Muito se fala de uma identidade ou de uma ninguendade do povo brasileiro. Hoje não discutirei se a nação brasileira tem um identidade positiva unânime. Se as que vigoram têm ou não validade, ou seriam antes um resíduo, retalhos de diversas origens, um conceito negativo, derivado por contraste. Muitos antropólogos, sociólogos e historiadores sérios cunharam termos que continuam em voga ou já se tornaram obsoletos, neste terreno. Um dos estereótipos identitários mais difundidos por décadas foi o de Sérgio Buarque de Hollanda, o do POVO CORDIAL. Atenção, esta expressão contém uma ironia por parte de seu autor. Hoje o fascista e mau caráter já não necessita, sequer, da fachada patriarcal clássica da cordialidade, portanto esta noção envelheceu mal. Há também a noção do malandro, ou do povo alegre por natureza (quão rousseauniano por derivação!)… Apesar de ciclos de hiper-inflação… Alguém que “sabe viver e amar a vida”… A frase de que Deus é brasileiro sintetizaria toda essa verve mais otimista ou dos integrados. Mas, com menos Eco e Xenófanes e mais cor, vou direto a minha premissa deste artigo – um rascunho de identidade provisória, a característica mais marcante que vejo na somatória da nossa população.
Tenho vergonha de ser brasileiro. Sou brasileiro? Pelo menos formalmente sou forçado a sê-lo. Se fosse para eleger um estereótipo de identidade nacional, sabendo que não se aplica de maneira homogênea à população, nem a todas as posturas de um mesmo cidadão ao longo de sua vida e até mesmo durante o seu dia (que pode encerrar inúmeras contradições e amálgamas incríveis), mas os caracteriza surpreendentemente bem, somente um estereótipo, eu fico com o do racismo. O brasileiro é o povo mais racista do planeta.
Não gastarei muitas linhas com a descrição do muito conhecido racismo estrutural que nos assola internamente e é questão de ordem, questão diária, onipresente, diuturna, indignante, repugnante. Vou por ora apenas citar nossa imensa hipocrisia em tachar outros povos de racistas, sem espelho em casa (os índios entregaram todos aos portugueses). Projetamos nossa própria corrupção interior nas demais nações e aliamos racismo e xenofobia no grau máximo para nos cegarmos e limparmos superficialmente nossa consciência como forma de tocarmos a vida da maneira mais anestesiada possível: somos as vítimas preferidas de racismo no estrangeiro, e os estrangeiros são, todos eles, igualmente imprestáveis, é o que se diz e o que se pensa por aqui.
Creio que quem queira fazer fama apontando o dedo deveria primeiro tratar de não se parecer com os acusados. Não podemos acusar qualquer outra cultura de racista quando somos os campeões no quesito. Em primeiro lugar, a rixa com os vizinhos históricos: os argentinos são racistas, se referem aos brasileiros como macacos, tem uma população de cor baixíssima. Ou será que nós somos xenófobos e temos uma visão deturpada da população argentina?
Não, impossível! Nosso caráter imensamente esclarecido seria incapaz de traçar uma imagem ignominiosa e mentirosa de alguém que divide fronteiras conosco – se o retrato é ruim, a culpa é do retratado! Não são nossos olhos o problema… Somos tão esclarecidos, nossos juízos são tão claros, ponderados, honestos e penetrantes, que não é baixo o percentual de brasileiros que ainda negam existir racismo no Brasil! Anualmente morrem mais negros nas periferias em ações policiais do que em muitas guerras civis e religiosas mundo afora. Nosso empresariado é absolutamente monocromático. Europeizado. Não há espaço para discussão sobre racismo numa sala cheia de velhotes brancos e caquéticos. Isso nada é, porém, diante do racismo da gente preta não-esclarecida, os eternos capatazes do homem branco de matizes coloniais (o porteiro, o guarda-costas, o humilde que tripudia o ainda mais humilde quando pode). O esquema já foi montado, há muito que esta máquina está ligada e parece funcionar em moto perpétuo.
Nas últimas eleições democráticas (vencidas por métodos antidemocráticos) elegemos um Hitler abobado. E o problema são os vizinhos “que se acham ingleses meridionais”? A verdade, porém, é que nenhuma nacionalidade nos cai bem. Para que falar de uruguaios, paraguaios, colombianos, peruanos, venezuelanos, se podemos incluir co-habitantes do mundo muito mais remotos? Se existissem raças (podemos falar em etnias, o que complexificaria a discussão), poderíamos generalizar (aliás, generalizamos sem poder, afinal, somos brasileiros!): todos os “amarelos” (asiáticos) não conta(ria)m com nosso menor beneplácito. Quem são os tão pejorativamente alcunhados de amarelos pela demografia eurocêntrica de séculos passados? Uma multidão de povos de antiguidade milenar, muito mais sábios do que nós.
Ninguém escapa de nossa antipatia pantagruélica. Deploramos outros latinos, somos sempre superiores a eles, latinos americanos ou latinos do outro lado do Atlântico, isso nos é indiferente. Somos xenófobos quase com a mesma naturalidade com que a Alemanha do fim do século XIX abraçou o anti-semitismo. Talvez sejamos mais francófobos ou anglófobos hoje do que os alemães daquela geração: seu rancor pelos vizinhos imediatos se devia mais a frustrações imperialistas, ressentimento pós-guerra ou simples estratégia de marketing para fisgar a ralé do lumpemproletariado e legitimar uma política externa agressiva e um chauvinismo intrafronteiriço sem precedentes. Quem é o lumpemproletariado? É o miserável-capataz que já citei – no Brasil o negro racista é sua melhor (e mais revoltante) demonstração.
Por falar em lumpemproletariado, quando o fascismo o conquista, ele tem facções do populacho retiradas da influência que nele poderia ser exercida pelos partidos comunistas. Começa a fase 2 do programa histórico de apagamento da história: a hipóstase de uma comunistofobia. Odiamos os russos, os cubanos, odiamos os chineses duas vezes agora (já que sempre odiamos os “amarelos”, e há algumas décadas temos uma desculpa suplementar para odiá-los sem rédeas: a cor vermelha). Mas não se engane: mesmo quando nos identificamos como cães de caça a serviço dos ianques e aceitamos seus dólares amarrotados, os Estados Unidos do Brasil ainda tiram sarro dos gringos, dos americanos, mal estes viram as costas: eles são paspalhos, eles são tolos, caipiras cheios de idiossincrasias culinárias e mania de grandeza: nós os seguimos em tudo isto e muito mais – mas o fato é que somos melhores que eles, não é necessário explicar com lógica, temos a nítida sensação de que assim o é! – Assim reza a cartilha do brasileiro.
Deploramos até os portugueses. Errados ou certos, é um belo sintoma edípico de filho que não amadureceu. E por que não falei até agora da África? Porque nada sabemos da história africana, mal sabemos a quantidade de países, a diversidade de religiões ou regimes políticos que predominam na região. Diante de tanta ignorância, até o mais canalha xenófobo torna-se um pouco precavido: melhor não falar mal deste mistério ignoto. Há, não obstante, sempre o idiota esquentado que julga que os males que o continente africano enfrenta são de responsabilidade de alguma característica inerente a eles, manifestada no presente. Indolência, visão de curto prazo ou inferioridade inata, quiçá. Alguém está familiarizado com esses qualificativos? Falta uma análise do problema para além da estupidez unidimensional, ignora-se o espólio cultural contínuo que os africanos subsaarianos sofreram. Mas se ignoramos até os nossos!
Tudo isso para dizer que nós, os racistas e xenófobos por excelência, somos ou pelo menos estamos gravemente doentes, representamos um tumor maligno gigante na superfície da Terra. Nada temos de nos queixar do temperamento ou da conduta dos outros…