“Será que o Tempo, deus eterno, um dia
Há de livrar-nos da moléstia escura
Que os pais vão transmitindo para os filhos?
E os netos – hão de ter saúde e tino?”
“O conteúdo que um poema encarna
Jamais surgiu num estalar de dedos;
Se demiurgos não criam do nada,
Ah, muito menos os mortais aedos.
(…)
Somente pelo esforço do <poeta> –
É que matéria é valorizada.”
* * *
SINFONIA “SATÂNICA”
“O sr. Adam, pelo que sei, esteve na Noruega, mas duvido que lá algum feiticeiro conhecedor das runas lhe tenha ensinado aquela cristalina melodia, da qual só se ousa tocar 10 variações, existindo uma 11ª que pode provocar um grande malefício: caso tocada, a natureza inteira entra em comoção, os rochedos e montanhas começam a dançar, e as casas dançam e, dentro, as mesas e cadeiras dançam; o avô puxa a avó para dançar; o cachorro, a gata; e até o bebê pula do berço e dança.”
(*) “Gaetano Vestris (1729-1808): bailarino e mímico italiano que fez carreira na França, vindo a ser mestre de dança de Luís XVI; tão célebre em sua época que teria dito: <só existem três grandes homens na Europa – o Rei da Prússia, Voltaire e eu>; vários de seus filhos tornaram-se bailarinos famosos, entre eles o bastardo Auguste Vestris, que herdou do pai o título de <le dieu de la danse>.”
CONTREDENSE
“Não posso deixar de mencionar que a igreja cristã, que acolheu em seu regaço todas as artes e tirou proveito delas, não conseguiu, todavia, fazer nada com a dança, descartando e condenando-a. A dança talvez lembrasse por demais os ofícios religiosos dos pagãos, tanto dos pagãos romanos quanto dos germanos e celtas, cujos deuses migraram para aqueles seres élficos aos quais a crença popular atribui uma miraculosa mania de dançar.” “A dança é maldita, como diz uma piedosa canção popular da Bretanha, desde que a filha de Herodias dançou para o iníquo rei que mandou matar João para lhe agradar. <Quando se vê uma dança, acrescenta o cantor, deves pensar na cabeça sanguinolenta do Batista na baixela, e o desejo demoníaco não poderá seduzir a tua alma!> Quando se reflete com maior profundidade sobre a dança na Académie Royale de Musique, ela aparece como uma tentativa de cristianizar essa arte notoriamente pagã, e o balé francês cheira quase à igreja galicana, quando não ao jansenismo, como todas as manifestações artísticas da grande época de Luís XIV. (…) De fato, a forma e a essência do balé francês são castas, mas os olhos das dançarinas fazem ao passo mais pudico um comentário assaz pecaminoso, e seus sorrisos dissolutos estão em permanente contradição com seus pés. Vemos o contrário com as chamadas danças nacionais, que prefiro mil vezes ao balé da grande ópera. As danças nacionais são freqüentemente sensuais em demasia, quase grosseiras em suas formas, como por exemplo a indiana, mas a sagrada seriedade na face dos dançarinos moraliza essas danças e até as eleva a um culto.”
“Um grande dançarino não precisa ser virtuoso”
— Vestris, Gaetano
LIBERTÉ DO POPULACHO / in FEMME FATALE
“Essa monotonia infindável está começando a me entediar, e não entendo como um homem pode suportá-la por muito tempo. As mulheres, entendo muito bem. Para elas, desfilar a aparência é o essencial. Os preparativos para o baile, a escolha do vestido, o ato de se vestir, de ser penteada, o sorriso da prova frente ao espelho, em resumo, o brilho e a coqueteria lhes são o principal, e lhes proporcionam o mais deleitoso divertimento. Mas para nós, homens, que democraticamente usamos fraques e sapatos negros (os insuportáveis sapatos!), uma soirée é, para nós, apenas uma fonte inesgotável de tédio misturada com alguns copos de leite de amêndoa e suco de framboesa. Da nobre música, eu não quero nem falar.” “Ninguém deseja mais entreter o outro, e esse egoísmo se manifesta também na dança da sociedade atual.”
“Nem sei como devo expressar a tristeza que me assola, quando, nos locais públicos de entretenimento, especialmente no período do Carnaval, observo o povo dançando. Uma música estridente, clamorosa e exagerada acompanha uma dança que em maior ou menor grau assemelha-se ao cancã. E ouço aqui a pergunta: o que é o cancã? Deus do céu, como dar ao Allgemeine Zeitung uma definição do cancã?! Ora: o cancã é uma dança que nunca é dançada na fina sociedade, mas tão-somente em danceterias infames, onde aquele que o dança, ou aquela, é invariavelmente preso por um agente policial e conduzido até a porta.”
Heinrich Heine, 1842 [!!]
“os dançarinos sabem, através de variados entrechats irônicos e gesticulações exageradas, manifestar seus pensamentos proscritos, e assim o velamento aparece ainda mais indecoroso do que a própria nudez. Em minha opinião, não é de muita serventia à moralidade que o governo intervenha na dança do povo com tanto armamento; o proibido é o que mais docemente atrai, e o sofisticado, não raro espirituoso, subterfúgio à censura tem conseqüências ainda mais funestas do que a brutalidade autorizada. Essa vigilância sobre o prazer popular caracteriza, aliás, a situação das coisas por aqui e mostra o quanto avançaram os franceses na liberdade.”
“Eis que os deuses da paixão
Urram, fazem fuzuê
Dentro do meu coração
Pra Rainha Pomaré!¹
Não a tal do Taiti –
Essa já catequizaram –
Digo aquela, tão bonita
E danada de selvagem.
Duas vezes por semana,
No Mabille² a dama empolga
Os seus súditos, dançando
O cancã, também a polca.
Todo passo é majestoso,
Seus requebros, que beleza!
Das canelas ao pescoço,
Cada palmo é uma princesa –
Ela dança – e em comoção,
Deuses fazem fuzuê
Dentro do meu coração,
Pra Rainha Pomaré!”
¹ Codinome da puta-de-luxo e bailarina Élise-Rosita Sergent (1824-46): “ficou célebre pela dança sensual que estreou no Mabille; segundo o escritor e jornalista Alfred Delvau, sua fama declinou subitamente por ter ousado apresentar a polca no teatro do Palais Royal, ocasião em que foi <abominavelmente vaiada>” Depois de sua morte, ganhou muitas homenagens póstumas, na forma de poemas e biografias: “morreu de tuberculose, antes de completar os 22 anos de idade. [É A PRÓPRIA: A DAMA DAS CAMÉLIAS!] Seu nome artístico foi emprestado de uma personalidade da época, a rainha taitiana Pomare IV, também conhecida como Aimata (<comedora de olhos>); convertida [do canibalismo] ao cristianismo por missionários protestantes ingleses, entrou em conflito com a França ao recusar o protetorado francês (Guerra Franco-Taitiana, 1844-46); [Fico admirado com os motivos de jardim-de-infância para os conflitos europeus do séc. XIX! Mas não deveria, a essa altura do campeonato!] o nome dinástico Pomare, usado por 5 governantes taitianos, significa <noite de tosse> (po = <noite>, mare = <tosse>), tendo sido adotado pelo unificador e primeiro rei do Taiti, Tarahoi Vairaatoa (1742-1803), em homenagem à filha mais velha, morta de tuberculose.” A arte real copiou a realidade.
² Praça parisiense de onde teria vindo o cancan.
HIPNOSE, HIGH NO(i)SE

Juan de Flandres
“Ela dança. E como gira o corpo!
Cada membro se contorce solto!
Esvoaça – o que será que a impele
Desejar se desprender da pele?
Ela dança. E quando se revira
Num pé só, e pára, e enfim respira,
Braços estirados para o chão –
Protegei, ó Deus, minha razão!
Ela dança. A tal coreografia
Que teria a filha de Herodias
Feito para o rei judeu Herodes,
Tanto ardeu nos olhos dela a morte.
Ela dança. Eu fico alucinado!
O que queres em sinal de agrado?
Tu sorris? Soldados, em revista!
Tragam-me a cabeça do Batista!”
Herodias ou Salomé? Capitu traiu?!
“O velório foi sem pompa, e acabou antes do horário.”
“No cortejo, só teu cão, e o fiel cabeleireiro.”
“Ó rainha dos insultos, vomitaram em tua coroa”
* * *
“Uma Filosofia da História: impossível na Antiguidade. Somente o tempo de hoje tem materiais para isso: Vico, Herder, Bossuet – Creio que os filósofos ainda terão de esperar mil anos antes que possam comprovar o organismo da história [nem então] – até lá penso que só isso é presumível: por fundamental considero: a natureza humana e as relações (solo, clima, tradições, guerra, necessidades imprevisíveis e incalculáveis), ambas em seu conflito ou aliança contra o fundo da história, encontram sempre a sua assinatura no espírito, e a idéia, pela qual se deixam representar, age novamente como terceiro sobre elas; isso é fundamentalmente o caso nos nossos dias, também na idade média.”
“Os mais altos rebentos do espírito alemão: filosofia e canção – O tempo acabou, com ele a calma idílica, a Alemanha foi impelida ao movimento – o pensamento não é mais desinteressado, em seu mundo abstrato despenca a crua circunstância – A locomotiva das estradas de ferro estremece nosso sentimento, e assim nenhuma canção consegue alvorecer; a fumaça escorraça o pássaro canoro e o fedor dos lampiões a gás empesteia a perfumosa noite enluarada.”
“Não compreendemos as ruínas antes de nos tornarmos ruínas nós mesmos”
“Essa confissão de que o futuro pertence aos comunistas, eu a faço no tom de enorme medo e preocupação, e esse tom, ah!, não é nenhuma máscara! De fato, somente com horror e susto é que penso no tempo em que esses iconoclastas escuros irão tomar o poder: com seus punhos brutos hão de arrebentar as estátuas de mármore do meu mundo de arte tão querido, esfacelar todas aquelas fantásticas quinquilharias que os poetas tanto amam; derrubar o meu bosque de louros e plantar batatas no lugar; os lírios que não fiam nem trabalham e, no entanto, estão vestidos tão belos como o Rei Salomão, hão de ser arrancados do solo da sociedade, se não quiserem pegar na roca; os rouxinóis, cantores inúteis, hão de ser afugentados, e o meu Livro das Canções será usado, ah!, para embrulhar café ou o rapé das velhotas do futuro – Ah! tudo isso eu prevejo, e uma tristeza indizível se apodera de mim quando penso no declínio com o qual os meus poemas e toda a velha ordem do mundo estão ameaçados pelos comunistas” Tem razão, Heinrich Heine! Não precisamos de bosques de louros, só de batatas!
Eu sou cristão – comprova a certidão “Ich bin ein Christ – wie es im Kirchenbuche”
“Que Deus vos dane e mande para o inferno! A cortesia eu devo a meus parentes.”
“LENDA DE CASTELO
Em Berlim, lá no dossel
De um castelo medieval,
Vê-se dama e um corcel
Em satisfação carnal.
Dizem que a dita seria
A ilustríssima senhora
Mãe da nossa dinastia;
E que a porra¹ inda vigora.
Sim, de fato, o traço humano
Nela mal se faz notar!
Num monarca prussiano
Predomina o cavalar.
A conversação grosseira,
Os relinchos na risada,
Raciocínio de cocheira –
Asno em cada polegada!
Tu, ó mais jovem rebento,²
És o único cristão;
Pelo bom comportamento,
Não serás um garanhão.”
¹ Aqui tem o sentido de arma de tortura medieval.
² Frederico Guilherme IV
“Eu frito ovinhos de formiga
Para comermos de manhã;
Depois eu vou herdar, querida,
Punzins-de-freira¹ da mamã.”
¹ Bolinhos-de-chuva
“MORFINA
(…)
Dormir é bom – morrer, melhor –, contudo,
O que eu prefiro: nunca ter nascido.”
“O DEUS APOLO
(…)
Canta o jovem louro e toca
Lira delicadamente;
Na freirinha a música provoca
Um calor sem precedente.
O sinal da cruz a freira faz;
Um, dois, três sinais da cruz;
O sinal, contudo, é ineficaz
Ao prazer que a dor produz.”
Marguerite Porète, O Espelho das Almas Simples e Aniquiladas (livro de bruxa)
(*) “Mohel: homem judeu habilitado à prática do Brit milah (circuncisão).”
(*) “Livre-espírito: corrente de misticismo radical com tendências anômicas que se disseminou em várias regiões da Europa, entre os séc. XII e XV, englobando os amalricianos, joaquimitas, valdenses e outros, como a Irmandade do Livre-Espírito, surgida na Renânia, Suábia e Países Baixos, no século XIII, e à qual os beguinos foram associados.”
“tão bom quanto morrer pela pátria é ser feliz”
“DOIS CAVALEIROS
Krapulinski e Maukaratski,
Dois polacos da Polônia,
Lutam contra a tirania
De Moscou com acrimônia.
(…)
Tal qual Pátroclo e Aquiles,
Alexandre e Hefestião,
Eles são grandes amigos,
Trocam beijos de montão!
(…)
Sim, os dois têm muitos trajes,
Um pra cada cerimônia –
Duas calças e camisas
Que trouxeram da Polônia.”
“REI DAVI
Déspota – da vida se despede
Rindo, pois bem sabe o que sucede:
O desmando vai trocar de mão,
Não acaba nunca a servidão.”
“AGORA AONDE?
(…)
De fato a guerra se acabou,
Mas não as côrtes marciais,
E aquilo que escreveste outrora,
Dizem, não vai deixar-te em paz.
(…)
Entristecido olho pra cima
Acena-me um montão de estrelas;
Contudo eu não encontro a minha,
Em canto algum consigo vê-la.”
“O REI MOURO
(…)
Ela diz: <Boabdil el Chico,¹
Alegra-te amado meu,
Que no abismo da desgraça
Já verdeja o teu laurel.
Não somente o coroado
De vitórias triunfante,
Protegido por aquela
Deusa cega, é que obtém
Glória, mas também o filho
Do infortúnio, derrubado
Pela sorte, sobrevive
Para sempre na memória>.”
¹ Apelido do último rei mouro derrotado e expulso pela monarquia espanhola em 1492.
* * *
ROMANCE ZERO
ME INSURJO CONTRA HEGEL, ESSE PAGÃO!
“os panteístas na verdade não passam de ateus envergonhados, que temem menos a coisa do que a sombra que ela projeta na parede, do que o nome. (…) só duas formas de governo, a monarquia absolutista e a república, suportam a crítica da razão ou da experiência; deve-se escolher uma delas; toda a mixórdia que há entre as duas é falsa, insustentável e funesta. Do mesmo modo surgiu a concepção na Alemanha de que se deve escolher entre religião e filosofia, entre o dogma revelado da crença e a última conseqüência da razão, entre o absoluto Deus da Bíblia e o ateísmo.
(…) Não brinquei com nenhum simbolismo nem abjurei a minha razão por completo. Não reneguei nada, nem sequer meus velhos deuses pagãos, dos quais me afastei decerto, mas separando-me com amor e amizade.”
“MISERÊ
(…)
Mora nas alturas o dinheiro,
Mas adora adulador rasteiro.
(…)
O preço do pão subiu e muito,
Mas abrir a boca inda é gratuito –
Canta, pois, o cão de algum mecenas
Para te entupir de guloseimas!”
“O APAGADO
(…)
Aflige-me a preocupação – Demora a tal ressurreição?
(…)
o que mais quer este meu corpo é uma mulher.
Deve ser loira, de olho azul,
Linda e suave como a luz
Da lua – só a duras penas
Agüento o sol dessas morenas.”
“EFEMÉRIDE
Missa alguma irão cantar,
Nem Kadisch irão dizer,
Nada dito e nem cantado
Para mim, quando eu morrer.”
“Historinhas de polaco
Que escancaram o riso teu,
Toda noite eu te contava
No dialeto dos judeus.”
Preocupação é como bolha de sabão:
o ruim é quando estoura
Mas dá nada, não!
AMIGOS & DINHEIRO
“Brilhando o Sol-Felicidade,
As moscas dançam à vontade.
Os meus amigos me elogiam,
Com eles sempre compartilho
A carne boa do churrasco
E até meu último centavo.
Sumiu a sorte e o meu dinheiro
Vai com o amigo derradeiro;
Na escuridão, a moscaria
Não dança mais com alegria;
Foram-se as moscas e amizades
De braços com a felicidade.”
“LEGADO
(…)
Cristão eu lego aos inimigos
Dádivas de agradecimento.
Aos meus fiéis opositores
Eu deixo as pragas e doenças,
A minha coleção de dores,
Moléstias e deficiências.
Recebam ainda aquela cólica,
Mordendo feito uma torquês, [fórceps]
Pedras no rim e as hemorróidas,
Que inflamam no final do mês.
As minhas cãibras e gastrite,
Hérnias de disco e convulsões –
Darei de herança tudo aquilo
Que usufruí em diversões.”
O HOMISLOBO
“Israel, que a bruxa má
Metamorfoseou em cão.
(…)
Mas na sexta-feira à tarde,
Nos minutos do crepúsculo,
Cai o encanto, e aquele cão
Recupera a humanidade.
(…)
<Meu amado, hoje ninguém
Vai fumar, porque é Schabat>
(…)
[MASTER CHEF BC]
Cholent, divinal centelha
Filha que nasceu no Elísio!
Assim cantaria Schiller,
Se provasse esse petisco.
Cholent é o manjar dos Céus,
Foi o próprio Deus Senhor
Que passou para Moisés
A receita no Sinai [SENAI!]
(…)
Cholent, ambrosia koscher
Do Deus uno e verdadeiro,
É o maná do paraíso,
E, com ele comparado,
É tão só uma porcaria
Dos diabos a ambrosia
Que na Grécia os simulacros
Do Capeta compartilham.”
“MIMI [a gata]
(…)
De instrumentos não carecem,
São sua própria viola e flauta,
As narinas são trompetes,
Os bigodes, sua pauta.”
Berlioz, Le soirée de l’orchèstre
(*) “Capriccio: do italiano = <movimento súbito>, <capricho>; provavelmente de capro (<bode>); tipo de composição musical caracterizada por uma certa liberdade de realização.” Caprichou, hein?!
* * *
“Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente. Estava na rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral. (…) Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia. A poesia falará dela, particularmente naqueles versos de Heine [Navio Negreiro]”
Machado de Assis, Memorial de Aires (13-05-1908)
DAS SKLAVENSCHIFF
I
Der Superkargo Mynheer van Koek
Sitzt rechnend in seiner Kajüte;
Er kalkuliert der Ladung Betrag
Und die probabeln Profite.
<Der gummi ist gut, der Pfeffer ist gut,
Dreihundert Säche und Fässer;
Ich habe Goldstaub und Elfenbein –
Die schwarze Ware ist besser.
Sechshundert Neger tausche ich ein
Spottwohlfeil am Senegalflusse.
Das Fleisch ist hart, die Sehnen sind stramm,
Wie Eisen vom besten Gusse.
Ich hab zum Tausche Branntewein,
Glasperlen und Stahlzeug gegeben;
Gewinne daran achthundert Prozent,
Bleibt mir die Hälfte am Leben.
Bleiben mir Neger dreihundert nur
Im Hafen von Rio-Janeiro,
Zahlt dort mir hundert Dukaten per Stück
Das Haus Gonzales Perreiro.>
Da plötzlich wird Mynheer van Koek
Aus seinen Gedanken gerissen;
Der Schiffschirurgius tritt herein,
Der Doktor van der Smissen.
Das ist eine klapperdürre Figur,
Die Nase voll roter Warzen –
<Nun, Wasserfeldscherer>, ruft van Koek,
<Wie geht’s meinen lieben Schwarzen?>
Der Doktor dankt der Nachfrage und spricht:
<Ich bin zu melden gekommen,
Dass heute nacht die Sterblichkeit
Bedeutend zugenommen.
Im Durchschnitt starben täglich zwei,
Doch heute starben sieben,
Vier Männer, drei Frauen – Ich hab den Verlust
Sogleich in die Kladde geschrieben.
Ich inspizierte Leichen genau;
Denn diese Schelme stellen
Sich manchmal tot, damit man sie
Hinabwirft in die Wellen.
Ich nahm den Toten die Eisen ab;
Und wie ich gewöhnlich tue,
Ich liess die Leichen wefen ins Meer
Des Morgens in der Fruhe.
Es schossen alsbald hervor aus der Flut
Haifische, ganze Heere,
Sie lieben so sehr das Negerfleisch;
Das sind meine Pensionäre.
Sie folgten unseres Schiffes Spur,
Seit wir verlassen die Küste;
Die Bestein wittern den Leichengeruch
Mit schnupperndem Frassgelüste.
Es ist possierlich anzusehn,
Wie sie nach den Toten schnappen!
Die fasst den Kopf, die fasst das Bein,
Die andern schlucken die Lappen.
Ist alles verschlungen, dann tummeln sie sich
Vernügt um des Schiffes Planken
Und glotzen mich an, als wollten sie
Sich für das Frühstück bedanken.>
Doch seufzend fällt ihm in die Red’
Van Koek: <Wie kann ich lindern
Das Übel? wie kann ich die Progression
Der Sterblichkeit verhindern?>
Der Doktor erwidert: <Durch eigne Schuld
Sind viele Schwarze gestorben;
Ihr schlechter Odem hat die Luft
Im Schiffsraum so sehr verdorben.
Auch starben viele durch Melancholie,
Dieweil sie sich tödlich langweilen;
Durch etwas Luft, Musik und Tanz
Lässt sich die Krankheit heilen.>
Da ruft van Koek: <Ein guter Rat!
Mein teurer Wasserfeldscherer
Ist klug wie Aristoteles,
Des Alexanders Lehrer.
Der Präsident der Sozietät
Der Tulpenveredlung im Delfte
Ist sehr gescheit, doch hat er nicht
Von Eurem Verstande die Hälfte.
Musik! Musik! Die Schwarzen soll’n
Hier auf dem Verdecke tanzen.
Und wer sich beim Hopsen nicht amüsiert,
Den soll die Peitsche kuranzen.>
II
Hoch aus dem blauen Himmelszelt
Viel tausend Sterne schauen,
Sehnsüchtig glänzend, gross und klug,
Wie Augen von schönone Frauen.
Sie blacken hinunter in das Meer,
Das weithin überzogen
Mit phosphorstrahlendem Purpurduft;
Wollüstig girren die Wogen.
Kein Segel flatter am Sklavenschiff,
Es liegt wie abgetakelt;
Doch schimmern Laternen auf dem Verdeck,
Wo Tanzmusik spektakelt.
Die Fiedel streicht der Steuermann,
Der Koch, der spielt die Flöte,
Ein Schiffsjung’ schlägt die Trommel dazu,
Der Doktor blast die Trompete.
Wohl hundert Neger, Männer und Fraun,
Sie jauchzen und hopsen und kreisen
Wie toll herum; bei jedem Sprung
Takmässig klirren die Eisen.
Sie stampfen den Boden mit tobender Lust,
Und Manche schwarze Schöne
Umschlinge wollüstig den nackten Genoss –
Dazwischen ächzende Töne
Der Büttel ist Maître des plaisirs,
Und hat mit Peitschenhieben
Die lässigen Tanzen stimuliert,
Zum Frohasinn angetrieben.
Und Dideldundei und Schnedderedeng!
Der Lärm lockt aus den Tiefen
Die Ungetüme der Wasserwelt
Die dort blödsinnig schliefen.
Schlaftrunken kommen geschwommen heran
Haifische, viele hundert
Sie glotzen nach dem Schiff hinauf,
Sie sind verdutzt, verwundert.
Sie merken, dass die Frühstückstund’
Noch nicht gekommen, un gähnen,
Aufsperrend den Rachen; die Kiefer sind
Bepflanzt mit Sägezähnen.
Und Dideldundei und Schnedderedeng –
Es nehmen kein Ende die Tänze.
Die Haifische baissen vir Ungeduld
Sich selber in die Schwänze.
Ich glaube, sie lieben nicht die Musik,
Wie viele von ihrem Gelichter.
<Trau keener Bestie, die nicht liebt
Musik!> sagt Albions grosser Dichter.
Und Dideldundei und Schnedderedeng –
Die Tänze nehmen kein Ende.
Am Fockmast steht Mynheer van Koek
Und faltet betend die Händer:
<Un Christi willen verschone, o Herr,
Das Leben der Schwarzen Sünder!
Erzürnten sie dich, so weisst du ja,
Sie sind so dumm wie die Rinder.
Verschone ihr Leben um Christi will’n
Der für uns alle gestorben!
Denn bleiben mir nicht dreihundert Stück,
So ist mein Geschäft verdorben.>”
* * *
“Eu sei que o mundo está repleto
De vício, ignorância, intriga;
Mas já me acostumei, confesso,
A rastejar nesta pocilga.
A máquina do mundo não
Há de pegar-me pra moer –
Só saio em rara ocasião,
E fico em casa com prazer.
Me deixa aqui! Minha mulher
Tagarelando é um licor;
Nos olhos dela, e onde quer
Que vejo, enxergo só amor.
Saúde e um pouco de dinheiro,
Senhor, é tudo que eu te rogo!
Quero com minha companheira
Viver feliz no status quo!”
“Uma esfinge de verdade
Não difere da mulher;
Faz-se de frivolidade
A leoa quando quer.
Escuríssima a charada
Dessa esfinge. Nem o tal
Filho-esposo de Jocasta
Decifrava uma igual.
Mas por sorte, o boudoir
Ignora a própria senha;
Se algum dia adivinhar –
Este mundo se desgrenha.”
“DESPEDIDA
(…)
Sei que não foi por descaro
Pelo riso em tua cara;
No teu cérebro as lembranças
Ficam onde não alcanças.
Passar bem! – Nem acreditas
Como dói a despedida.
Deus te conserve a alegria
E a cabeça bem vazia!”
“Por que se arrasta miserável
O justo carregando a cruz,
Enquanto, impune, em seu cavalo,
Desfila o ímpio de arcabuz?
De quem é a culpa? Jeová
Talvez ele não seja assim tão forte?
Ou será Ele o responsável
Por todo o nosso azar e sorte?
E perguntamos o porquê,
Até que súbito – afinal –
Nos calam com a pá de cal –
Isto é resposta que se dê?”
“RATOS RETIRANTES
(…)
1000 kilômetros se arrastam
Os famintos, sem repasto;
Caminhando sobre espinhos
E através dos torvelinhos.
Enfrentando as serranias,
Mar revolto e calmarias;
Uns se afogam, os demais
Nunca olham para trás.
Com focinhos sorrateiros
Fuçam esses companheiros;
A cabeça é sempre igual –
Corte zero, radical.
São vermelhos, têm horror
Dos que crêem no Criador.
Não batizam filho algum,
E a mulher é um bem comum.
Rataiada epicuréia –
Só pensa em pão com geléia;
E renega, quando come,
A imortalidade do homem.
Rato bárbaro e moderno,
Não há gato nem inferno
Que afugente; e sem sustento,
Quer ruir o fundamento.
Arre! Os ratos retirantes
Não estão nada distantes!
Já se escuta o burburinho
Dos roedores a caminho.
Ai de nós! Eles já estão
Se apinhando no portão!
Vereadores e prefeito
Gesticulam contrafeitos.
Soam alto os campanários;
Fazem fila os voluntários:
Vão lutar pela cidade
E a privada propriedade.
Hoje, as preces, meus diletos,
Não vos salvam, nem decretos
Ou disparos de canhão
Vos garantem proteção.
Com floreios de oratória
Não se enfeita esta história.
Silogismo não engana
Uma esperta ratazana.
Quem tem fome filosofa
Com torresmos e farofa
E, dialética, argumenta:
Carne assada com polenta.
Caladinho, o bacalhau
Fala mais ao radical
Que os discursos do Sr.
Quintiliano ou Mirabeau.”
“Terrível mal faz à saúde
A nossa Terra, não te iludas;
Tudo que cresce belo e forte,
Aqui, caminha para a morte.
Serão espectros da loucura,
Que vão subindo nas alturas,
Calados, para engravidar
Com sêmen venenoso o ar?
Flores-meninas que, tão logo
Se desabrocham para o sol
Apaixonado, são colhidas,
Por lâmina cruel, da vida.
Heróis, montados no alazão,
Sucumbem a tiros de canhão;
Assanham-se pela coroa
De louro os sapos na lagoa.
Do que brilhava com orgulho
Hoje nem sombra nem barulho;
Em desespero, o gênio parte
Ao meio a lira de sua arte.
Estrelas é que são espertas!
Da Terra nunca chegam perto;
Ocultas em lugar seguro,
Brilham incólumes no escuro.
Felicidade e calmaria
Elas jamais arriscariam,
Para compartilhar conosco
Miséria e todo esse desgosto –”
“Pra qualquer lugar do mundo
Que fores, no âmago profundo,
Jaz meu espírito zelota,
Em sonhos, dando cambalhota.
Escutas esta melodia?
Ele é quem toca! – E, de alegria,
Uma pulguinha, em teu decote,
Rebola e dá muito pinote.”
“A FLOR DE LÓTUS
Sim, nós dois somos deveras
Um casal muito esquisito;
A mulher é ruim das pernas,
Seu amante é paralítico.
Uma gata que lamenta,
Um doente pra cachorro;
Assim pelo que aparenta
Ambos têm juízo torto.
Ela pôs em sua cabeça
Que é uma flor nenúfar-branca;
Pálido, seu homem pensa
Ser lunífera carranca.
Nas idéias se contentam,
Mas em tudo o que se apraz
Entre a alma e a vestimenta
Vão ficando para trás!
No luar, a flor de lótus
Desabrocha – mas que pena –
Ao invés de um jorro forte
E vital, dão-lhe um poema!”
“Sim, temo que te prejudique,
Minha criança delicada,
Tu disputares a largada
Do Grande Prêmio de Afrodite.
Concordo que seja melhor
Tu escolheres um sujeito
Doente para amante, feito
Eu que somente inspiro dó.”
* * *
“Depois de ter desferido os golpes mais mortais no significado da poesia romântica na Alemanha, de novo penetrou em mim uma nostalgia infinita pela flor azul na terra encantada do romantismo, e agarrei o alaúde enfeitiçado e cantei uma canção, na qual me entreguei a todos os amáveis exageros, a toda enluarada embriaguez, a toda florescente loucura de rouxinol que tanto amei outrora. Eu sei, foi <o último canto silvestre livre do romantismo>, e fui seu último poeta: comigo se encerra a velha escola lírica dos alemães, enquanto, ao mesmo tempo, a nova escola, a poesia moderna alemã, era por mim inaugurada. Essa dupla relevância há de me ser reconhecida pelos historiadores literários da Alemanha.
Confissões, 1854.”
POEMA-SÍNTESE
“No sonho de uma noite de verão,
Onde, ao luar, em branca decadência,
Viam-se os restos – a recordação
Dos tempos de esplendor da Renascença,
(…)
O tempo – ai! – a sífilis pior –
Roubou-lhes a elegância do nariz.
Deitado num sarcófago de mármore,
Intacto, a destacar-se entre as ruínas,
Vê-se, não menos íntegro, o cadáver
De um homem com feições alexandrinas –
(…)
Todo o fulgor do Olimpo em uma leva
De deuses, na tertúlia costumeira;
E, próximo, o casal Adão e Eva –
Pudicos, com folhinhas de figueira.
Ali se via Tróia incendiada,
Helena, Páris e também Heitor;
Judite e Holofernes (sem a espada),
Aarão junto a Moisés, Libertador.
(…)
Ao lado, vinha o burro de Balaão
(A besta que falava maravilhas),
Também se via a prova de Abraão,
E Lot embriagado pelas filhas.
Dava pra ver a dança de Herodias
E a fronte do Batista na bandeja;
O inferno, o Demo e, bem nas cercanias,
A <Pedra> que sustenta a Santa Igreja.
Viam-se ali, talhados com buril,
As artimanhas do deus Jove, o tal
Que como cisne a Leda seduziu,
E a Dânae, como chuva de metal.
Diana, junto às ninfas, no mister
Da caça, e cães dilacerando o intruso;
Hércules, travestido de mulher,
Trabalha com a roca, lãs e o fuso.
Não longe, na montanha do Sinai,
Vê-se Israel entre os rebanhos seus;
No templo, o Deus menino é que se sai
Melhor ao discutir com fariseus.
Contrários justapostos numa pedra:
Da Hélade, o prazer; e da Judéia,
A idéia-Deus! E os dois a hera enreda
Nos arabescos da verdosa teia.
Sublime! Enquanto olhava com espanto
O monumento, em sonho, me dei conta
Que o morto, no sarcófago, era um tanto
Familiar – sou eu que ali desponta!
E em frente ao túmulo, deu na veneta
De enraizar-se flor muito esquisita
(Pétalas cor de enxofre e violeta)
Que de um amor indômito palpita.

O povo a nomeou flor da paixão,
E crê que lá no Gólgota nasceu,
Quando morreu na cruz, pra salvação
Do mundo, o filho único de Deus.
Dizem que a planta dá um testemunho
De sangue, e aquela ferramentaria,
Que sói o algoz usar de próprio punho,
No cálice da flor se enxergaria.
Sim, todos os petrechos da Paixão
Estavam lá – a sala de tortura
Chibata, espinhos pra coroação,
Martelo, pregos e a madeira dura.
A flor cresceu defronte ao mausoléu,
E sobre o meu cadáver se recurva –
Calada, me envolveu no escuro véu,
Me beija, e chora feito uma viúva.
(…)
Não nos falamos, mas meu coração
Ouviu o que calaste – para o amor,
Silêncio é um puro e vívido botão;
Na fala, a língua fica sem pudor.
Ah, como o tal silêncio é linguarudo!
E nada de metáfora gongórica [afetada] –
Sem folhas de figueira, ele diz tudo,
Sem métrica e figuras de retórica.
Diálogo insonoro! E quem diria
Que, nesse lero-lero silencioso,
As horas se entretêm na fantasia
Urdida em fios de arrepio e gozo?
O que falamos? Que pergunta estéril!
No escuro, o que discursa um pirilampo?
O riacho, o que murmura sempre sério?
O que sussurra a brisa pelo campo?
Pepitas, o que falam na batéia?
Acaso exala a rosa algum assunto?
Assim, não se pergunte o que proseia,
Ao plenilúnio, a flor com seu defunto!
(…)
Na pedra, assombra a antiga briga hirsuta
De crenças, entre soco e pontapés? –
Agreste, o grito do deus Pã disputa
A láurea contra a Bíblia de Moisés.
A luta não tem fim, pois, na verdade,
O vero odeia o belo e, mais ou menos,
Sempre estará cindida a humanidade
Em dois partidos – bárbaros e helenos.
Mas como os termos de baixo calão
Se esgotam antes do que os desatinos,
Zurrou sozinho o burro de Balaão,
Sobrepujando os santos e divinos!
Ó, como dói – i, ó! – i, ó! – o ouvido!
Quase me deixa doido a horrível grei
De ornejos desse bicho empedernido –
Por fim, soltei um grito – e despertei.”
* * *
ESBOÇOS DE UMA BIOGRAFIA
(*) “Os cerca de 200 judeus de Düsseldorf gozavam o privilégio de viver numa das poucas cidades alemãs onde não eram confinados em gueto. Através da ocupação francesa, seriam ainda beneficiados com a emancipação – anulada, no entanto, quando o Ducado de Berg passou à jurisdição da Prússia, em 1815.”
(*) “Freqüentaria em seguida o liceu preparatório para o renomado Ginásio de Düsseldorf – com muitos clérigos franceses no corpo docente –, onde veio a estudar de 1810 a 1814, aprendendo francês com o severo abade Jean Baptiste Daulnoy [talvez venha daí sua obsessão pela <cabeça do Batista>!], cujas aulas de métrica e prosódia o deixariam para sempre traumatizado:
<Negou-me qualquer sentido para a poesia, e me chamava de bárbaro da Floresta de Teutoburgo. […] Era um refinamento de crueldade que ultrapassava até as torturas da Paixão do Messias, e que nem mesmo ele teria tolerado impassível. Deus me perdoe – eu praguejei contra Deus, contra o mundo, contra os opressores estrangeiros que queriam nos impingir a sua métrica, e por pouco não me tornei um devorador de franceses. Eu teria morrido pela França, mas fazer versos em francês nunca mais!>
Betty Heine, imaginando para o filho uma carreira de grande financista, na esteira dos Rothschild de Frankfurt, planejava seus estudos meticulosamente, fazendo-o aprender <outros idiomas, especialmente inglês, geografia, contabilidade> e até filosofia kantiana, o que lhe rendeu uma repressão do pai:
<Tua mãe te faz estudar Filosofia com o reitor Schallmeyer. Isso é coisa dela. Eu, de minha parte, não gosto de Filosofia, pois é mera superstição, e sou um comerciante, preciso de minha cabeça para os negócios. Podes filosofar o quanto quiseres, mas peço que não fales em público aquilo que pensas, pois irias me prejudicar os negócios, caso meus clientes soubessem que tenho um filho que não crê em Deus; os judeus, principalmente, não comprariam mais velveteens de mim, e são pessoas honestas, pagam pontualmente e também têm o direito de manter a religião. Sou teu pai e, portanto, mais velho do que tu, e mais experiente; assim deves crer em mim quando digo que o ateísmo é um grande pecado.>”
(*) “o bloqueio marítimo contra a Inglaterra prejudicou seriamente os negócios do pai Samson Heine. Antes mesmo de receber o certificado de conclusão do colégio, Harry foi enviado à Escola Comercial de Vahrenkampf e, em seguida, a Frankfurt, para ingressar na atividade mercantil. Não tendo, contudo, despertado o interesse do primeiro empregador, os pais resolveram confiá-lo ao mais bem-sucedido membro da família, o banqueiro Salomon Heine, em Hamburgo.” “Após a derrota definitiva de Bonaparte em Waterloo, a Santa Aliança entre as monarquias da Rússia, Áustria e Prússia, sob a regência do príncipe von Metternich, blindava o continente contra possíveis rasgos liberais. No Congresso de Viena, em 1815, havia sido criada a Confederação Alemã, composta por 39 Estados, sob a hegemonia dos impérios austríaco e prussiano. § Salomon Heine não custou a perceber a inaptidão do sobrinho para os negócios.”
(*) “Como se não bastasse a inépcia empresarial, Harry ainda inventou de se apaixonar pela prima Amália – um amor não-correspondido, mas que estimulou o tio a bancar-lhe o estudo de Direito para bem longe do lugar. [!] Em setembro de 1819, dirigiu-se a Bonn, onde deu início a um tumultuado período universitário, que incluiu a Universidade de Göttingen – onde envolveu-se num duelo, acabando suspenso por um semestre e expulso da cidade – e a Universidade de Berlim.”
(*) “O ano de 1819 foi especialmente traumático na vida de Heine: seu pai entrou em bancarrota e a Alemanha foi varrida pela primeira onda de violência antissemita da Era Moderna – as <Arruaças Hep! Hep!> –, que, iniciadas em Würzburg por estudantes e artesãos, se espalharam rapidamente pela Confederação Germânica, atingindo a Holanda, Dinamarca e Finlândia. [nunca a Suíça!]”
(*) “O movimento romântico, em que pesem as exceções, descambou para a nostalgia medieval e o reacionarismo místico. Friedrich von Schlegel, um dos mais arrojados e criativos do grupo de Iena, converteu-se ao catolicismo em 1808, mudando-se para Viena, onde passou a redigir memorandos para o príncipe von Metternich. (…) E ainda que o septuagenário Goethe surpreendesse com o erotismo de seu Divã Ocidento-oriental, era todavia, alvo crescente do moralismo biedermeier e dos ataques das jovens gerações, ressentidas com seu alheamento político.” TRISTE FIM, E NADA DE QUARESMA.
(*) “Freqüentou o curso Filosofia da História do Mundo, de Hegel, o mais influente pensador da época, com quem teria contato pessoal; instruiu-se da Antiguidade Clássica com o renomado filólogo Friedrich August Wolf, e assistiu às aulas do jovem lingüista Franz Bopp sobre a poesia indiana, tão em voga nessa época.”
(*) “No ano seguinte, recebeu finalmente o título de Doctor Juris, e tomou uma decisão da qual logo se arrependeria: tornar-se cristão no intuito de ampliar seu leque de opções profissionais. Foi batizado por um pastor evangélico em 28 de junho de 1825, recebendo o nome de Christian Johann Heinrich Heine, nome que jamais divulgou – nem sequer parcialmente – ou permitiu que publicassem, continuando a assinar somente <H. Heine>. O <bilhete de entrada na cultura européia>, como definiu a certidão de batismo, mostrou-se- inútil. Em carta a Moses Moser, desabafou:
<Agora sou odiado por cristãos e judeus. Muito me arrependo de ter me batizado; não vejo no que isso me beneficiou; pelo contrário, desde então só tenho azar – Mas cala-te, és demasiadamente esclarecido para não sorrires disso.>”
(*) “Publicado em 1827, o Livro das Canções levaria, no entanto, alguns anos para atingir a enorme popularidade que faria Walter Benjamin considerá-lo um dos 3 últimos livros de poesia a ter impacto no Ocidente, ao lado do Ossian (1765), de MacPherson, e das Flores do Mal (1857), de Baudelaire. Um êxito ainda mais abrangente devido às melodias de Schubert, Schumann, Mendelsohn, Brahms, Grieg, Hugo Wolf, Silcher e tantos outros, que fizeram de Heine um capítulo à parte da história da música: estima-se em cerca de 10 mil as composições feitas a partir de seus poemas, extraídos principalmente da sua primeira e mais famosa coletânea; somente o <Du bist wie eine Blume> viria a ser musicado 451 vezes.” “A capital conservadora e católica Baviera não era o local mais adequado para um judeu com a pecha de jacobino e ateu. Ainda assim, Heine alimentava a esperança de ser nomeado professor extraordinário na Universidade de Munique, por intermédio de seu conterrâneo Eduard von Schenk, então ministro da Cultura, no governo do rei Ludwig I. Em Munique, ele receberia a visita de um jovem admirador, o desconhecido Robert Schumann, então com 18 anos, que mais tarde iria musicar 46 de seus poemas, destacando-se especialmente no ciclo Dichterliebe Op. 48, sobre 16 poemas do <Intermezzo Lírico>.”
(*) “Este, já informado de que não seria nomeado professor em Munique, e interpretando a afronta como parte da conspiração católico-conservadora que abortou sua carreira acadêmica, respondeu, em <Os Banhos de Lucca>, com uma desmontagem arrasadora da poesia e caráter de seu oponente, fazendo ainda alusões – o que ultrapassava em muito as raias do tolerável na época – à homossexualidade de Platen. O escândalo foi gigantesco!
<Depois de uma batalha eu sou a placidez em pessoa, como Napoleão, que sempre se comovia quando, depois da vitória, cavalgava pelo campo de batalha. O pobre Platen! C’est la guerre! Não valia nenhum torneio de zombarias, mas sim a guerra de destruição em massa [isso já existia?]; e apesar de toda a ponderação ainda não posso vislumbrar as conseqüências do meu livro.>
E estas não tardaram, desfavoráveis a ambos. O conde von Platen, coberto de vergonha, buscou refúgio na Itália, onde, em 1835, viria a falecer envenenado numa desastrada automedicação, após escapar a uma epidemia de cólera em Nápoles, onde havia se radicado, inspirando mais tarde o personagem Gustav von Aschenbach, da novela Morte em Veneza de Thomas Mann – escritor, aliás, que admirava os dois poetas. Heine, por sua vez, perdeu vários amigos na polêmica, vendo se fecharem as últimas portas que lhe restavam na Alemanha, o que apressaria a sua ida para a França.”
“Em Paris, freqüentou a casa do poderoso barão James de Rothschild, banqueiro que estabilizou as finanças do governo de Luís Filipe, e inspirou a célebre frase de Heine: <Pois o Dinheiro é o Deus do nosso tempo e Rothschild é seu profeta>.”
(*) “No meio musical, conviveu, entre outros, com Rossini, Franz Liszt, Giacomo Meyerbeer, Hector Berlioz e Frédéric Chopin – a quem chamou de <poeta do som>. Em Paris, daria acolhida ao jovem Richard Wagner, que se inspirou em obras suas para escrever o argumento de duas de suas óperas – O Navio Fantasma e Tannhäuser –, uma dívida que fez questão de omitir, quando já era o autor declarado do libelo O Judaísmo na Música, publicado anonimamente em 1850, onde afirmava, entre outras, que o judeu não é capaz, <quer por sua aparência externa, quer por sua linguagem, e muito menos por sua canção, de se comunicar artisticamente conosco>.”
“Na arte eu sou supernaturalista. Creio que o artista não pode descobrir todos os seus tipos na natureza, mas que os mais notáveis lhe são revelados, por assim dizer, na alma, como simbólica inata de idéias inatas. Um esteta recente (Carl Friedrich von Rumohr), que escreveu Investigações Italianas, tentou fazer o velho princípio da Imitação da Natureza de novo plausível, ao afirmar: o artista plástico deveria encontrar seus tipos na natureza. Esse esteta, ao erigir uma tal premissa maior para as artes plásticas, não pensou em uma das mais primordiais, ou seja, a arquitetura, cujos tipos imaginamos retroativamente nas ramagens da floresta e nas grutas do penhasco, mas que decerto não encontramos lá primeiramente. Não achavam-se na natureza exterior, mas na alma humana.”
André Breton, Manifesto Surrealista
(*) “Não era o único a escrever sobre os acontecimentos políticos e sociais da França para o público alemão. A dura repressão que se seguiu às revoluções malogradas nos territórios da Confederação Germânica, Itália e Polônia, principalmente, levou milhares de refugiados políticos a Paris, contribuindo para o incremento populacional da cidade, que logo atingiria a cifra de 900 mil habitantes. A porcentagem de alemães não era inexpressiva: calcula-se que pelo menos 60 mil vivessem na metrópole francesa, muitos dos quais conspirando por uma revolução republicana em seu país de origem.”
(*) “Heine jamais revidou publicamente as agressões, o que só fez aumentar o rancor de seu adversário. Após a morte de Börne, em 1837, o poeta dedicou um livro inteiro para um balanço final, onde esmiuçou, com a irreverência costumeira, os pontos de vista, fazendo uma defesa enfática da autonomia da arte, e onde lançou a sua famosa distinção dos homens em <helenos> e <nazarenos>, que seria mais tarde aproveitada por Friedrich Nietzsche.”
(*) “O acerto de contas com Strauss, ocorrido em Paris, no dia 7 de setembro de 1841, não teria, porém, sérias conseqüências para Heine: saiu-se com um tiro de raspão na coxa e casado na igreja católica de Saint-Sulpice com Augustine Crescence Mirat, a bela jovem grisette [jovem sedutora de classe baixa] que ele havia conhecido na Passage de Panoramas, em 1834. Vivia com ela, desde então, num relacionamento ardente e conturbado que ele resolveu oficializar, uma semana antes do duelo, para assegurá-la financeiramente, na eventualidade de sua morte.” “Crescence era uma mulher simplória, temperamental, gastadeira e sem a menor vocação doméstica – um <Vesúvio [desastre] do lar>, segundo Heine. O poeta, que não suportava seu nome verdadeiro, a chamava de Mathilde, para os alemães, e Juliette, para os franceses. Ela não desconfiava da ascendência judaica do companheiro e nem tinha noção exata de sua fama literária, o que era motivo de riso por parte dos amigos de Heine, mas muito o enternecia: <Ela me ama da forma mais pessoal, e a crítica não tem nada a ver com isso!>. Seu inseparável bichinho de estimação, o papagaio Cocotte, era alvo constante do ciúme e irritação de Heine, que, sofrendo de hipersensibilidade auditiva, chegou a atentar contra a vida do pássaro, para em seguida lhe comprar outro. Mathilde sobreviveria ao marido em 27 anos, vindo a falecer, sem nunca ter casado novamente, em 1883, no dia da morte do marido, e rodeada por 60 papagaios.”
Sobre Madame de Staël, De l’Allemagne (1813): “Esse livro sempre me causou impressão um tanto cômica quanto irritante. Aí vejo uma mulher apaixonada com toda a sua turbulência, vejo como esse furacão de saias assola nossa tranqüila Alemanha, como em todo lugar exclama encantada: que silêncio refrescante me envolve aqui! Ela estava queimando na França e veio à Alemanha para se refrescar entre nós. O hálito casto de nossos poetas fez-lhe tão bem nos seios ardentes e ensolarados! Observou nossos filósofos como se fossem diferentes sabores de sorvete, e lambeu Kant como um sorvete de baunilha, Fichte como um de pistache, Schelling como um de arlequim! […] A boa dama viu em nós apenas o que queria ver: uma enevoada terra de espíritos, onde homens incorpóreos, pura virtude, vagueiam por campos nevados, divagando sobre ética e metafísica!”
(*) “No ano seguinte, publicaria na mesma revista, <Da Alemanha desde Lutero>, oferecendo um panorama do pensamento alemão até Hegel, no que é, provavelmente, a mais saborosa e instigante obra de vulgarização filosófica já escrita.” “O momento era mais do que oportuno para um balanço geral: Goethe, o Júpiter das Letras alemãs, havia morrido em março de 1832, pedindo <mais luz!>; e <o grande Hegel, o maior filósofo que a Alemanha produziu desde Leibniz>, 3 meses antes, numa epidemia de cólera, suspirando desconsolado – <só um homem me entendeu, e mesmo ele, não>.
Heine, que havia previsto com alguns anos de antecedência o fim de um período das artes, reafirmou sua posição, partindo para um violento ataque contra a Escola Romântica de seu antigo mestre August von Schlegel. Ele, que havia se arrependido do batismo em 1825, declarava-se então – tal como o faria mais tarde o judeu Ossip Mandelstam – programaticamente <protestante>, frisando que a Revolução era <a grande filha da Reforma>. Numa época em que o gosto por temas medievais havia tornado chic a conversão ao catolicismo, e até impulsionava tentativas de se reverter a secularização do Estado francês, Heine apontava as diferenças fundamentais por trás da atitude romântica em cada um dos lados do Reno:
<A maioria olhou para os túmulos do passado tão-só no intuito de escolher uma fantasia interessante para o carnaval. A moda do gótico, na França, não passou justamente de uma moda, servindo apenas para aumentar o gozo do presente. Deixava-se ondular os cabelos medievalmente compridos, e na mais furtiva observação do barbeiro de que não combinavam com a roupa, mandava-se cortá-los curtos, com todas as idéias medievais que lhe estavam atreladas. Ah! na Alemanha é diferente. Talvez porque lá a Idade Média não está, como entre vós, totalmente morta e apodrecida. A Idade Média alemã não jaz assassinada na cova, mas é reavivada de vez em quando por um fantasma perverso, e adentra em nosso meio à luz do dia, e suga a vida vermelha de nosso peito… Ah! não vedes como a Alemanha é tão pálida e triste? Especialmente a juventude alemã, que até [há] pouco tempo vibrava de entusiasmo? (…) o povo alemão é ele próprio aquele erudito doutor Fausto, é ele próprio aquele espiritualista que através do espírito compreendeu a insuficiência do espírito e clama por prazeres materiais e devolve à carne os seus direitos (…) Por pouco não me dirijo a ele [Goethe] em grego; mas quando percebi que ele compreendia o alemão, contei-lhe – em alemão – que as ameixas no caminho entre Iena e Weimar eram muito saborosas. Logo eu que durante tantas noites de inverno havia remoído o que dizer de sublime e profundo a Goethe quando o visse. E quando finalmente o vi, disse-lhe que as ameixas da Saxônia eram muito saborosas. E Goethe sorriu. Sorriu com os mesmos lábios com os quais beijara outrora Leda, Europa, Dânae, Semele e tantas outras princesas ou ninfas comuns – Les dieux s’en vont. Goethe está morto. (…) o brilho rosa na poesia de Novalis não é a cor da saúde mas da tísica (…) a incandescência púrpura nas ‘peças fantásticas’ de Hoffmann não é a chama do gênio mas da febre (…) a poesia não seria talvez uma doença dos homens, como a pérola, que no fundo não passa da matéria mórbida da qual a pobre ostra padece?>”
“Nós medimos a terra, pesamos as forças da natureza, calculamos os meios da indústria, e eis que descobrimos que este mundo é grande o bastante; que ele oferece a todos espaço suficiente para cada um construir a cabana de sua felicidade; que este mundo pode alimentar a todos nós adequadamente, se todos trabalharmos, e uns não quiserem viver às custas dos outros; e que não precisamos encaminhar as classes mais populares e pobres para o Céu.”
“Que os saint-simonistas se retirem talvez seja muito útil à doutrina. Ela cairá em mãos mais sábias. Especialmente a parte política, a teoria da propriedade, que haverá de ser melhor (sic) elaborada. No que me toca, eu só me interesso mesmo pelas idéias religiosas, que só precisam ser pronunciadas para mais cedo ou mais tarde entrarem na vida.”
“<Grandes filósofos alemães, que por acaso lancem o olhar sobre estas folhas, irão dar de ombros elegantemente acerca da forma miserável de tudo o que dou a público aqui. Mas queiram eles levar em conta que o pouco que digo é completamente claro e inteligível, enquanto as suas obras, ainda que tão fundamentadas, incomensuravelmente fundamentadas, tão profundas, estupendamente profundas, são incompreensíveis. Do que vale ao povo o celeiro para o qual não tem a chave? O povo está faminto de saber, e agradece o pedacinho de pão do espírito que partilho com ele honestamente.>
A dissertação trouxe algumas das passagens mais brilhantes do humor heineano, sem ofuscar, todavia, o embasamento teórico e a pertinência de seus argumentos acerca da igreja católica, Reforma, Lutero, Descartes, Locke, Leibniz, Spinoza, Molière, Voltaire, Lessing, Kant, Goethe, Fichte, Schelling e Hegel; idéias que são ainda capazes não só de instruir e entreter o leitor contemporâneo como também de surprendê-lo (sic) através de sua agudeza e originalidade, fazendo-o lamentar que o autor não tenha vivido para discorrer sobre Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein, Adorno e Walter Benjamin:
<Lutero não compreendeu que a idéia do cristianismo, a negação da sensualidade, era por demais contrária à natureza humana para ser totalmente realizável na vida; não compreendeu que o catolicismo era, por assim dizer, uma concordata entre Deus e o Diabo, ou seja, entre espírito e matéria, através da qual a monarquia absoluta do espírito era proclamada em teoria, mas a matéria colocada em posição de exercer na prática todos os seus direitos anulados.>”
“Lutero criou a língua alemã. Isso aconteceu quando traduziu a Bíblia.”
“Purusha irá de novo se casar com Prakriti. Foi através de sua violenta separação, tão engenhosamente narrada no mito indiano, que surgiu o grande dilaceramento do mundo, o mal.”
“Não lutamos pelos direitos humanos do povo, mas pelos direitos divinos do homem. Nisso, e ainda em algumas outras coisas, nos distinguimos dos homens da Revolução. (…) Reivindicais trajes simples, costumes abnegados e prazeres sem tempero; nós, pelo contrário, reivindicamos néctar e ambrosia, mantos púrpuras (sic), perfumes caros, volúpia e esplendor, dança sorridente de ninfas, música e comédias.”
“No momento em que uma religião requer ajuda da filosofia, seu declínio é inevitável. Ela busca defender-se e vai tagarelando cada vez mais fundo na ruína. A religião, como todo absolutismo, não deve se justificar. Prometeu é acorrentado no rochedo por uma violência calada.”
“Ainda que Immanuel Kant, esse grande destruidor no reino dos pensamentos, tenha superado em muito a Maximilian Robespierre no terrorismo, ele compartilha algumas semelhanças com este, o que nos obriga a uma comparação dos dois homens. Primeiro, encontramos em ambos aquela honestidade inclemente, cortante, sóbria e sem poesia. (…) No mais alto grau, porém, mostra-se em ambos o tipo pequeno-burguês – a natureza os destinara a pesar café e açúcar, mas o destino quis que pesassem outras coisas, e colocou, na balança de um, um rei, e, na do outro, um Deus… E eles deram o peso correto!”
“Devido à secura de suas abstrações, a filosofia kantiana foi muito prejudicial às belas-artes e letras. Por sorte, ela não se intrometeu na gastronomia.”
“É uma circunstância característica, que a filosofia de Fichte tenha sofrido sempre com a sátira. Vi certa vez uma caricatura que representava um ganso fichteano. Ele tinha um fígado tão grande que já não sabia mais se ele era ganso ou fígado. Na barriga estava escrito: Eu = Eu.”
“A filosofia alemã é um assunto importante e que diz respeito a toda a humanidade, e só as gerações futuras poderão decidir se haveremos de ser criticados ou louvados por termos elaborado nossa filosofia primeiro do que nossa Revolução. Parece-me que um povo metódico como o nosso precisava começar pela Reforma, e só a partir daí ocupar-se com a filosofia; e somente depois da consumação desta última, passar para a Revolução política. [grande falha!] Acho a ordem bastante razoável. As cabeças, que a filosofia usou para raciocinar, a Revolução poderá depois decepar para o que bem entender. Mas a filosofia jamais poderia ter, se a Revolução tivesse precedido, usado as cabeças que esta decepou.”
“O pensamento vai à frente da ação, como o raio do trovão. O trovão alemão é sem dúvida alemão e não muito ágil, e vem se formando devagar; mas ele virá, e quando vós o escutardes troar, como nunca antes troou na história do mundo, sabereis então que ele finalmente atingiu o seu alvo. […] Um drama há de ser encenado na Alemanha que fará a Revolução Francesa parecer um idílio inofensivo.”
“<Eu recomendo-lhe essa obra porque contém a quintessência das intenções e esperanças da bagagem com a qual nos ocupamos. Ao mesmo tempo, o produto heineano é uma obra-prima em relação ao estilo e descrição. Heine é a grande cabeça entre os conspiradores.>
Clemens von Metternich
(…) As medidas, contudo, não deixariam de afetar financeiramente o poeta, que, vivendo com uma coquete nada parcimoniosa, e com problemas de saúde cada vez mais constantes, se viu forçado a recorrer à ajuda <familionária> do tio, para usarmos aqui uma de suas palavras-valise; aquela que Fraud dissecou em O chiste e sua relação com o inconsciente. Graças à intercessão de seu irmão Maximilian e do compositor Giacomo Meyerbeer, passou a receber uma pensão de Salomon Heine em 1839.”
“Tranqüilizai-vos, jamais entregarei o Reino aos franceses, pelo simples motivo de que o Reno me pertence.”
(*) “Em maio de 1842, a cidade de Hamburgo foi devastada durante 4 dias por um terrível incêndio que destruiu 1/3 do centro antigo, cerca de 1200 prédios, deixando mais de 20 mil pessoas desabrigadas. A catástrofe consumiu todos os documentos relativos à infância e adolescência de Heine (…) A viagem transcorreu sem incidentes, apesar das seqüelas que a doença já lhe trouxera: estava cego de um olho e com dificuldades para andar.”
(*) “O poeta não errou em seu prognóstico: o épico-satírico Alemanha. Um Conto de Inverno é hoje considerado o ápice da poesia política alemã da primeira metade do séc. XIX.”
“De tudo, em pessoas, que aqui eu deixo, a herança heineana é a que mais me aflige. Como gostaria de colocá-lo em minha bagagem.”
Marx
(*) “Atribulações bem maiores vieram com a morte de Salomon Heine, naquele mesmo ano: o patriarca partiu sem mencionar em testamento a pensão do sobrinho. As discussões de Heine com o primo Carl Heine azedaram-se depressa, devido às condições inaceitáveis que este impôs para prosseguir no pagamento. O compositor Meyerbeer foi mais uma vez chamado a interceder, e até o jovem advogado Ferdinand Lassalle, futuro fundador da Social-Democracia alemã, atuaria nessa controvérsia familiar que durou até o início de 1847, contribuindo bastante para piorar o já debilitado estado de saúde do poeta.
Muito se tem discutido sobre a natureza da enfermidade que começou a atormentá-lo desde a juventude. O diagnóstico da época, e que o poeta transformaria num expressivo topos poético em sua obra tardia, apontou inequìvocamente para a sífilis. Especialistas posteriores aventaram, sem que nunca se descartasse a doença venérea, outras hipóteses, como tuberculose com subseqüente meningoencefalite, esclerose múltipla, polioencefalite crônica, porfiria aguda intermitente, e até envenenamento por chumbo.” Curioso paralelo com o prontuário de Nie.
“O grande Aristófanes do universo, o Aristófanes do Céu, quis demonstrar com toda clareza ao pequeno terráqueo chamado de Aristófanes alemão, como os mais divertidos sarcasmos deste não passam de gracejos sofríveis em comparação com os seus, e o quão deploràvelmente atrás devo ficar, no humor, na zombaria colossal.”
“O Deus dileto, que me tortura tão cruel[mente], hei de denunciar à Sociedade Protetora dos Animais.”
(*) “Prostrado numa pilha de colchões, forçado a levantar com o dedo a pálpebra do único olho que lhe restara, recebendo doses cada vez mais fortes de morfina para suportar as dores, continuou a trabalhar incansàvelmente, com o auxílio de secretários, revisando traduções de suas obras, escrevendo cartas, recebendo visitas do mundo inteiro, e, principalmente, compondo os poemas que integrariam sua terceira e mais densa coletânea de poesia – Romanzero –, publicada em 1851. Dividida em 3 livros – <Histórias>, <Lamentações> e <Melodias Hebraicas> –, a obra reunia poemas predominantemente longos, onde a temática judaica se sobressaía ao lado de uma variedade impressionante de cenários, períodos e personagens históricos – o Egito antigo, a Pérsia clássica, a Índia dos marajás, a Paris das grisettes, Hernan Cortez, Montezuma, a Alemanha medieval, Ricardo Coração de Leão, a Espanha da Reconquista, os poetas Firdusi e Jaufre Rudels, exilados poloneses etc.”
(*) “As notícias de que o poeta estaria à beira da morte e as especulações em torno de sua <conversão> ajudaram a alavancar a vendagem do livro, que em apenas 2 meses esgotou 4 edições.”
“Não estou cego, infelizmente, como os pais costumam estar para com seus amados pimpolhos. Conheço muito bem os seus defeitos. Meus novos poemas não têm a perfeição artística, nem a intelectualidade interior, nem a força ondulante de meus poemas antigos, mas as matérias são mais atrativas, mais coloridas, e talvez o tratamento também os faça mais acessíveis às multidões, o que poderá proporcionar-lhes sucesso e popularidade duradoura.”
(*) “Em seu último ano de vida, Heine ainda arranjou tempo e <espírito> para uma paixão platônica por uma jovem de 20 anos, envolta numa névoa de mistificações e pseudônimos, que intrigariam os pesquisadores por muito tempo.
Camille Selden, aliás Elise Krinitz, aliás Johanna Christiana Müller, teria se apresentado com o nome de Margareth, em 19 de junho de 1855, para entregar uma encomenda do compositor vienense Johann von Püttlingen, ou, conforme outra versão mais prosaica, atendendo a um anúncio de jornal para leitora e secretária. Ficou imortalizada na literatura com o carinhoso apelido que Heine lhe deu – Mouche (mosca). Mathilde parece ter tolerado o capricho irrealizável de seu esposo moribundo, continuando a merecer todas as suas juras de amor e preocupações.
Mas foi a Mouche que Heine dedicou seu derradeiro poema: um feérico e exuberante retrospecto de sua vida, que talvez leve um leitor de Machado de Assis a suspeitar se o poema não teria inspirado a cena inicial de Memórias Póstumas de Brás Cubas.”
(*) “Nos Estados Unidos – somente lá –, circula a informação bem-intencionada de que o nome original do poeta seria Chaim ben Shimshon. Não há qualquer evidência histórica que a comprove nem indício qualquer de sua plausibilidade.
Já os nazistas, não podendo dispensar <A Lorelei> de um poeta judeu-alemão, propagaram falsamente que o seu verdadeiro nome seria Chaim Bückerburg. (…) O sobrenome <Heine> não passaria de uma transliteração para o alemão da palavra hebraica chajim = vida.
Harry, Heinrich e Henri, por sua vez, são variações de um mesmo nome germânico – Heimrich – que significa: Senhor do Lar.
Se tivesse nascido num país de língua portuguesa, Heine poderia muito bem ter se chamado Henrique Vidal (ou Vital).”
(*) “Em suas Memórias inacabadas, o poeta ironizou o fato de os franceses nunca terem conseguido pronunciar seu nome corretamente. O <Heinrich> (leia-se <RÁIN-[rrr]rirrr>) foi imediatamente substituído por <Henri> (<an-RÍ>); mas o sobrenome <Heine> (<RÁI-nê>), continuaria um problema que nem mesmo um acento na primeira sílaba, adotado nos cartões de visita, pôde resolver: <Para a maioria meu nome é M. Enri Enn, que muitos aglutinam num Enrienne; alguns me chamavam Monsieur Un rien>.
Sr. Um nada.”

GLOSSÁRIO:
(PT) bornal: saco com suprimentos; cu; puta.
duft: fragrância
erzürnen: enfurecer
falten: dobrar
gähnen: bocejar
Haifisch: tubarão
Heer: exército, tropa
Himmelszelt: firmamento, abóbada celeste
hopsen: saltitar
Kiefer: presas
klapperdürre: só pele-e-osso, acabado
klirren: batida surda do ferro
Leichengeruch: odor cadavérico
lindern: aliviar
schlucken: tentar engolir
seufzend: aos suspiros, lamurioso
Stahlzeug: material feito de aço
Sterblichkeit: mortalidade
stramm: firme, justo, tenso
Sünder: pecador, desgraçado = SINNER
Ungetüm: monstro
verderben: corromper
verschlungen: complicado