ANTES DE BRASÍLIA SÓ EXISTIA O RIO DE JANEIRO (E uma viagem à Paris flaubertiana)

ARQUITETURA BRASILEIRA – Lúcio Costa & al.

Serviço de Documentação – Ministério da Educação e Saúde (Os Cadernos de Cultura).

DEPOIMENTO DE UM ARQUITETO CARIOCA

No segundo quartel do século XIX, o arquiteto francês Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny, formado na prestigiosa tradição acadêmica então em voga, conseguia finalmente, depois de longos anos de penosas atribulações e mal-disfarçada hostilidade, dar início ao ensino regular da arquitetura no próprio edifício construído por ele para sede da recém-fundada Academia de Belas-Artes.

Integrava-se assim, oficialmente, a arquitetura do nosso país no espírito moderno da época, ou seja, no movimento geral de renovação inspirado, ainda uma vez, nos ideais de deliberada contensão plástica próprios do formalismo neoclássico, em contraposição, portanto, ao dinamismo barroco do ciclo anterior, já então impossibilitado de recuperação, ultrapassadas que estavam as suas últimas manifestações, cujo <desenho irregular de gosto francês> — segundo expressão da época — motivara, pejorativamente como de praxe, o qualificativo de rococó.” Brasileiro será a raça que mais aprecia ‘botar apelidos’?

Neste segundo quartel do século XX, apenas encerrado, aportou à Guanabara um compatriota do ilustre mestre, procedente como ele da mesma École des Beaux Arts, velha matriz das instituições congêneres espalhadas pelo mundo, — mas, desta vez, simples aluno e especialmente credenciado pelo presidente do Diretório Acadêmico da referida escola — o Grand Massier — para coligir material relacionado com a nossa arquitetura moderna, a fim de organizar uma exposição no recinto daquele tradicional estabelecimento de ensino, e de assim corresponder ao excepcional interesse ali despertado pelas realizações da arquitetura brasileira contemporânea.”

Semelhante empreendimento, verdadeiramente digno dos tempos novos, no dizer do autor, e capaz de valorizar a excepcional paisagem carioca por efeito do contraste lírico da urbanização monumental, arquitetonicamente ordenada, com a liberdade telúrica e agreste da natureza tropical, foi qualificada como irreal e delirante, porque em desacordo cem as possibilidades do nosso desenvolvimento; porque o brasileiro, individualista por índole e tradição, jamais se sujeitaria a morar em apartamentos de habitação coletiva [?]; porque a nossa técnica, o nosso clima… enfim, a velha história da nossa singularidade: como se os demais países também não fossem cada qual <diferentes> a sua maneira.”

Houve procura; houve capitais; houve capacidade técnica e houve até mesmo, nalguns casos, qualidade arquitetônica. Faltou apenas a necessária visão.” Hehe.

como explicar que, de um lado, a proverbial ineficiência do nosso operariado, a falta de tirocínio técnico dos nossos engenheiros, o atraso da nossa indústria e o horror generalizado pela habitação coletiva se pudessem transformar a ponto de tornar possível, num tão curto prazo, tamanha revolução nos <usos e costumes> da população, na aptidão das oficinas e na proficiência dos profissionais; e que, por outro lado, uma fração mínima dessa massa edificada, no geral de aspecto vulgar e inexpressivo, pudesse alcançar o apuro arquitetônico necessário para sobressair em primeiro plano no mercado da reputação internacional, passando assim o arquiteto brasileiro, da noite para o dia e por consenso unânime da crítica estrangeira idônea, a encabeçar o período de renovação que vem atravessando a arquitetura contemporânea, quando ainda ontem era dos últimos a merecer consideração?”

Se, com respeito ao surto edificador e ao modo de morar, os fatos se explicam como decorrência mesma de umas tantas imposições de natureza técnica e econômico-social, outro tanto não se poderá dizer quanto à revelação do mérito excepcional daquela porção mínima do conjunto edificado, já que a febre construtora dos últimos 25 anos não se limitou, apenas, às poucas cidades do nosso país mas afetou toda a América, a África branca e o Extremo Oriente, sem que adviesse daí qualquer manifestação com iguais características de constância, maturidade e significação; e, ainda agora, a reconstrução européia não deu lugar, ao contrário do que fôra de esperar, senão a raros empreendimentos dignos de maior atenção, como, por exemplo, o caso excepcional de Marselha.”

O desenvolvimento da arquitetura brasileira ou, de modo mais preciso, os fatos relacionados com a arquitetura no Brasil nestes últimos cinqüenta anos, não se apresentam concatenados num processo lógico de sentido evolutivo; assinalam apenas uma sucessão desconexa de episódios contraditórios, justapostos ou simultâneos, mas sempre destituídos de maior significação e, como tal, não constituindo, de modo algum, estágios preparatórios para o que haveria de ocorrer.”

Dois fatores fundamentais condicionaram a natureza das transformações (…) a abolição (…) O negro era esgoto; era água corrente no quarto, quente e fria; era interruptor de luz e botão de campainha; o negro tapava goteira e subia vidraça pesada; era lavador automático, abanava que nem ventilador.”

Aliás, a criadagem negra e mestiça foi precursora da americanização dos costumes das moças de hoje: as liberdades de conduta, os <boy-friends>, os <dancings> e certos trejeitos vulgares já agora consagrados nos vários escalões da hierarquia social.”

Data de então, além da construção de casas minúsculas em lotes exíguos, os pseudo-bungalows, a brusca aparição das casas de apartamentos — o antigo espantalho da habitação coletiva — solução já então corrente alhures, mas retardada aqui em virtude precisamente daquelas facilidades decorrentes da sobrevivência tardia da escravidão.”

[?] Quando li “habitação coletiva” pela 1a vez pensei imediatamente em apartamentos que fossem divididos por várias famílias – curioso como hoje apartamento se identifica totalmente com a acepção de <individual> e <privado>!

O segundo fator, de ação ainda mais prolongada e tremenda repercussão internacional, porque origem da crise contemporânea, cujo epílogo parece cada vez mais distante —, foi a revolução industrial do século XIX.”

Estabeleceu-se, desse modo, o divórcio entre o artista e o povo: enquanto o povo artesão era parte consciente na elaboração e evolução do estilo da época, o povo proletário perdeu contato com a arte. Divórcio ainda acentuado pelo mau gosto burguês do fim do século, que se comprazia, envaidecido, no luxo barato dos móveis e alfaias da produção industrial sobrecarregada de enfeite pseudo-artístico, enquanto a arquitetura, hesitante entre o funcionalismo neo-gótico do ensino de Viollet-le-Duc e as reminiscências do formalismo neoclássico do começo do século, se entregava aos desmandos estucados dos cassinos e aos espalhafatosos empreendimentos das exposições internacionais, antes de resvalar para as estilizações, destituídas de conteúdo orgânico-estrutural, do <art-nouveau> de novecentos.”

desde o mundialmente famoso Palácio de Cristal, da exposição de Londres de 1851 (velho de um século — e ainda se invoca a <precipitação> do modernismo!), do elegante molejo das caleches [palavra importada sem alteração do francês – “Viatura de tração animal, de dois assentos de frente um para o outro e quatro rodas, aberta por diante”] e do tão delicado e engenhoso arcabouço dos guarda-chuvas — versão industrializada do modêlo oriental — até as cadeiras de madeira vergada a fogo, ou de ferro delgadíssimo, para jardim, e as estruturas belíssimas criadas pelo gênio de Eiffel.”

Conquanto a planta da casa ainda preservasse a disposição tradicional do império, com sala de receber à frente, refeitório com puxado de serviço aos fundos e duas ordens de quartos ladeando extenso corredor de ligação, cuja tiragem garantia a boa ventilação de todos os cômodos, o seu aspecto externo modificara-se radicalmente; não só devido à generalização dos porões habitáveis, de pé direito extremamente baixo em contraste com a altura do andar, e que se particularizavam pelos bonitos gradeados de malha miúda (como defesa contra os gatos), mas por causa da troca das tacaniças [“cada um dos lanços triangulares laterais do telhado, em telhados de quatro águas com planta retangular, por oposição à água-mestra”] do telhado tradicional, de quatro águas [“cada uma das vertentes de um telhado”] pela dupla empena [“parede lateral de um edifício, geralmente sem janelas ou aberturas, através da qual um edifício pode encostar a outro”] do chalet, na sua versão local algo contrafeita por pretender atribuir certo ar faceiro ao denso retângulo edificado.” !!!

os jardins, filiados ainda aos traçados românticos de Glaziou, faziam-se mais caprichosos, com caramanchões, repuxos, grutas artificiais, pontes à japonesa e fingimentos de bambu; os elaborados recortes de madeira propiciados pela nova técnica de serragem guarneciam os frágeis varandins e as empenas, cujos tímpanos se ornavam com estuques estereotipados, enquanto os vidros de côr ainda contribuíam para maior diferenciação.”

as couçoeiras [soleira, peça oca feita para girar o eixo da porta] e frisos [barras] de pinho de Riga para o madeiramento dos telhados e vigamento dos pisos e respectivo soalho, chegavam aqui mais baratos e mais bem-aparelhados que a madeira nativa; as telhas mecânicas Roux-Frères, de Marselha, eram mais leves e mais seguras; os delgados esteios e vigas procedentes dos fornos de Birmingham ou de Liège facilitavam a construção dos avarandados corridos de abobadilhas [“abóbadas de tijolo pouco côncavas”] à prova de cupim. Vidraças inteiriças Saint Gobain, papéis pintados para parede, forros de estamparia, mobílias já prontas, lustres para gás e arandelas [aparadeiras ou luminárias] vistosas, lavatórios e vasos sanitários floridos — tudo se importava, e a facilidade relativa das viagens aumentava as oportunidades do convívio europeu.”

COM O PERDÃO DO TROCADILHO DUPLO, FAZ UMA ESTILIZAÇÃO DA REVOLUÇÃO TÉCNICA (SUPERESTIMAÇÃO DA ‘ECONOMIA’ COMO MOTOR DO MUNDO): “A distinção entre transformações estilísticas de caráter evolutivo, embora por vêzes radicais, processadas de um período a outro na arte do mesmo ciclo econômico-social — e, portanto, de superfície —, e transformações como esta, de feição nìtidamente revolucionária, porquanto decorrentes de mudança fundamental na técnica da produção — ou seja, nos modos de fabricar, de construir, de viver —, é indispensável para a compreensão da verdadeira natureza e motivo das substanciais modificações por que vem passando a arquitetura e, de um modo geral, a arte contemporânea, pois, no primeiro caso, o próprio <gôsto>, já cansado de repetir soluções consagradas, toma a iniciativa e guia a intenção formal no sentido da renovação do estilo, ao passo que, no segundo, é a nova técnica e a economia decorrente dela que impõem a alteração e lhe determinam o rumo — o gôsto acompanha. Num, simples mudança de cenário; no outro, estréia de peça nova em temporada que se inaugura.” Temporada de caça ao arco-da-velha

Não foi pois, em verdade, sem propósito que o começo do século se revestiu, no Rio de Janeiro, das galas de um autêntico espetáculo. O urbanismo providencial do prefeito Passos, criador das belas avenidas Beira-Mar e Central, além de outras vias necessárias ao desafogo urbano, provocara o surto generalizado de novas construções, dando assim oportunidade à consagração do ecletismo arquitetônico, de fundo acadêmico, então dominante.

É comovente reviver, através dos artigos do benemérito Araújo Viana, a inauguração, a 7 de setembro de 1904, do eixo da Avenida, iluminada com <70 lâmpadas de arco voltaico e 1200 lâmpadas incandescentes>, além dos grandes painéis luminosos, quando o bonde presidencial a percorreu de ponta a ponta, aclamado pelo cândido entusiasmo da multidão.

Em pouco tempo brotava do chão, ao longo da extensa via guarnecida de amplas calçadas de mosaico construídas por calceteiros importados, tal como o calcário e o basalto, especialmente de Lisboa, toda uma série de edificações de vulto e aparato, para as quais tanto contribuíam conceituados empreiteiros construtores, de preferência italianos, como os Januzzi e Rebecchi, quanto engenheiros prestigiosos que dispunham do serviço de arquitetos anônimos, franceses ou americanos — os nègres, da gíria profissional — e, finalmente, arquitetos independentes a começar pelo mago [!!] Morales de los Ríos, cuja versatilidade e mestria não se embaraçavam ante as mais variadas exigências de programa, fôsse a nobre severidade do próprio edifício da Escola — então dirigida por Bernardelli e exemplarmente construída, embora hoje, internamente desfigurada —, ou o gracioso Pavilhão Mourisco de tão apurado acabamento e melancólico destino.

Enquanto tal ocorria nas áreas novas do centro da cidade, nos arrebaldes o chalet caía de moda, refugiando-se pelos longínquos subúrbios, e, nos bairros elegantes de Botafogo e Flamengo — onde, mesmo antes do fim do século, construíam-se formalizados <vilinos> de planta simétrica, poligonal ou ovalada, e aparência distinta (como, por exemplo, à rua Laranjeiras, 29) e, noutro gênero e com outra intenção, toda uma série de casas irmãs, combinando sabiamente a pedra de aparelho irregular, com as cercaduras e cornijas de tijolos aparentes, protegidas por amplos beirais de inspiração a um tempo tradicional e florentina (ruas Cosme Velho, Bambina, Álvaro Chaves) — já começava a prevalecer nova orientação.”

#CarasErudita “à Avenida Atlântica, esquina de Prado Júnior, onde morou Tristão da Cunha, agora desmantelada e inerme à espera do fim e que ainda ostenta no cunhal o timbre do arquiteto Silva Costa (…) a casa já demolida onde residiu, também no Leme, dona Lúcia Coimbra, née Monteiro” Saudosa Dona Lúcia viúva de Coimbrinha, saudoso Tristão, ah meu compadre Costinha (nepotismo, sempre bom), bons tempos aqueles!

o tão simpático atelier dos irmãos Bernardelli, afoitamente demolido” Dommage!

a sede social do Jockey Club, anteriormente ao acréscimo de 1925 que tanto a desfigurou”

Com o primeiro pós-guerra, outras tendências vieram a manifestar-se. O sonho do <art-nouveau> se desvanecera, dando lugar à <arquitetura de barro>, modelada e pintada por aquele prestidigitador exímio que foi Virzi, artista filiado ao <modernismo> espanhol e italiano de então, ambos igualmente desamparados de qualquer sentido orgânico-funcional e, portanto, destituídos de significação arquitetônica.”

Simultàneamente, ocorria também a arquitetura residencial cem por cento tedesca [X-Kroots!] de Riedlinger e seus arquitetos (construtores do típico Hotel Central), caracterizada pelo deliberado contraste do rústico pardo ou cinza — <à vassourinha> — das paredes, com o impecável revestimento claro dos grandes frontões de contorno firme; pelo nítido desenho da serralheria e pelos caixilhos brancos e venezianas verdes da esquadria de primorosa execução. O apuro germânico da composição se completava com o sólido e sombrio mobiliário de Laubistch Hirth, e era ainda realçado pela pintura esponjada à têmpera, com medalhões e enquadramentos de refinado colorido, obra dos pintores austríacos Vendt e Treidler — este, renomado aquarelista.”

Foi contra essa fei[ú]ra de cenários arquitetônicos improvisados que se pretendeu invocar o artificioso revivescimento formal do nosso próprio passado, donde resultou mais um <pseudo-estilo>, o neocolonial, fruto da interpretação errônea das sábias lições de Araújo Viana, e que teve como precursor Ricardo Severo e por patrono José Mariano Filho.

Tratava-se, no fundo, de um retardado ruskinismo, quando já não se justificava mais, na época, o desconhecimento do sentido profundo implícito na industrialização, nem o menosprezo por suas conseqüências inelutáveis. Relembrada agora, ainda mais avulta a irrelevância da querela entre o falso colonial e o ecletismo dos falsos estilos europeus: era como se, no alheamento da tempestade iminente, anunciada de véspera, ocorresse uma disputa por causa do feitio do toldo para <garden-party>.”

Assim como a Avenida Central marcou o apogeu do ecletismo, também o pseudo-colonial teve a sua festa na exposição comemorativa do centenário da Independência, prestigiado como foi pelo prefeito Carlos Sampaio, o arrasador da primeira das quatro colinas — Castelo, S. Bento, Conceição, Santo Antônio — que balisavam o primitivo quadrilátero urbano, arrasamento aliás necessário e já preconizado desde 1794, segundo apurou o arquiteto Edgard Jacinto, por D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, Bispo que foi de Pernambuco e Elvas e Inquisidor-Geral —, apenas não se levou na devida conta a criteriosa recomendação para que se orientassem as ruas no sentido da viração da barra.”

Adolfo Morales de los Ríos Filho, o incansável paladino da regulamentação profissional. Conquanto se possa discordar, com fundamento, da justiça dessa delimitação entre arquitetos de verdade e de mentira, quando a proficiência pode estar na ordem inversa — os franceses, por exemplo, ficariam privados dos seus dois arquitetos mais representativos, embora de tendências opostas, Le Corbusier e Auguste Perret —, do ponto de vista restrito dos interesses de classe, justificava-se então a medida. É que, na época, ainda persistia na opinião leiga certa tendência no sentido de considerar o engenheiro civil uma espécie de faz-tudo, cabendo-lhe responder por todos os setores das atividades liberais que se não enquadrassem na alçada do médico ou do advogado. Além de teórico do cálculo e da mecânica e especialista de estruturas, hidráulica, eletrotécnica e viação, presumiam-no ainda — ao fim do currículo de 5 anos — químico, físico, economista, administrador, sanitarista, astrônomo e arquiteto.” “a burrice especializada a que pode eventualmente conduzir a fragmentação cada vez maior dos vários setores do conhecimento profissional”

Conquanto seja de fato, e cada vez mais, ciência, a arquitetura se distingue contudo, fundamentalmente, das demais atividades politécnicas, porque, durante a elaboração do projeto e no próprio transcurso da obra, envolve a participação constante do sentimento no exercício continuado de escolher entre duas ou mais soluções, de partido geral ou pormenor, igualmente válidas do ponto de vista funcional das diferentes técnicas interessadas — mas cujo teor plástico varia —, aquela que melhor se ajuste à intenção original visada.”

A PLANTA DE UMA CIDADE DESARBORIZADA

o edifício de A Noite pode ser considerado o marco que delimita a fase experimental das estruturas adaptadas a uma <arquitetura> avulsa, da fase arquitetônica de elaboração consciente de projetos já integrados à estrutura e que teria, depois, como símbolo definitivo, o edifício do Ministério da Educação e Saúde.”

EIS O ÔMI: “o poeta, engenheiro, artista e olindense Joaquim Cardoso, que há cerca de 20 anos, a princípio com Luís Nunes, agora com Oscar Niemeyer e José Reis, vem dando a colaboração de seu lúcido engenho às realizações modernas da arquitetura brasileira, devedora, ainda, a 2 engenheiros, além dos que, na Faculdade, contribuem decisivamente para a formação do arquiteto: Carmen Portinho, traço vivo de união, desde menina, entre Belas-Artes e Politécnica, e Paulo Sá, dedicado desde a primeira hora ao problema arquitetônico fundamental da orientação e insolação adequada dos edifícios.”

o primeiro rebelado modernista da Escola, já em 1919, na aula de pequenas composições de arquitetura, foi Atílio Masieri Alves, filho do erudito Constâncio Alves, ex-aluno da Politécnica, entusiasta da cenografia de Bakst e da mímica de Chaplin — mentalidade privilegiada que a boêmia perdeu”

METARGAMASSA: “o primeiro edifício construído sôbre pilotis tem 20 anos, pois data de 1931 e foi projetado por Stelio Alves de Souza“os pilotis, cuja ordenação arquitetônica decorre do fato de os edifícios não se fundarem mais sôbre um perímetro maciço de paredes, mas sôbre os pilares de uma estrutura autônoma”

Construído na mesma época, com os mesmos materiais e para o mesmo fim utilitário, avulta no entanto, o edifício do ministério em meio à espessa vulgaridade da edificação circunvizinha, como algo que ali pousasse serenamente, apenas para o comovido enlevo do transeunte despreocupado, e, vez por outra, surpreso à vista de tão sublimada manifestação de pureza formal e domínio da vazão sôbre a inércia da matéria.

É belo, pois. E não apenas belo, mas simbólico, porquanto a sua construção só foi possível na medida em que desrespeitou tanto a legislação municipal vigente, quanto a ética profissional e até mesmo as regras mais comezinhas do saber-viver e da normal conduta interesseira.” HAHAHA!

A personalidade de Oscar Niemeyer Soares Filho, arquiteto de formação e mentalidade genuinamente cariocas — conquanto, já agora, internacionalmente consagrado — soube estar presente na ocasião oportuna e desempenhar integralmente o papel que as circunstâncias propícias lhe reservavam e que avultou, a seguir, com as obras longínquas da Pampulha. Desse momento em diante o rumo diferente se impôs e nova era estava assegurada.

Assim como Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, em circunstâncias muito semelhantes, nas Minas Gerais do século XVIII, êle é a chave do enigma que intriga a quantos se detêm na admiração dessa obra esplêndida e numerosa devida a tantos arquitetos diferentes, desde o impecável veterano Afonso Eduardo Reidy e dos admiráveis irmãos Roberto, de sangue sempre renovado, ao atuante arquiteto Mindlin, transferido para aqui de São Paulo e às surpreendentes realizações de todos os demais, tanto da velha guarda, quanto da nova geração e até dos últimos conscritos.”

CONSIDERAÇÕES SÔBRE ARTE CONTEMPORÂNEA

Dando “continuidade” ao que acabo de ler em Dorfles, Lúcio Costa paga pau ao sepultado Bauhaus!

Pode-se então definir a arquitetura como construção concebida com a intenção de ordenar plasticamente o espaço, em função de uma determinada época, de um determinado meio, de uma determinada técnica e de um determinado programa.”

As técnicas construtivas contemporâneas — caracterizadas pela independência das ossaturas em relação às paredes e pelos pisos balanceados, resultando daí a autonomia interna das plantas, de caráter <funcional-fisiológico>, e a autonomia relativa das fachadas, de natureza <plástico-funcional>, — tornaram possível, pela primeira vez na história da arquitetura, a perfeita fusão daqueles dois conceitos dantes justamente considerados irreconciliáveis [na essência, seguindo Costa, a arquitetura gótica e a arquitetura clássica], porque contraditórios: a obra, encarada desde o início como um organismo vivo, é, de fato, concebida no todo e realizada no pormenor de modo estritamente funcional, quer dizer, em obediência escrupulosa às exigências do cálculo, da técnica, do meio e do programa, mas visando sempre igualmente a alcançar um apuro plástico ideal, graças à unidade orgânica que a autonomia estrutural faculta e à relativa liberdade no planejar e compor que ela enseja. É na fusão desses dois conceitos, quando o jogo das formas livremente delineadas ou geomètricamente definidas se processa espontânea ou intencionalmente, ora derramadas, ora contidas, que se escondem a sedução e as possibilidades virtuais ilimitadas da arquitetura moderna.

AS 8 GRANDES ARQUITETURAS PRÉ-CONTEMPORÂNEAS DE LÚCIO COSTA

arte mediterrânea (egípcio-greco-etrusco-romano-bizantina): de contensão, de geometria maximamente euclidiana, atemporal

arte gótica: expansional, vertical, pela primeira vez uma arte européia ou histórica, do devir

arte barroca: no equilíbrio sinuoso das tendências acima

arte hindu: autorreferente, autossuficiente; embora dinâmica, consegue ser o contrário da gótica. A arte khmer pode ser catalogada logo ao lado (origem indo-chinesa).

arte eslava: espiral, ansiosa, ideal

arte árabe: tendente ao mosaico, à compartimentalização em pequenos universos por si mesmos dotados de sentido

arte iraniana: ramificada, expansiva como a pétala duma flor

arte sino-japonesa: vertical porém mais gradual e menos direta que a gótica; costuma terminar em pontas, edificações de topo agudo. “telhados escalonados dos pagodes”

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GENEALOGIA DA SÍNTESE MODERNA

Arte mesopotâmica (eixo mesopotamo-mediterrâneo): protoarte estática

Arte assíria (eixo nórdico-oriental): protoarte dinâmica

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CASOS HISTÓRICOS PONTUAIS

Arte helenística: “barroco antigo”; o drama do começo da luta da arte dinâmica contra a arte estática ou clássica.

Arte bizantina: sob influência eslava e italiana, vê-se como seu exemplo capital a Igreja do Bem-Aventurado Basílio (Catedral de São Basílio), em Moscou:

Saint_Basils_Cathedral
É como nenhum outro edifício russo. Nada semelhante pode ser encontrado no milênio inteiro da tradição bizantina, do século V ao XV.” Shvidkovsky

Arte veneziana: verdadeiro caleidoscópio de influências de quase todas as correntes arquitetônicas ao seu redor.

Artes árabe-iraniano-peninsulares: decorrentes das invasões muçulmanas no ocidente europeu, no Irã, no Paquistão, na Síria, no norte da África.

Arte ultra-barroca: Portugal sob D. Manoel. Na verdade o nome é um anacronismo, visto que foi anterior ao próprio barroco e à vida de Michelangelo. O entrechoque precoce e extremado das estéticas românica (estática, clássica) e oriental (dinâmica).

Assim, portanto, a constância do ciclo <clássico-barroco> ou <clássico-romântico>, observada pela acuidade intelectual do Sr. Eugênio D’Ors, teria outro fundamento, e significação ainda mais profunda, porquanto já não se trataria apenas, em essência, dos tempos sucessivos de um pêndulo, mas, principalmente, da ocorrência simultânea de duas correntes bem-definidas de conceitos plásticos antagônicos e dos seus contatos e trocas, senão mesmo da sua eventual fusão.”

Arte Renascentista e Nacionalismos: correção de rota da <arte dinâmica exacerbada>: “Conquanto na Itália essa legítima recuperação dos direitos de cidadania ocorresse com espontâneo desembaraço desde as primeiras revelações, seguidas da plenitude do Quattrocento, até a eloqüência da alta-renascença, na Europa do norte a nova concepção formal provocou, de início, perplexidades, adquirindo gradações bem-definidas segundo o caráter nacional dos diferentes povos afetados pela febre renovadora.”

Arte germânico-eslava pós-Renascença: gótico “monolítico”, quase ao ponto do kitsch avant la lettre. Proto-barroco.

Arte neo-anglo-saxônica: fusão do estilo inglês com o neoclassicismo. Infunde-se também no Novo Mundo (assim como o barroco influenciaria muitos pontos coloniais latinos).

Arte francesa: possui uma evolução toda particular difícil de resumir.

Artes pré-colombianas: Arte azteca x Arte inca, reprodução em microescala da dualidade-antagonismo dinamismo x estática. Arte maia, no olho do furacão: considerada híbrida. Obviamente arquiteturas como a mexicana e a peruana são altamente tributárias desta ascendência civilizacional.

Lúcio Costa estende sua teoria da dualidade hegemônica ou “yin-yang plástico” à cerâmica oposta de grupos de tribos e etnias indígenas brasileiras (Marajó x Santarém).

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WELCOME TO POST-MODERNITY! “informação no tempo — as obras criadas na mais remota idade são-nos familiares nos seus mínimos pormenores; informação no espaço — as realizações de maior significação, elaboradas onde quer que seja, vêm-nos ao alcance quase instantaneamente através da publicação nos periódicos especializados, com abundância de texto elucidativo e de reproduções fidelíssimas, ou diretamente, por meio das exposições individuais ou coletivas, dos cursos de conferências e da literatura especializada.

Esse acúmulo de conhecimentos faz com que o artista moderno viva, a bem dizer, saturado de impressões provenientes de procedências as mais imprevistas, o que o impede de conduzir o seu aprendizado e formação no sentido único e com a candura desprevenida dos antigos, pois, queira-o ou não, êle se há de revelar precocemente erudito.”

ESTILO OU EX-TILO?

Ora, não é, de modo algum, de monstros que se trata, e nada há de caótico nem de artìsticamente feio ou doentio nessas criações picassianas concebidas e ordenadas segundo os imperativos de uma consciência plástica excepcionalmente sã e lúcida, e das quais se desprende, graças à pureza da côr e do desenho, uma euforia travessa, ou se expande um otimismo heróico contagioso, quando não é o caso de se conterem, pelo contrário, no mais sereno equilíbrio. (…)

Semelhante equívoco sobreveio também a propósito da pseudo-querela entre partidários da arte <figurativa> e da arte <não-figurativa>, distinção destituída de sentido do ponto de vista plástico, mas retomada por ocasião da exposição da obra significativa de PORTINARI, em Paris, e ùltimamente avivada.” Confesso que Costa era um homem à frente de sua década.

os símbolos, tal como os mitos na antiguidade, já perderam, em parte, a força sugestiva e a sua condição de estimuladores das artes plásticas”

a arte pela arte como função social, nova conceituação capaz de desfazer o pseudo-dilema que preocupa a tantos críticos e artistas contemporâneos, ou seja, o da gratuidade ou militância da obra de arte.”

A presunção de ser a arte pela arte antítese de arte social é tão destituída de sentido como a antinomia arte figurativa—arte abstrata, não passando, em verdade, de uma deformação teórica inexplicavelmente aceita pela crítica de arte, a título de tabu, assim como se fosse, por exemplo, ato condenável a prática do bem só por bondade.”

Precisamente esse poder de invenção desinteressada e de livre expansão criadora, que tanto se lhes recrimina, é que poderá vir a desempenhar, dentro em breve, uma função social de alcance decisivo, passando a constituir, de modo imprevisto, o fundamento mesmo de uma arte vigorosa e pura, de sentido otimista, digna portanto de um proletariado cada vez mais senhor do seu destino.”

Mas como é preciso semear para colher, caberia mobilizar os velhos mestres, criadores geniais da arte do nosso tempo, a fim de que dedicassem o resto de suas vidas preciosas à tarefa benemérita de plantar no meio agreste dos centros industriais e agrícolas as sementes de uma tal renovação.”

tese — a arte moderna é considerada por certa crítica, de lastro conservador, como arte revolucionária, patrocinada pelo comunismo agnóstico no intuito de desmoralizar e solapar os fundamentos da sociedade burguesa; antítese — a arte moderna é considerada por determinada crítica, de lastro popular, como arte reacionária, patrocinada pela plutocracia capitalista com propósitos diversionistas a fim de afastar os intelectuais da causa do povo; síntese — a arte moderna deve ser considerada como o complemento lógico da industrialização contemporânea, pois resultou das mesmas causas, e tem por função, do ponto de vista restrito da aplicação social, dar vazão natural aos anseios legítimos de livre escolha e fantasia individual ou coletiva da massa proletária, oprimida pela rudeza e monotonia do trabalho mecanizado imposto pelas técnicas modernas de produção.”

Industrialização capaz de transferir o imemorial anseio de justiça social do plano utópico para o plano das realidades inelutáveis.”

DOZE JOVENS POETAS PORTUGUÊSES – Alfredo Margarido & Carlos Eurico da Costa

O poeta maneja o chicote de 72 pontas, de 72 línguas. É o senhor das palavras e, no silêncio, valoriza-as e recria-as. Doloroso e trágico esforço de transportar o vaso sagrado para a forma do Verbo, traído a cada instante pela instabilidade de cada vocábulo.”

Resulta de tudo isto que o sentido de superfície, o sentido usual, tem muito pouca importância e pode mesmo não existir. O que importa é o sentido da profundidade, a descida, de escafandro ou nu, mantendo uma vaga ligação de tubo de oxigênio com o mundo ou fazendo dos pulmões guelras, às regiões abissais, onde vivem os peixes cegos e as vegetações são estranhas flores fosforescentes.” HAHAHA

POEMA DO CERCADINHO DO PALÁCIO DO PLANALTO

o cerrado está errado em hipocampo aberto

cheio de abetos

retorcidos

rescindidos

redivivos

divididos

subversivos

versos sub

servientres

inchados

de enxadas de

candangos

dançando o

tango

do centro

trocando bugalhos

por alhos

A procura do amor é a procura de um absoluto. Diferentes dos seus antecessores na poesia portuguesa, estes poetas procuram com o sexo, com o plexo solar [???], com o grande simpático. Poder-se-á dizer que a função se degrada, mas a verdade é que o amor é um ato válido por si, independente do sentimento.”

O que finca os poetas afundam

FORMA E EXPRESSÃO DO SONETO – Paulo Mendes Campos

Depois do modernismo, inimigo do soneto, foi VINÍCIUS DE MORAIS que começou a criar gosto pelo soneto de forma regular. Os novos o seguiram, e muitos poetas e não-poetas protestaram contra o retorno a esse velho hábito de nossa lírica; a geração do soneto, sem procedência, passou a ser um apelido irônico, talvez no propósito mais ou menos válido de mostrar que é ocupação ociosa compor sonetos certos em um tempo errado. Sabem no entanto os poetas, ou se não sabem adivinham, que os tempos nunca foram certos, e que o primeiro dever a lhes pesar é para com a linguagem. A reação irritada contra o soneto vinha apenas mostrar que este voltava a ter um papel em nossa poesia atual. É possível que amanhã nos cansemos de novo do soneto.”

O PREGO & E A BOSSA

LUGARES-COMUNS – Fernando Sabino

Não houvesse o Eclesiastes afirmado que nada há de novo debaixo do sol e os lugares-comuns se encarregariam de prová-lo. Que restará da verdade para quem a repete, senão talvez a presunção de sua originalidade?”

Ora, se as idéias se impõem pela repetição, porque ao homem é mais cômodo adotá-las que produzi-las, nada melhor que repetir o que pretendemos impor-lhe. É o recurso característico da propaganda de ideologias totalitárias. O que se dá com as idéias, dá-se também com a publicidade de produtos comerciais e a dos próprios homens. É possível impor um homem aos demais pela simples repetição — o que se pode verificar por ocasião das campanhas eleitorais.”

uma sapataria do Rio de Janeiro tentou certa vez vencer o lugar-comum pelo oposto, afirmando ser a menor e a que mais caro vendia — mas o público, habituado aos métodos tradicionais de propaganda, que o dispensam de pensar por conta própria, mansamente acreditou no que se afirmava, passando a buscar outra sapataria.”

Experimente alguém escapar ao repertório de idéias feitas já estabelecido para as diferentes situações da vida em comum; experimente elidir os gestos convencionais, lugares-comuns da convivência: os de surpresa, de alegria, de interesse ou comiseração — o sorriso de modéstia, de gentileza, de agradecimento; experimente, enfim, reagir segundo sua genuína solicitação interior — e será tido por louco, afastado como indesejável.”

O homem é um animal racional, embora não pareça. Não há criança que, ao aprender essa verdade na escola, não se tenha rido.”

À medida que o discurso laudatório se tornava em mera técnica de louvor, a Retórica, observa Curtius, vinha perdendo a sua aplicação e tornava-se o cabedal das formas da literatura em geral. Esta passou a impor-se como algo fixo, preestabelecido e estratificado em modos de dizer que era de bom gosto repetir. <Por este tempo>, escreve Rodrigues Lapa, <em que os poetas mendigavam com sonetos as migalhas que caíam das mesas dos fidalgos e dos conventos abastados, julgava-se que a língua era uma construção mais ou menos fixada pelo bom uso. Para se escrever bem, nada mais era necessário que seguir à risca o exemplo dos antigos, escolhendo no espólio das formas herdadas o que mais conviesse a cada um>. E o mesmo filólogo dá notícia do Dicionário Poético para Uso dos que Principiam a Exercitar-se na Poesia Portuguesa Obra Igualmente Útil ao Orador Principiante, de autoria de Cândido Lusitano, publicado em Lisboa ao tempo do Marquês de Pombal, em 1765. Obras deste gênero, repositórios sistematizados de lugares-comuns, seriam hoje consultadas por um escritor apenas para saber como NÃO se deve escrever.”

Nenhum homem rico terá amigos que não sejam numerosos. Todas as firmas da praça comercial serão sempre respeitáveis.”

Num país como a França, cuja literatura, supercivilizada, chegou à saturação, é natural que a inteligência se limite a comprazer-se em jogos sutis: não há mais originalidade alguma na tão preconizada originalidade de estilo; negá-la é que é ser original. Pois se os olhos forem mesmo deslumbrantes, as pedras, preciosas, os dedos, delicados, que estas palavras sejam ditas, escritas com todas as letras, para que se imponham pela verossimilhança do que exprimem, como meio de transmissão de uma idéia e não como fim em si mesmas. Porque é preciso distinguir, menos com a inteligência que pela sensibilidade: a lua pálida, o céu estrelado, o lago tranqüilo não são lugares-comuns senão para os que apenas verificam a tranqüilidade do lago, o brilho das estrelas no céu e a palidez da lua. Têm o direito de verificar, é inegável; mas ao leitor cabe também o direito de esperar que tirem desta verificação algum proveito.”

DICIONÁRIO DE IDÉIAS FEITAS, de Gustavo Flaubert

Tu me falas da estupidez geral, meu caro amigo, escrevia Flaubert, pouco antes de morrer, a Raoul Duval, ah! eu a conheço, eu a estudo. Eis aí o inimigo, não há mesmo outro inimigo. Obcecado em combater este inimigo, esperava ainda denunciá-lo com uma obra gigantesca que receberia o título de Enciclopédia da Estupidez Humana.”

Depois que morreu, contudo, encontraram entre os seus papéis um caderno de apenas quarenta páginas, com o título de Dictionnaire des Idées Reçues. Era tudo que chegara a realizar do projeto formulado durante tantos anos, mas já o suficiente para fazer de Flaubert o precursor de James Joyce, na opinião de Ezra Pound (…) A 1° edição foi lançada somente em 1911, como apêndice de Bouvard et Pécuchet; o texto continha 674 verbetes, redigidos sem preocupação de forma e mesmo de ortografia, classificados mais ou menos em ordem alfabética.

ACADEMIA FRANCESA — Atacá-la, mas procurar fazer parte dela, se possível.

AFRESCOS — Não se fazem mais hoje em dia.

AGRICULTURA — Um dos úberes do Estado (o Estado é do gênero masculino, mas isso não tem importância). Deveria ser encorajada. Falta de braços.

ALABASTRO — Serve para descrever as mais belas partes do corpo feminino. Racistas miseráveis!

ALEMANHA — Sempre precedida de loura, sonhadora. Mas que organização militar!

ALFÂNDEGA — Revoltar contra e fraudá-la.

ALGARAVIA — Maneira de falar comum aos estrangeiros. Rir sempre do estrangeiro que fala mal francês.

ALIMENTAÇÃO — Sempre sadia e abundante nos colégios.

AMBICIOSO — Na província, todo homem que faz falarem de si. Dizer sempre “Não sou ambicioso!”. Egoísta ou incapaz.

AMÉRICA — Belo exemplo de injustiça: foi Colombo quem a descobriu, e seu nome vem de Américo Vespúcio. Sem a descoberta da América, não teríamos a sífilis e a filoxera. Exaltá-la, apesar disso, sobretudo quando lá não se esteve. Fazer um comentário sôbre o “self-government”.

ANDORINHAS — Chamá-las sempre de mensageiras da primavera. Como se ignora de onde vêm, dizer que vêm de longínquas regiões (poético).

ANTICRISTO — Voltaire.

ANTIGUIDADES (AS) — São sempre de fabricação moderna.

APARTAMENTO (De rapaz) — Sempre em desordem; com lembranças de mulher aqui e ali. — Cheiro de cigarro. Devem-se encontrar nele coisas extraordinárias.

AQUILES — Acrescentar “de pés ligeiros”; isso fará crer que se leu Homero.

ARQUIMEDES — Dizer ao ouvir seu nome: “Eureka!” — “Dêem-me um ponto e erguerei o mundo.” — Há ainda a máquina de Arquimedes, mas ninguém sabe do que se trata.

ARQUITETOS — São todos imbecis. — Esquecem sempre a escada das casas.

ARQUITETURA — Não há senão 4 espécies de arquitetura. Bem entendido que não se contando a egípcia, a ciclópica, a assíria, a hindu, a chinesa, gótica, romana, etc.

ARTE — Leva sempre ao hospital. Inútil, pois pode ser substituída pelas máquinas, que fabricam melhor e com mais rapidez.

ARTISTAS — Todos farsantes. Louvar seu desinteresse (antigo). Espantar-se de que se vistam como todo mundo (antigo). Ganham um dinheirão mas atiram-no pela janela. Sempre convidados a jantar na cidade. — Mulheres artistas não podem ser senão devassas. — O que eles fazem não se pode chamar de trabalhar.

ASTRONOMIA — Bela ciência. Não é útil senão para a Marinha. A propósito, rir-se da astrologia.

ATRIZES — A perdição dos filhos de família. São de uma lubricidade espantosa, entregam-se a orgias, gastam milhões, terminam no hospital. Perdão! há muitas que são boas mães de família!

AUTOR — Deve-se “conhecer os autores”. Inútil saber seus nomes.

BACHARELADO — Clamar contra.

BALÕES — Com os balões, acabaremos por ir à lua. Ainda não está próximo o dia em que os poderemos dirigir.

BANQUEIROS — Todos ricos. Árabes, linces.

BANQUETE — Um engraçado deve dizer: “No banquete da vida, conviva infortunado…”
BARBA — Sinal de força. Muita barba faz cair os cabelos. Útil para proteger as gravatas.

BASES DA SOCIEDADE — A propriedade, a família, a religião, o respeito às autoridades. Falar com cólera se são atacadas.

BASÍLICA — Sinônimo pomposo de igreja. — Sempre imponente.

BENGALA —- Mais temível que a espada.

BESOURO —- Filho da primavera. Belo assunto para um opúsculo. Sua destruição radical é o sonho de todo prefeito: quando se fala de seus danos num discurso de comício agrícola, deve-se tratá-lo por “coleópteros funestos”.

BIGODES — Dão um ar marcial.

BUDISMO — “Falsa religião da Índia” (definição do Dicionário Bouillet, 1ª edição).

CAÇA — Excelente exercício que se deve fingir que se adora. Faz parte da pompa dos soberanos. Assunto de delírio para a magistratura.

CADAFALSO — Preparar-se quando subir, para pronunciar algumas palavras eloqüentes antes de morrer.

CAFÉ — Não é bom a não ser vindo do Havre. — Num grande jantar, deve-se tomar de pé. Tomá-lo sem açúcar, muito elegante, dá o ar de haver vivido no Oriente.

CALDO (O) — É saudável. Inseparável da palavra sopa: a sopa e o caldo.

CALIGRAFIA — Uma bela caligrafia conduz a tudo. Indecifrável: prova de ciência. Ex.: receitas de médicos.

CALO (NOS PÉS) — Indica mudanças do tempo melhor que os barômetros. Muito perigoso quando mal-cortado; citar exemplos de acidentes terríveis.

CALOR — Sempre insuportável. Não beber quando faz calor.

CALVÍCIE — Sempre precoce, causada por excesso de mocidade ou pela concepção de grandes pensamentos.

CAMARILHA — Indignar-se ao pronunciar esta palavra. (Verbete atualizado para GABINETE DO ÓDIO em janeiro de 2019.)

CANHOTOS — Terríveis na esgrima. — Mais hábeis do que os que se servem da mão direita.

CÃO — Especialmente criado para salvar a vida de seu dono.

CARROS — Mais cômodo alugá-los que possuí-los: desta maneira não se tem aborrecimento com empregados, nem cavalos que estão sempre doentes.

CARNICEIROS — São terríveis, em época de revolução.

CARRASCO — Passa sempre de pais a filhos.

CATAPLASMA — Deve-se sempre aplicar enquanto se aguarda a chegada do médico.

CAVALARIA — Mais nobre que a infantaria.

CAVALHEIROS – Não há mais.

CAVALO — Se conhecesse sua força, não se deixaria conduzir. Carne de cavalo.

CAVERNAS — Habitação comum aos ladrões. — São sempre cheias de serpentes.

CELIBATÁRIOS — Egoístas e libertinos. Deviam ser obrigados a casar. Preparam-se uma triste velhice.

CHAMPANHE™ — Caracteriza o jantar de cerimônia. — Fazer ar de detestá-lo, dizendo: “Não é um vinho”. — Na Rússia se consome mais que na França. Através dêle é que as idéias francesas se espalharam pela Europa. Não se bebe: “vira-se”.

CHAPÉU — Protestar contra a forma dos chapéus.

CHATEAUBRIAND — Conhecido sobretudo pelo “beefsteak” que tem o seu nome.

CIÊNCIA — Um pouco de ciência afasta a religião e muita ciência a restabelece.

CÍRCULO — Deve-se sempre fazer parte de um círculo.

CIRURGIÕES — Têm o coração duro: chamá-los de carniceiros.

CISNE — Canta antes de morrer. Com sua asa pode quebrar a coxa de um homem. O cisne de Cambral não era uma ave, mas um homem chamado Fénelon. O de Mântua é Virgílio. O cisne de Pesaro é Rossini.

CLARO-ESCURO – Não se sabe o que é.

COELHO — Sempre substituído por gato nos restaurantes.

COGNAC — Muito funesto. Excelente contra várias doenças. Um bom cálice de cognac não faz mal a ninguém.

COGUMELOS — Não devem ser comprados senão no mercado.

COITO, CÓPULA — Palavras a evitar. Dizer: “Eles tinham relações…”

COLCHÃO — Quanto mais duro, mais higiênico.

CÓLERA — Agita o sangue; higiênico deixar-se possuir por ela de quando em quando.

COLÔNIAS (Nossas. Alerta ao brasileiro do século XXI: não se está falando de perfume barato.) — Entristecer-se quando falar nelas.

COMÉDIA — Em verso, não convém mais à nossa época. Deve-se, contudo, respeitar a alta comédia. Castigai ridendo mores.

COMÉRCIO — Discutir para saber qual é mais nobre: o comércio ou a indústria.

CONCUPISCÊNCIA — Palavra de vigário para exprimir desejos carnais.

CONFORTÁVEL — Preciosa descoberta moderna.

CONJURADOS — Os conjurados têm sempre a mania de se inscrever numa lista. (Ou de fazerem um grupo no zapzap.)

CONTRALTO — Não se sabe o que é.

CONVERSAÇÃO — A política e a religião devem ser excluídas.

CORCUNDAS — Têm muito espírito. São muito disputados pelas mulheres lascivas.

CORRETORES — Todos ladrões. (Roubaram as palavras da minha boca – no Android.)

COSTAS — Um tapa nas costas pode fazer um tuberculoso.

CRIADAS — Todas más. Não há mais domésticas!

CRIANÇAS — Simular uma ternura lírica por elas, quando tiver gente perto.

CRÍTICO — Sempre eminente. Presume-se que tudo conheça, tudo saiba, tudo leu, tudo viu. Quando lhe causar desagrado, chamá-lo de Aristarco, ou eunuco.

CRUZADAS — Foram benéficas apenas para o comércio de Veneza.

CÚPULA — Espantar-se que se sustentem por si mesmas. Citar duas: a dos Inválidos e a de São Pedro de Roma. (Cúpula das Américas debatendo o capitalismo sustentável.)


DAGUERREÓTIPO — Substituirá a pintura.

DANÇARINA — Palavra que arrebata a imaginação. Tôdas as mulheres do Oriente são dançarinas.

DARWIN — Aquele que diz que descendemos do macaco.

DÉCOR” (de Teatro) — Não é pintura: basta lançar sôbre a tela côres à solta; depois espalha-se com uma escova, e a distância, com a luz, produz a ilusão.”

DEICIDA — Indignar-se contra, ainda que o crime não seja freqüente.

DENTADURA — Terceira dentição. Tirá-la ao dormir.

DENTISTAS — Todos mentirosos. Crê-se que são também pedicuros. Dizem-se cirurgiões como os agrônomos se dizem engenheiros.

DEPUTADO — Ser é o máximo da glória. Clamar contra a Câmara dos Deputados. Muitos tagarelas na Câmara. Não fazem nada. (Feijoada.)

DESERTO – Produz tâmaras.

DEUS O próprio Voltaire disse: “Se Deus não existisse, seria preciso que o inventássemos.”

DEVERES — Exigi-los dos outros, sem contemplações. Os outros os tem para conosco, mas nós não os temos para com eles.

DEVOTAMENTO – Queixar-se dos que não o têm. “Somos bem inferiores aos cães, neste particular!”

DICIONÁRIO (Metalinguagem) — Dizer: “Não existe senão para os ignorantes!”. Dicionário de rimas: consultá-lo? Vergonhoso!

DIDEROT — Seguido sempre de D’Alembert. (Podemos incluir outro quase acima deste verbete, logo abaixo de DEICIDA: DELEUZE — Seguido sempre de Guattari.)

DILIGÊNCIA — Ter saudades do tempo das diligências.

DIÓGENES (Aquele que não é o Laércio.) — “Procuro um homem… Não me tire o sol.”

DIPLOMA — Sinal de ciência. Não prova nada.

DIPLOMACIA — Bela carreira, mas cheia de dificuldades e mistérios. Não convém senão aos nobres. Profissão de significação vaga, mas acima do comércio. Um diplomata é sempre fino e penetrante. (O concurso que seu pai sonha que você passe.)

DIREITO (O) — Não se sabe o que é.

DISSECAÇÃO —- Ultraje à majestade da morte.

DIVA — Tôdas as cantoras devem ser chamadas de Diva.

DIVÓRCIO — Se Napoleão não se tivesse divorciado, ainda ocuparia o trono.

DOENÇA NERVOSA — Sempre caretas.

DOMICÍLIO — Sempre inviolável. Entretanto, a Justiça, a Polícia, penetram nele quando querem.

DONZELAS — Pronunciar esta palavra timidamente. Tôdas as donzelas são pálidas e frágeis, sempre puras. Evitar para elas toda espécie de livros, visitas a museus, teatros e sobretudo o Jardim Zoológico, lado dos macacos.

DORMIR — Dormir demais faz engrossar o sangue.

DORMITÓRIOS — Sempre espaçosos e bem arejados. Preferíveis aos quartos, para moralidade dos alunos.

DOUTRINÁRIOS — Desprezá-los. Por quê? Não se sabe.

DURO — Acrescentar invariavelmente: como ferro. Há também “duro como pedra”, mas é menos enérgico.

ÉCHARPE” — Poético.

ECLETISMO — Combatê-lo, como sendo uma filosofia imoral.

EDIL — Protestar, a propósito do calçamento das ruas: “que fazem nossos edis?”

ELEFANTES — Distinguem-se por sua memória e adoram o sol.

EMBRIAGUÊS — Sempre precedida de louca.

EMIGRANTES — Ganham a vida dando lições de violão e fazendo salada.

EMPRESÁRIO — Invariavelmente seguido por articulado, não importa de que ramo. (Reformulei completamente o verbete de Flaubert.)

ENCICLOPÉDIA — Rir de comiseração, como sendo uma obra rococó, e até ser contra.

ENTERRAMENTO — A propósito do defunto: “E dizer que jantei com êle há 8 dias!” Chama-se exéquias quando se trata de um general, enterro quando se trata de um filósofo.

ENTREATO — Sempre muito longo.

ENTUSIASMO — Só pode ser provocado pelo retorno das cinzas do Imperador. Sempre impossível de descrever, e, em duas colunas, o jornal não fala de outra coisa.

EPICURO — Desprezá-lo.

ÉPOCA (A nossa) — Atacá-la. Queixar-se de que não é poética. Chamá-la época de transição, de decadência.

EQUITAÇÃO — Bom exercício para emagrecer. Ex.: todos os soldados da cavalaria são magros. Bom exercício para engordar. Ex.: todos os oficiais da cavalaria são barrigudos.

EREÇÃO — Não se diz senão a propósito de monumentos.

ERRO — “É pior que um crime, é um erro” (Talleyrand). “Não há mais um só erro a cometer” (Thiers). Estas duas frases devem ser pronunciadas com profundeza.

ESBIRRO — Usado pelos republicanos mais ardorosos para designar os agentes da polícia. (O atual pé-de-botas, gambé, recruta, bedel, porco…)

ESCRITO BEM ESCRITO — Palavras de porteiros, para designar romances-folhetins que lhes agradam.

ESPADA — Só se conhece a de Dâmocles. Suspirar pelo tempo em que eram usadas.

ESPINAFRE — É a vassoura do estômago. Nunca deixar de acertar a célebre frase de Prudhomme: “Eu não gosto, e me sinto à vontade, pois se gostasse, comê-lo-ia, e não poderia suportá-lo.” (Há quem ache isto perfeitamente lógico e que não se ri.)

ESPIRITUALISMO — O melhor sistema filosófico.

ESPIRRAR — É uma troça espirituosa dizer: o russo e o polonês não se falam, espirram.

ESPIRRO — Depois de dizer “Deus te ajude”, iniciar uma discussão sôbre a origem deste costume.

ESTOICISMO — É impossível.

ESTRADAS DE FERRO — Se Napoleão as tivesse à sua disposição, teria sido invencível. Extasiar-se com a invenção e dizer: “Eu, que o senhor vê, estava esta manhã em X; saí de trem de X; fiz meus negócios, etc, e a tantas horas estava de volta!”

ESTRANGEIRO — Entusiasmo por tudo que vem do estrangeiro, prova de espírito liberal. Descrédito de tudo que não seja francês, prova de patriotismo.

ETIMOLOGIA — Nada mais fácil de saber, com latim e um pouco de reflexão.

ETRUSCO — Todos os vasos antigos são etruscos.

EUNUCO — Nunca tem filhos. Indignar-se contra os castrados da Capela Sixtina.

EVACUAÇÕES — Sempre copiosas e de aspecto mau.

EVIDÊNCIA — Cega-nos, quando não entra pelos olhos.

EXCEÇÃO — Diga que confirmam a regra. Não se arrisque a dizer como.

EXPIRAR — Não se conjuga senão a propósito de assinatura de jornais.

EXTIRPAR — Este verbo só é usado com relação às heresias e aos calos dos pés.

FATALIDADE — Palavra exclusivamente romântica. Homem fatal é aquele que tem mau olhar.

FECHADO — Sempre precedido de herméticamente.

FÊMEA — Não se emprega senão quando se trata de animais. Ao contrário do que acontece na espécie humana, as fêmeas dos animais são menos belas que os machos. Ex.: faisão, galo, leão, etc.

FETO — Toda peça anatômica conservada em álcool.

FEUDALISMO — Não ter nenhuma idéia precisa, mas ser contra.

FLAGRANTE DELITO — Não se emprega senão nos casos de adultério.

FLEUMA — Boa qualidade, além do que empresta um ar inglês. Sempre seguida de imperturbável.

FORÇA — Sempre hercúlea.

FORMIGA — Belo exemplo a citar-se diante de um dissipador.

FÓSSEIS — Prova do dilúvio. Brincadeira de bom gosto, referindo-se a um acadêmico.

FOUCAULT – Ame-o ou vilipendie-o. (Acrescido por mim.)

FRANCO-MAÇONARIA – Ainda uma das causas da Revolução! As provas de iniciação são terríveis. Mal vista pelo clero. Qual poderá ser o seu segredo?

FRAUDAR — Fraudar o fisco não é ludibriar, é uma prova de espírito e independência política.

FULMINAR – Bonito verbo. Sempre precedido de “infarto” quando em sua forma adjetivada “fulminante”.

FUZIL — Ter sempre um na casa de campo.

FUZILAR — Mais nobre que guilhotinar. Alegria do condenado a quem concedem este favor.

GARANHÃO — Sempre vigoroso. A mulher deve ignorar a diferença entre um garanhão e um cavalo.

GENERAL — Sempre bravo. Faz geralmente aquilo que não concerne ao seu estado, como ser embaixador, conselheiro municipal ou chefe de Governo.

GÊNERO EPISTOLAR Gênero de estilo exclusivamente reservado às mulheres.

GÊNIO (O) — Inútil admirá-lo, é uma neurose.

GERAÇÃO ESPONTÂNEA — Idéia de socialista.

GINÁSTICA — Não saberíamos fazê-la. Extenua as crianças.

GIRONDINOS – Mais a lastimar que a censurar.

GLOBO — Palavra pudica para designar os seios de uma mulher. “Deixa-me beijar teus globos adoráveis”.

GOMA ELÁSTICA — Feita de testículos de cavalo.

GORDOS — As pessoas gordas não precisam aprender a nadar. São o desespero dos carrascos devido às dificuldades que oferecem ao serem executados. Ex. : Du Barry.

GOSTO — Tudo aquilo que é simples é sempre de bom gosto. Deve-se sempre dizer isto a uma mulher que se escusa da modéstia de seu vestido.

GÓTICO — Estilo de arquitetura mais relacionado à religião que os demais.

GOVERNANTAS — Sempre de excelente família que passou por dificuldades. Perigosas numa casa, corrompem os maridos.

GRAMÁTICA – Ensiná-la aos meninos desde a mais tenra idade, como sendo coisa clara e fácil.

GRAMÁTICOS — Todos pedantes.

GUERRILHA — Mais prejudicial ao inimigo que o exército regular.

HÁBITO — É uma segunda natureza. Os hábitos, no colégio, são maus hábitos. Com o hábito, pode-se tocar violino como Paganini.

HARÉM — Comparar sempre um sultão em seu harém a um galo em meio às galinhas. Sonho de todos os colegiais.

HARPA — Produz harmonias celestiais. Não se toca, em gravuras, senão nas ruínas ou junto a um regato.

HEMORRÓIDAS — Provêm de se assentar em bancos de pedra.

HENRIQUE III, HENRIQUE IV – A propósito destes reis, não deixar de dizer: “Todos os Henriques foram infelizes”.

HERMAFRODITA — Excita a curiosidade malsã. Procurar vê-lo.

HÉRNIA — Todo mundo a tem, sem saber.

HIDROTERAPIA — Cura todas as doenças e as provoca.

HIPÓCRATES — Deve-se sempre citá-lo em latim porque êle escrevia em grego, com a exceção desta frase: “Hipócrates diz sim, mas Galeno diz não.”

HIPÓLITO — A morte de Hipólito, o mais belo tema de narração que se possa dar. Todo mundo deveria saber êste trecho de cor.

HIPOTECA — Requerer a “reforma do regime hipotecário”, muito elegante.

HISTERIA — Confundi-la com a ninfomania.

HOMERO — Nunca existiu. Célebre por sua maneira de rir.

HOMO — Dizer Ecce homo! ao ver entrar a pessoa que se espera.

HORROR — Horrores! — referindo-se a expressões lúbricas. Pode-se fazer mas não se deve dizer. Foi durante o horror de uma noite profunda.

HOSTILIDADES — As hostilidades são como as ostras: abrem-se. “As hostilidades foram abertas”: Nada mais a fazer senão sentar-se à mesa.

HOTÉIS — Bons somente na Suíça.

HUGO (VICTOR) — Fêz muito mal, realmente, em ocupar-se de política.

IDÓLATRAS — São canibais.

ILÍADA — Seguida sempre de Odisséia.

ILUSÕES — Fazer crer que se teve muitas, queixar-se daquilo que as fêz perder.

IMAGINAÇÃO — Sempre viva. Desconfiar dela. Quando não se tem. atacá-la nos outros. Para escrever romances, basta ter imaginação.

IMBECIS — Aqueles que não pensam como nós.

IMBROGLIO” — A base de todas as peças de teatro.

IMORALIDADE — Esta palavra, bem pronunciada, distingue aquele que a emprega.

IMPRENSA — Descoberta maravilhosa. Tem feito mais mal do que bem.

IMPRESSO — Deve-se crer em tudo que é impresso. Ver seu nome impresso! Há os que cometem crimes exclusivamente para isto.

INAUGURAÇÃO – Motivo de alegria.

INCÊNDIO — Um espetáculo para os olhos.

INDOLÊNCIA — Conseqüência dos países quentes.

INFANTICÍDIO — Não se comete senão entre a gente do povo.

INFECTO — Deve-se dizer de toda obra artística ou literária que Le Figaro não permite que se admire.

INFINITESIMAL — Não se sabe o que é. Mas tem relação com a homeopatia.

INQUISIÇÃO — Exagera-se muito a respeito de seus crimes.

INSCRIÇÃO — Sempre cuneiforme.

INSTRUÇÃO — Aparentar ter recebido muita. O povo não tem necessidade dela para ganhar a vida.

INSTRUMENTO — Os instrumentos que servem para cometer um crime são sempre contundentes quando não são cortantes.

INTEGRIDADE Pertence, sobretudo, à magistratura.

INTRODUÇÃO — Palavra obscena.

INUMAÇÃO — Quase sempre precipitada: contar histórias de cadáveres que haviam devorado o próprio braço para aplacar a fome.

INVENTORES — Morrem todos no hospital. Um outro sempre se beneficia do que descobriram, o que não é justo.

INVERNO — Sempre excepcional.

ITÁLIA — Deve-se visitá-la imediatamente após o casamento. Tem-se muita decepção, não é tão bela como dizem.

ITALIANOS — Todos músicos. Todos traidores.

JANSENISMO — Não se sabe o que é, mas é muito elegante citá-lo.

JANTAR — Antigamente jantava-se cedo, hoje se janta a horas impossíveis. O jantar de nossos pais era o nosso almoço e o nosso almoço, seu jantar. Jantar tão tarde que não se chama mais jantar e sim cear.

JARDINS INGLESES — Mais naturais que os jardins franceses.

JASPE — Todos os vasos dos museus são de jaspe.

JESUÍTAS — Participam de todas as revoluções. Não ter dúvida quanto ao número deles. Não falar na “batalha dos Jesuítas”.

JOCKEY CLUB — Os sócios são todos jovens farsantes e muito ricos. Dizer simplesmente “o Jockey”, muito elegante, faz crer que se é sócio.

JORNAIS — Não se pode dispensá-los, mas ser contra eles. Sua importância na sociedade moderna. Ex.: Le Figaro. Os jornais sérios: La Revue des Deux Mondes, L’Économiste, Le Journal des Débats; ler pela manhã um artigo destas folhas sérias e graves e à noite, em sociedade, dirigir a conversação para o assunto estudado a fim de poder brilhar.

JÚRI — Esforçar-se para não fazer parte dele.

LA FONTAINE — Sustentar que nunca lemos seus contos. Chamá-lo “Bonhomme”, o imortal fabulista.

LACUSTRES (Cidades) — Negar sua existência, pois não se pode viver debaixo d’água.

LAFAYETTE — General célebre por seu cavalo branco.

LAGO — Ter uma mulher junto de nós, ao passar num lago.

LATIM — Língua natural ao homem. Útil somente para se ler inscrições em monumentos públicos. Desconfiar das citações em latim: escondem sempre alguma sutileza.

LEÃO — É generoso. Brinca sempre com uma bola. E dizer que o leão e o tigre são gatos!

LEBRE — Dorme de olhos abertos.

LEGALIDADE — A legalidade nos mata. Com ela, nenhum governo é possível.

LEITE — Atrai serpentes. Clareia a pele; as mulheres em Paris tomam um banho de leite todas as manhãs. (Os Nazipardos tomam só um copinho, porque na América do Sul é uma commodity muito cara.)

LETARGIA — Sabe-se de algumas que duraram anos.

LIBERDADE — Ó Liberdade! quantos crimes se cometem em teu nome! Temos todas as que são necessárias. A liberdade não é licença (frase de conservador).

LIBERTINAGEM — Não existe senão nas grandes cidades.

LINCE — Animal célebre pela sua vista.

LITERATURA — Ocupação de ociosos.

LITTRÉ — Sorrir ao ouvir seu nome: “Este senhor que disse que descendemos dos macacos.”

LORD — Inglês rico.

LOURAS — Mais ardentes que as morenas.

LUGAREJO — Substantivo enternecedor. Vai bem em poesia.

LUÍS XVI — Dizer sempre: “Este monarca infeliz…”

LUZ — Dizer sempre: Fiat lux! quando se acende uma vela.

MAGIA — Caçoar a respeito.

MAGISTRATURA — Bela carreira para um jovem.

MAGNETISMO — Interessante assunto de conversação e que serve para “conseguir mulheres”.

MALDIÇÃO — Sempre dada por um pai.

MALTHUS – “O infame Malthus”.

MAQUIAVEL — Não tê-lo lido, mas considerá-lo um bandido.

MAQUIAVELISMO — Palavra que se deve pronunciar tremendo.

MAR — Não tem fundo. Imagem do infinito. Inspira grandes pensamentos.

MARFIM — Não se emprega senão a propósito de dentes.

MATERIALISMO — Pronunciar esta palavra com horror, e descansando em cada sílaba.

MATINAL — Ser, prova de moralidade. Se nos deitamos às 4 horas da manhã e nos levantamos às 8, somos preguiçosos, mas se nos deitamos às 9 horas da noite, para nos levantarmos no dia seguinte às 5, somos laboriosos.

MÁXIMA — Nunca nova, mas sempre consoladora.

MECÂNICA — Parte inferior das matemáticas.

MEDALHA — Só se sabia fazer na antiguidade.

MEDICINA — Caçoar dela quando se sentir bem.

MEFISTOFÉLICO — Deve-se dizer de todo riso amargo.

MEIA-NOITE — Limite da felicidade e dos prazeres honestos. O que se faz depois é imoral.

MELÃO — Assunto de conversação à mesa. É um legume? É um fruto? Os ingleses o comem à sobremesa, o que é de se espantar.

MELODRAMAS — Menos imorais que os dramas.

MEMÓRIA — Lastimar a sua, e até se vangloriar de não tê-la.

MENSAGEM — Mais nobre que carta.

MERCÚRIO — Mata a doença e o doente.

METAFÍSICA — Rir, como prova de espírito superior.

METAMORFOSE — Rir do tempo em que se acreditava. — Ovídio as inventou.

MÉTODO — Não serve para nada.

MEXILHÕES — Sempre indigestos.

MINISTRO — Último grau da glória humana.

MISSIONÁRIOS — São todos comidos ou crucificados.

MOCIDADE — Ah! É bela a mocidade. Citar sempre versos italianos, mesmo sem compreendê-los:

O Primavera! Gioventù dell’anno!

O Gioventù! Primavera della vita!

MONARQUIA — A monarquia constitucional é a melhor das repúblicas.

MONOPÓLIO Clamar contra.

MORENAS — Mais ardentes que as louras.

MOSTARDA — Nao é boa senão em Dijon. Arruina o estômago.

MULHER — Uma das costelas de Adão. Não se diz “minha mulher” e sim “minha esposa”, ou melhor, “minha metade”.

MÚSCULOS — Os músculos dos homens fortes são sempre de aço.

MUSEU — De Versailles: recompõe os altos feitos da glória nacional; grande idéia de Luís Felipe. Do Louvre: a ser evitado pelas jovens.

MÚSICO — O natural de um verdadeiro músico é não compor nenhuma música, não tocar nenhum instrumento e desprezar os “virtuoses”.

NÁPOLES — Em conversa com sábios, dizer Partênope. Ver Nápoles e depois morrer.

NARINAS — Abertas, sinal de lubricidade.

NATUREZA — Como é bela a natureza! Dizer isso sempre que se estiver no campo.

NÉCTAR — Confunde-se com ambrosia.

NEGRAS — Mais ardentes que as brancas.

NEGROS — Espantar-se porque sua saliva é branca, e porque falam francês.

NEOLOGISMO — A perdição da língua francesa.

NÓ GÓRDIO — Tem relação com a antiguidade. (Maneira pela qual os antigos davam laço em suas gravatas.)

NOTÁRIOS — Atualmente, não confiar neles.

NUMISMÁTICA — Tem relação com as altas ciências, inspira um respeito imenso.

OBSCENIDADE — Todas as palavras derivadas do grego ou do latim escondem uma obscenidade.

OBUSES — Servem para fazer pêndulos e tinteiros.

OCTOGENÁRIO — Diz-se de todo velho.

ODALISCAS — Todas as mulheres do Oriente são odaliscas.

ÔMEGA — Segunda letra do alfabeto grego, pois se diz sempre alfa e ômega.

ÔNIBUS — Jamais se encontra lugar. Foram inventados por Luís XIV.

ÓPERA (Bastidores da) Paraíso de Maomé sôbre a terra.

OPERÁRIOS — Sempre honestos, quando não se revoltam.

ORAÇÃO — Todo discurso de Bossuet.

ORÇAMENTO — Jamais em equilíbrio.

ORDEM — Quantos crimes são cometidos em teu nome!

ÓRGÃO — Transporta a alma a Deus.

ORIENTALISTA — Homem muito viajado.

ORIGINAL — Rir de tudo que é original, odiar, ridicularizar e exterminar, se possível.

ORQUESTRA — Imagem da sociedade: cada um executa a sua parte e há um chefe.

ORQUITE — Doença de senhores.

ORTOGRAFIA — Não é necessária quando se tem estilo.

OTIMISTA — Sinônimo de imbecil.

OVO — Ponto de partida para dissertação filosófica sôbre a origem dos seres.

PADRES — Deviam ser castrados. Dormem com suas empregadas e têm filhos que chamam de sobrinhos.

PADRINHO — Sempre pai do afilhado.

PAGANINI — Não afinava jamais seu violino. Célebre pelo comprimento de seus dedos.

PANTEÍSMO — Clamar contra; um absurdo!

PÃO — Não se sabe jamais quanta sujeira há no pão.

PARALELO — Deve-se escolher entre os seguintes: César e Pompéia, Horácio e Virgílio, Voltaire e Rousseau, Napoleão e Carlos Magno, Goethe e Schiller, Bayard e Mac-Mahon…

PARENTES — Sempre desagradáveis. Esconder os que não são ricos.

PARIS — A grande prostituta. Paraíso de mulheres, inferno de cavalos.

PASTA — Carregar uma sob o braço dá ares de ministro.

PEDERASTIA — Doença de que todos os homens são vítimas numa certa idade.

PENSIONATO — Dizer “boarding school”, quando fôr um pensionato para moças.

PERMUTAR — O único verbo conjugado pelos militares.

PHENIX” — Belo nome para uma companhia de seguros contra incêndios.

PIRÂMIDE – Obra inútil.

POESIA — Inútil. Passou de moda.

POETA — Sinônimo de tolo; sonhador. (de câmara ou de senado. –eu)

POMBO — Não deve ser comido senão com “petit-pois”.

PRESENTE — Não é o valor que faz o preço, ou então: não é o preço que faz o valor. O presente não é nada, o que vale é a intenção. (O presente não é nada, o que vale é o devir.)

PROGRESSO — Sempre mal compreendido e muito precoce.

PROPRIEDADE — Uma das bases da sociedade. Mais sagrada que a religião.

PROPRIETÁRIO — Os homens se dividem em duas grandes classes: os proprietários e os locatários.

PROSTITUTAS — Um mal necessário. Salvaguarda de nossas filhas e nossas irmãs enquanto existirem celibatários. Deviam ser perseguidas impiedosamente. Não se pode mais sair à rua em companhia da mulher por causa da presença delas. São sempre filhas de gente humilde seduzidas por burgueses ricos. (Atualização: Não é mais necessário que haja prostitutas, estas foram substituídas pela automação industrial (indústria pornô.)

PUDOR — O mais belo ornamento da mulher.

PÚRPURA — Palavra mais nobre que vermelho.

QUADRATURA DO CÍRCULO – Não se sabe o que é. mas deve-se erguer os ombros quando se fala.

RACINE — Libertino!

REDE — Própria dos crioulos. Indispensável num jardim. Convencer-se de que estará melhor nela do que numa cama.

RELIGIÃO — Faz parte das bases da sociedade. É necessária aos povos e, entretanto, muitos não a têm. “A religião de nossos pais”, deve-se dizer com unção.

REPUBLICANO — Nem todo republicano é ladrão, mas todo ladrão é republicano.

RESTAURANTE — Deve-se sempre pedir os pratos que não se comem habitualmente em casa. Quando estiver embaraçado, basta escolher os que são servidos aos vizinhos de mesa.

RISO — Sempre homérico.

ROMANCES — Pervertem as massas. São menos imorais em folhetins que em volumes. Só os romances históricos podem ser tolerados, porque ensinam história. Há romances escritos com a ponta de um escalpelo (bisturi).

RONSARD — Ridículo, com suas palavras gregas e latinas.

ROUSSEAU — Crer que J.J. Rousseau e J.B. Rousseau são irmãos, como eram os dois Corneille.

RUIVAS — V. louras, morenas e negras.

SACERDÓCIO — A arte, a medicina, etc, são sacerdócios.

SALEIRO — Entorná-lo traz desgraça.

SALSICHEIRO — Anedota sôbre salsichas feitas de carne humana.

SANÇÃO PRAGMÁTICA — Não se sabe o que é.

SÊNECA — Escrevia sôbre uma mesa de ouro.

SERVIÇO – É prestar serviço às crianças, dar-lhes coques; aos animais, bater-lhes; aos empregados, despedi-los; aos malfeitores, puni-los.

SEVILHA — Célebre por seu barbeiro. Ver Sevilha e morrer.

SÍFILIS — Uns mais, outros menos, todo mundo tem.

SONO — Engrossa o sangue.

SOLUÇO — Para curá-lo, uma chave nas costas ou um susto. (Agora já sabemos 6 métodos! O mais ortodoxo deles é ficar de ponta-cabeça. Para saber dos outros 3, ler O Banquete.)

SORVETE — Perigoso tomar.

SORVETEIROS — Todos napolitanos.

TABELIÃO — Mais agradável que notário.

TALLEYRAND (Príncipe de) — Indignar-se contra.

TAMANCOS — Um homem rico, que teve começo de vida dificil, sempre veio a Paris de tamancos.

TAPEÇARIA — Obra tão extraordinária que requer 50 anos para ser terminada. Exclamar ao vê-la: “É mais belo que a pintura!”. O operário não conhece o valor do que fêz.

TEMPO — Eterno assunto de conversação. Causa universal de doenças. Queixar-se sempre.

TERRA — Dizer os quatro cantos da terra, pois ela é redonda.

TESTEMUNHA — Deve-se sempre recusar ser testemunha em juízo, nunca se sabe aonde isso pode levar.

TINTEIRO — Dá-se de presente a um médico.

TOLERÂNCIA (Casa de) — Não é aquela onde se tem opiniões tolerantes.

TOUPEIRA — Cego como uma toupeira. E no entanto ela tem olhos. (Poder-se-ia agregar num verbete PORCO – sua como um porco, porém o porco não transpira.)

TRANSPIRAÇÃO nos pés — Sinal de saúde.

TREZE — Evitar treze à mesa, pois traz infelicidade. Os espíritos fortes não deverão jamais deixar de gracejar: “Não tem importância, comerei por dois”. Ou então, se há senhoras, perguntar se uma delas não estará grávida. (Ganha-se a Copa com 11 mais o técnico.)

USUM (ad.) — Locução latina que vai bem na frase: Ad usum Delphini. Deverá sempre ser empregada a propósito de uma mulher chamada Delfina.

VACINA — Não freqüentar senão pessoas vacinadas.

VELHOS — A propósito de uma inundação, uma tempestade, etc., os velhos da região não se lembram de jamais ter visto uma igual.

VALSA — Indignar-se contra. Dança lasciva e impura que deveria ser dançada apenas por velhas.

VENTRE — Dizer abdômen, quando em presença de senhoras.

VERÃO — Sempre excepcional.

VIAGEM — Deve ser feita rapidamente. (Como os banhos frios.)

VINHOS — Assunto de conversa entre os homens. O melhor é o “bordeaux”, pois os médicos o receitam. Quanto pior, mais natural.

VIZINHOS — Evitar que nos prestem serviços gratuitos.

VOLTAIRE — Célebre por seu rictus (careta) espantoso.

XADREZ (Jogo de) — Imagem da tática militar. Todos os grandes capitães eram bons jogadores. Muito sério como jogo, muito fútil como ciência.

WAGNER — Troçar ao seu nome é gracejar sôbre a música do futuro.

YVETOT — Ver Yvetot e depois morrer!

ESBOÇO DE UM DICIONÁRIO BRASILEIRO DE LUGARES-COMUNS E IDÉIAS CONVENCIONAIS

Este dicionário foi idealizado como simples apêndice ao de Flaubert. Nele deixam de figurar, pois, os lugares-comuns registrados pelo autor de Madame Bovary que correspondem aos de nossa língua e às idéias convencionais de nossa gente.

Também não foram arrolados todos os provérbios, máximas. rifões, etc., que podem ser facilmente encontrados em coletâneas do gênero. Em trabalhos desta espécie, realizados apressadamente. É hábito escusar-se o autor de falhas e imperfeições, comprometendo-se a saná-las em edições futuras. Faço o mesmo, menos com o intuito de desculpar-me, que com o de acrescentar, aqui, mais um lugar-comum não incluído no dicionário.”

ABÓBADA – Celeste.

ÁGUA (séc. XXI) – Já tomou hoje? – Eu tomo três litros por dia, por isso vou muito ao toalete.

ALCOVA – Segredos de. Qualquer coisa de imoral.

ALIANÇA – Usar atrai mulheres. Dito espirituoso sobre retirá-la do dedo, etc.

ALMA – Caridosa.

ALOCUÇÃO – Sempre breve e brilhante.

ALTANEIRO – Jargão de arquiteto. “Destacava-se, altaneiro, um majestoso edifício”, etc.

ALUSÃO – Discreta.

AMAZONAS — O maior rio do mundo. — Mas e o Mississipi? — Maior em extensão. Ou em volume d’água, nunca se sabe. — O fenômeno da pororoca.

AMERICANOS — Povo extraordinário. — Parecem crianças. — Espírito esportivo.

ANIVERSÁRIO – “Completou mais um verão.”

ANJO – De criatura; de bondade.

ANO — “Reparou como este passou depressa?” — “Parece que foi ontem.” — “Colher mais um a. no jardim da existência.”

ÂNSIA – Incontida.

ANTÍPODA — Bela palavra para significar “oposto”. Japoneses.

ANTOLOGIA – Um acontecimento antológico.

ANTRO — De jogatina — De perversão.

APAZIGUAR – Os ânimos.

APLAUSOS – Não regatear.

APOIO — Sempre moral.

ARMA — Deve-se sempre ter uma em casa. — O perigo que representa para as crianças. — Não se deve brincar com elas: contar casos fatais, o amigo que matou o amigo, o pai que matou o filho.

ARREBOL — Rima com sol. Própria para hinos.

ARROSTAR – O perigo.

ASSAZ – Mais bonito que “muito”.

AUSCULTAR — A opinião pública.

AVENTAR — Uma hipótese.

AVISO – Aos Navegantes.

AVÓS — Deseducam os netos.

BACHAREL – No Brasil, todo mundo é.

BAGAGEM – Literária.

BAHIA — Já foi? Então vá. — Vatapá. — Balangandãs. — Carmen Miranda. — A falsa baiana. — Rui Barbosa. — Terra de oradores.

BALOUÇAR – Muito mais elegante que “balançar”.

BANCO — Os de Minas são os mais seguros.

BANQUETE — Quem convida, dá. — Ditos espirituosos sôbre a extensão dos discursos. — Sempre se come mal.

BEBERRÕES – Gracejos dos que bebem sôbre o horror ao leite e à água.

BELO HORIZONTE — Hotéis cheios de tuberculosos. [!!!] — Parece-se com Washington. — Acontecem coisas estranhas. — Alguém, do alto do morro, exclamou: “Que belo horizonte!” Daí o nome.

BIGAMIA — Devia ser permitida pela lei.

BOATO — Assim é que nasce um.

BRASIL — Nele cabe toda a Europa, menos a Rússia. — País do futuro. — Riquezas naturais. — Ou acaba com a saúva ou a saúva acaba com ele. — Tudo no Brasil é assim mesmo, não se apoquente. — Espera que cada um cumpra o seu dever.

BRASILEIRO — Todo brasileiro tem sífilis. — Quem fôr brasileiro, siga-me. — Três brasileiros juntos: um samba. Vizinho do:

BURRO — Um animal até inteligente, tremenda de uma injustiça!

BUSTO — Elegante como sinônimo de seios.

CACHAÇA — Água que passarinho não bebe. — Alguma coisa ser tão imprescindível a alguém que é a “sua cachaça”.

CADUCAR — A lei.

CAFÉ — O esteio da economia nacional. — As donas de casa é que sabem fazer o melhor café do mundo. — Fumegante, aromático. — “Tira o sono.” — “Pois a mim nunca tirou.” — Fazer boca para o cigarro. — Pequeno. — Os funcionários públicos não fazem outra coisa senão tomar café. — Balzac gostava muito. — Estimulante! — Preciosa rubiácea.

CAIXINHA — De surpresas: a política, o futebol, etc.

CALADA — Da noite.

CALO — De estimação.

CALMA — O Brasil é nosso.

CALOR — Impossível de trabalhar. — Insuportável. — Ninguém se lembra de jamais ter feito tanto. — Clima dos trópicos.

CALOURO — Trote dos: uma desumanidade. Devia ser proibido.

CALVA – Reluzente.

CALVÍCIE — Quem descobrir um remédio ficará milionário. — Complexo dos calvos. — Prova de virilidade. (A coisa mais estranha: ainda não havia “É dos carecas que elas gostam mais”?)

CAMA — Chorar nela, que é lugar quente. Ganha fama e deita-te na cama.

CARIOCA — Bom humor do.

CARNAVAL — O de antigamente era melhor. — Festa paga. — Pierrot, Colombina e Arlequim. — O corso. [?!] — Alegria do povo. — Economizam o ano todo para gastar no Carnaval.

CARRO — O melhor é o dos outros. — Dá trabalho, mas compensa (ou não compensa). — As crianças adoram. — Ter ou não ter chofer? — Dirigir há tantos anos e nunca ter tido um desastre.

CASA — Comida e roupa lavada. — Sentir-se na própria. — Ter a sua própria: um teto digno. — Está sempre às ordens. — Bem situada. —Custou tanto e hoje vale dez vêzes mais. — Na época foi uma loucura.

CEGONHA — Estar esperando sua visita. — Dizer de alguém que ainda acredita nela.

CENTRAL DO BRASIL — Gracejo a propósito do atraso dos trens.

CENTRALIZAÇÃO Um dos males da administração no Brasil.

CHÁVENA — Mais elegante que xícara. (Chícara de xá.)

CHUVA — Insistente. — Chover a cântaros. — Grossas bátegas de. — Chover no molhado. — De protestos.

CHUVEIRO — Mais higiênico que banheira. Frio e bem cedo, muito saudável.

CIMENTAR — Uma amizade.

CINZEIRO — Uma sala confortável deve ter cinzeiros por todo lado.

COBRAS – E lagartos. — Os franceses dizem que no Brasil há cobras em plena rua. — Simbolo fálico. — Ruim como uma.

COLEÇÕES – “Freud disse que todo homem, em alguma época de sua vida, coleciona alguma coisa.”

COMPLEIÇÃO – Robusta.

COMUNISMO — O perigo vermelho. — União Soviética, mais ortodoxo do que Rússia. — Camaradas. — O proletariado e o povo. — A exploração do homem pelo homem. — Superestrutura. — A mais-valia.

CONCATENAR – As idéias.

COPACABANA — A mais bela praia do mundo — Antigamente a areia era mais clara. — O bairro aristocrático. — Contraste entre as favelas e os arranha-céus. — “Está ficando um bairro insuportável, cheio de estrangeiros. judeus e prostitutas.”

CORAR — Até a raiz dos cabelos.

CORCOVADO — Morar há tantos anos no Rio e nunca ter ido lá. — Visto de qualquer ponto da cidade.

CORES – Cambiantes. Berrantes.

CORREIO — A deficiência de nosso serviço de correios: uma carta foi posta em tal lugar no dia tal e somente tantos dias depois foi entregue. Deve acrescentar-se: ainda assim, esta foi entregue. — Dito espirituoso sôbre os que põem a culpa no Correio quando não cumprem suas obrigações sociais. — Nos Estados Unidos, uma perfeição.

COSTUREIRA — Nunca entregam o vestido no dia marcado. — Ficam com a metade da fazenda para elas.

CREMAÇÃO — Os que prefeririam ser cremados, ao morrer: mais prático, mais higiênico, um absurdo que no Brasil não se faça. — A Igreja não permite: ressurreição dos mortos. — E os que morrem nos incêndios?

CRIANÇAS — Sempre crescidas. (Dá dando fermento pra ela? Segurei no colo ainda ontem!) — Muito dadas. — No princípio ficam encabuladas, mas logo tomam confiança. — Parecem-se com o pai mas têm o nariz do avô, etc. — Aprendem a ler sozinhas, dizem coisas extraordinárias, até já ajudam em casa! — Sôbre alguém, no fundo, ser ainda uma criança. — Dão trabalho, mas compensa. — Se soubessem o que devem aos pais!

CUSTAR — Os olhos da cara.

DESAFORO – Não levá-los para casa.

DESFECHAR – Um golpe.

DESFECHO – Triste, inesperado.

DESPENHAR-SE – No abismo, no vácuo.

DEUS — É brasileiro.

DIÁLOGOS — Em romance, os personagens devem sempre redargüir, inquirir, admoestar, retorquir, grunhir, urrar, balbuciar, desferir, sussurrar, murmurar, trovejar, explodir. — Nunca falar, dizer, perguntar ou responder.

DINHEIRO – “Ganho dinheiro, mas o dinheiro não me ganha.”

DIPLOMACIA — Bela carreira, viajar. Perdão, um diplomata não viaja: é viajado. Ser mandado de um momento para outro a um lugar distante. — Mas ganha-se bem.

DIVÓRCIO — Dissolução da família. — “O Brasil é o único país onde ainda não há, daí tantos crimes passionais.” “Nos Estados Unidos, porém, há divórcio e há crime!” — “E os filhos?” — “A lei não pode obrigar ninguém a ser feliz.” — Influência da Igreja. — “Quem fôr religioso que não se divorcie.”

DOUTOR — No Brasil todo mundo é. — Anel no dedo.

ÉBRIO — Contumaz — Vicente Celestino

ELEFANTE — Amola muita gente.

EMPANAR — O brilho.

EMPENHAR-SE – A fundo.

ENFERMEIRAS — Namoram os médicos.

ENFORCAMENTO — Bárbaro e deprimente. Na Inglaterra enforcam ao menor pretexto. Caso de um jovem brasileiro em viagem que atropelou um guarda e só não foi enforcado por intervenção do Papa.

ENLAMEAR — A honra, o nome da família.

EPITÁFIOS — Tanto mármore e tanto bronze desperdiçados. — A vaidade do homem o acompanha até na morte. — As sepulturas pobres ao lado dos ricos mausoléus: Deus não distingue.

ESCOPO — Mais elegante do que finalidade.

ESPANHOL — Tourada. — Castanhola. — Caramba!

ESPIRAIS — Da fumaça do cigarro, que se contempla imerso em pensamentos.

ESTADIA — É errado: deve-se dizer estada.

ESTATÍSTICAS — Não provam nada. Os americanos acreditam nelas.

ESTILO — É o homem: Buffon.

ESTOFO – Moral.

ESTRABISMO — Um pouco, até que dá uma certa graça.

ESTRADAS — Da vida. — As dos Estados Unidos são todas asfaltadas.

EXÉRCITO — Na Suíça não há, todo cidadão é soldado. — Na hora de ir para a guerra, os civis é que vão.

FATALISTA — Ser sempre um fatalista, é muito elegante. — “morre quem tem de morrer, quando chegar o dia, etc.” — Ditos espirituosos sobre ter coragem de viajar de avião.

FAZENDEIRO – Abastado.

FECUNDAÇÃO —- Artificial: “ainda chegará o dia.” — “Um só homem poderá povoar uma cidade inteira.” — “Para os animais dá resultado.” — “É contra a natureza!” — Ser a favor.

FIADO — Só amanhã.

FILA — Antes da guerra, não havia. — Fila para tudo. Até para se casar, etc.

FRALDAS – Mal saiu das.

FRANCESAS — Mulheres nuas, lascivas.

FLAUBERT — Tortura do estilo — “Madame Bovary sou eu”.

FRIO — Em tempo de frio. alguém lembrar-se de um lugar onde fazia muito mais: aquilo sim, era frio.

GÁUDIO — Mais elegante do que alegria.

GÊNIO — As cenas que só o gênio de um Flaubert seria capaz de descrever.

GÍRIA — Muito interessante, a filosofia do povo.

GOVERNO — Para seu.

GRAÇA — Muito distinto, para se perguntar o nome: qual e a sua graça? (Celso Russomano.)

GRAVATA — Adorno inútil, deveria ser abolido. — É um preconceito. — Ninguém sabe escolher para os outros. — Nunca comprá-las, ganhá-las de presente.

GRAVIDEZ — Estado interessante.

GUERRA — Um mal necessário. Sem ela, o mundo estada superpopulado.

VERRUGA – Nasce no dedo de quem aponta estrelas.

HABITAT — Bela palavra a ser usada em monografia sôbre homem ou animal de determinada região. Falada, não sôa bem.

HIMENEU – Em lugar de casamento.

HODIERNO — Mais elegante do que moderno.

HOLOCAUSTO — Bela palavra a ser usada a propósito do sacrifício das mães, das esposas, noivas, etc.

HOMEM — As mulheres afirmam: “São todos iguais”. (Defasado: agora, “Homem é merda”, “Ih ah lá o macho escroto!”, etc.)

HOMENAGEM — Singela

HOMOSSEXUAL — Por que quase todos os artistas o são? Citar exemplos. Inofensivos, ótima companhia para as mulheres.

HONESTIDADE — Ainda existe. — Não existe mais, hoje em dia.

HOTEL — “Nunca tomar quarto com refeições, pois não se vai ao hotel senão para dormir!”

IDADE — A uma senhora nunca se pergunta.

INAUDITO – Esforço.

INCISÃO — Mais bonito do que corte.

INCONSTITUCIONALÍSSIMAMENTE – A maior palavra da língua portuguesa.

INICIAIS — “Direi apenas as iniciais: Fulano de Tal”.

INQUIRIR — Mais elegante do que perguntar.

INTESTINO — Parece incrível que tenham quarenta metros.

ISQUEIRO — Não se acostumar a ele. — Mais uma coisa para se carregar no bolso. — Só o dono sabe acendê-lo.

JABUTICABA — Fruta que se parece com certos olhos.

JOVIALIDADE — Qualidade de certos velhos.

LACUNA — Jamais será preenchida.

LIVRO — O maior amigo do homem. — Mais tolo do que quem empresta é aquele que devolve.

LIXEIRO — Uma profissão tão digna como outra qualquer. (Fala isso pro Boris Casoy.)

LUAR — Do sertão, bonita música.

LUME — Vir a. — Mais bonito do que fogo.

MACACO — Nosso ascendente. — Darwin. Voronoff.

MÃE — O nome da: uma das mais belas palavras da língua acabou virando um insulto.

MARINHEIRO — Jovem de olhar nostálgico que anda gingando o corpo e tem uma amada em cada porto.

MAVIOSO —- Mais bonito que maravilhoso.

MÉDICO — Não acreditam em penicilina, para não perderem o cliente.

MEMBRO — Palavra obscena.

MENDIGO — Têm fortunas escondidas em casa. — Chaga da sociedade. — Estender a mão à caridade pública. — Deveriam ser recolhidos e mandados a alguma parte (não se sabe onde).

MODERNO — Arte moderna: deformação, obra de tarados. — Edifício do Ministério da Educação, uma caixa de fósforos suspensa sôbre meia dúzia de palitos. — Poesia futurista, qualquer um pode fazer. — Portinari, mãos e pés enormes. — “Não gosto porque não entendo.” — “Até meu filho faz melhor.”

MORRER — “No avião, quem morre primeiro é o piloto.” — “Dir-se-ia que ela dorme.” — “Morreu como uma santa.”

MULATO — Coça a orelha com o pé. — Conhece-se pelas unhas e a palma das mãos. — Pernóstico. — Machado de Assis era. — Nos Estados Unidos são considerados pretos.

NABABO — Viver como um.

NARIZ — O de Cleópatra teria mudado a face do mundo.

NATURALISTA — Escritor obsceno e pornográfico. — Zola: a natureza vista através de um temperamento.

NAVALHA — A mais temível das armas: não há defesa contra ela. — Tão perigosa para o adversário como para quem não sabe manejá-la. — O barbeiro pode enlouquecer de repente e passar a navalha no pescoço do freguês.

NEFELIBATA — Bela palavra a ser usada contra os bons escritores.

NERO — Sempre tangendo a lira ante o incêndio de Roma.

NOSOCÔMIO — Mais distinto do que hospital.

ÓCULOS — Dormir com eles para reconhecer as pessoas em sonhos.

OFÍDIO – Mais bonito que cobra.

OGIVA — Ah, o estilo gótico.

ÔNIBUS — Correria desenfreada. Viajar neles é enfrentar a morte todos os dias. Não respeitam nada.

OPERAÇÃO — Melindrosa intervenção cirúrgica.

OVO — Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha? — De Colombo. — Estão cada vez mais caros. — Alguém, muito original, sugerir que os homens deviam nascer em ovos: mais prático, mais higiênico.

PADRE — Há padres bons e ruins, assim como há médicos bons e ruins, o que nada prova contra a Medicina.

PENA DE MORTE — “Uma barbaridade, ninguém tem direito de dispor sôbre a morte de outras pessoas.” — Ser a favor.

PERSONAGEM — Não se diz o personagem, e sim a personagem. //

De romance: deve ser pintor, escultor, escritor, músico, jornalista ou artista de modo geral; deve andar nervosamente de um lado para outro, esquecer o cigarro apagado nos lábios, debruçar-se à janela e contemplar a noite, ter um brilho nos olhos. Andar a esmo. Ser levado pelos próprios passos, como um notívago, um vulto, um autômato, uma sombra; ao fim dos capítulos deve atirar-se na cama chorando; ao fim do romance deve perder-se ao longe, partir.

PÊSAMES – “Foi melhor para êle” – “Deus sabe o que faz”.

PNEUMONIA — Hoje em dia não mata mais ninguém, por causa da penicilina.

POESIA — Gostar muito de poesia, mas não a futurista.

POETA — Foi expulso da República de Platão. — Cabelos grandes.

POLIGAMIA — Os homens são naturalmente polígamos. — E as mulheres? — protestam estas. A propósito, fala-se em poliandria, que não se sabe o que quer dizer…

PONTO — Assinar o: como sinônimo de visita habitual.

PROTESTO — De elevada estima e consideração.

QUERIDO — Em diálogos como este: “Querido, tu me amas?” — “Bem o sabes, querida.”

QUILO — Equivalente a novecentos gramas nos açougues.

RATO — O único animal de que realmente se tem nojo. — Alguém dizer que não tem.

REVOLUÇÃO — Fazê-la, antes que o povo a faça.

ROSICLER — Bonita côr.

ROUPA — Poderiam ser mais práticas, mais condizentes com o nosso clima. — Suja, lava-se em casa. — Ter apenas a do corpo.

RUBRICA – Ou rúbrica?

RUI BARBOSA — A Águia de Haia. — Cabeça grande. — Perguntou: em que língua quereis que eu responda?

SÃO LUÍS — A Atenas Brasileira.

SARRO — É o que suja os dentes e não a nicotina.

SAUDADE — Só existe em português, não tem tradução. — A mais bela palavra da língua. (Como eu detesto esses comentários!)

SAÚDE — Só a apreciamos depois que a perdemos.

SECRETÁRIA — Sempre belas, o terror das esposas. — Nunca sabem escrever à máquina e passam o dia sentadas ao colo do patrão. — Conhecem todos os seus segredos, indispensáveis.

SEGREDO — O melhor meio de espalhar uma notícia é pedir segredo.

SHAKESPEARE — Ser ou não ser. — Teria sido êle próprio o autor, ou Bacon? Deve-se acrescentar: quem quer que tenha sido, foi um autor genial a quem chamamos de Shakespeare.

SORRISO – Um s. bailava-lhe nos lábios.

SORVER — Mais elegante que tomar.

SUICIDAR-SE — Dificuldades financeiras: “matar-se por causa de uma miserável quantia”, dizem os outros. — O tresloucado gesto. — “Para mim, ele não andava muito bom da cabeça.”

SURDOS – Pelo telefone, ouvem muito bem.

TAUMATURGO — Bela palavra, mas confunde-se com dramaturgo.

TÉDIO — Avassalador: de muito efeito em literatura de ficção, na primeira pessoa.

TÊMPORAS – De aço.

TIROCÍNIO — De muito efeito em discurso laudatório.

TORRÃO – Mais refinado que pátria.

TRANSFERÊNCIA – Freud explica.

TRANSIDO – De frio.

TURBAMULTA — Bela palavra a ser usada a propósito do movimento das multidões.

UMBIGO – Ou embigo?

UMBRAIS – Transpor os u. da glória.

URBANIDADE — Qualidade que devem ter os funcionários públicos ao lidar com as partes.

URSO – Abraço de.

VAGALUME — Mais elegante seria dizer pirilampo.

VARIEGAR — Verbo muito elegante de se usar a propósito de cores variadas.

VENDETA — Mais bonito do que vingança.

VENTILAR — Um assunto.

VERBA — Não há. — Esgotada. — Sempre desviada para outras finalidades.

VERDADE — “Sob o manto diáfano da fantasia, a nudez forte da verdade”, disse Eça de Queiroz. “Se non è vero, è bene trovato” Repetir em italiano, mesmo sem entender direito.

VERGONHA — É roubar e não poder carregar.

VÍRGULA — Um bom, escritor deve saber, quando usá-la.

VIZINHO — Reclamam do barulho. — Reparam em tudo. — “Sempre finos, discretos, nunca deram amolação”, segundo informação de pessoa que pretende alugar a casa.

VOMITAR — Mais elegante dizer lançar cargas ao mar.

VULGAR — Adjetivo que deve ser indistintamente usado contra toda atividade comum dos homens, pelas pessoas de bom gosto.

VULGO – Sinônimo de povo.

XAROPE — Com o significado de coisa enfadonha.

XIFÓPAGOS – Ou xipófagos?

ZÉFIRO – Muito bonito como sinônimo de brisa.

MONTE CRISTO OU DA VINGANÇA – Antônio Cândido

Leitura completamente distorcida de Dumas.

escritores de segunda ordem — Eugène Sue ou Alexandre Dumas”

Enquanto a vingança permite, quando não pressupõe, um amplo sistema de incidentes, a ficção seriada exige, por seu lado, a multiplicação dos incidentes. Daí a referida e frutuosa aliança, que atendia às necessidades de composição criadas pelas expectativas do autor, do editor e do leitor, todos os três interessados diretamente em que a história fosse o mais longa e complicada possível: o primeiro pela remuneração, o segundo pela venda, o terceiro pelo prolongamento da emoção. As tendências estéticas do romantismo, sequioso de movimento, convergiam no caso com as condições econômicas da profissão literária e as necessidades psicológicas do novo público, interessado no sensacionalismo, propiciador de emoções violentas.”

Compreende-se deste modo uma das razões pelas quais a vingança pôde, no Romantismo, desempenhar função mais ou menos análoga à das viagens no romance picaresco ou de tradição picaresca.”

Um rapaz honesto, bom profissional, bom empregado, bom filho, bom noivo, bom amigo, é o ponto de partida do livro. Situação de equilíbrio que repugna por tal forma à arte romântica que o escritor se apressa em providenciar a tríplice felonia (?) que vai rompê-la e abrir perspectivas à agitação incessante da peripécia. Anos de calabouço, o encontro com o abade sábio, a aquisição da ciência.”

Alguns anos de mistério são precisos para emergir o conde do marinheiro, e do conde a vingança. Em seguida, o exercício desta, com vagar e proficiência, pelo livro afora.”

O Castelo d’If representa a fase de recolhimento pressuposta no adolescente pela educação burguesa”

Dantes era tolo e amuado

Depois virou grande homem

Um dia morreu,

Mas Dante era divino, solene e eterno,

Ó temperamento austral!

A profunda melancolia que assalta o Cidadão Kane, no píncaro da vitória, se aparenta, aí, com a do gênio romanticamente concebido — e expresso melhor do que em qualquer outro símbolo pelo Moisés de Vigny.”

A vida não é um romance, muito menos um complexo de Édipo. Certo, Camus?

Não deixa de ser meio decepcionante esta recuperação da normalidade ética, após um esforço tão grande de exceção.”

O burguês pode dar sossegado este livro aos filhos” Um ótimo conselho – se estivéssemos no século XIX!

NO MUNDO DO ROMANCE POLICIAL – Álvaro Lins

Até pelas alturas do ano 1000, o romance grego era designado como erotikon, sendo o predecessor apenas do romance popular, não artístico dos nossos dias. Por outro lado, O banquete de Trimalcíú, de Petrônio, é uma obra isolada, já parecida com o romance moderno, sem ligar-se, no entanto, o uma tradição e sem provocar uma continuidade imediata na ordem do tempo.”

Nas épocas em que dominava a estética da separação dos estilos, não havia lugar para o romance como gênero superior; quando se operou a fusão dos estilos, em nova concepção estética, o romance passou a situar-se na frente da epopéia e da própria tragédia.”

Por sua vez, mais tarde, Shakespeare vinha abolir no teatro a separação estrita entre o estilo elevado e o quotidiano realista, ligando o trágico e o cômico, o aristocrático e o plebeu. Contudo, Auerbach observa o seguinte aspecto: se o povo entra em cena nas peças de Shakespeare, a situação de personagens trágicos, trágicos realmente [com T maiúsculo], esta fica reservada às personagens de alta categoria, como reis, príncipes, chefes militares.”

Aproveitando o redescobrimento dos antigos no período anterior da Renascença, o teatro clássico dos franceses levou aos limites extremos o rigor da separação estilística, colocando uma fronteira entre o elevado-sublime de um lado e o quotidiano-ordinário do outro, ficando um para as tragédias de Racine e Corneille, o outro para as farsas de Molière.”

Passara para sempre a época em que um objeto da realidade prática só podia receber expressão literária em têrmos cômicos, satíricos, didáticos, quando muito idílicos. Revestindo-se de seriedade e grandeza, o romance conquistou os direitos de cidade como gênero literário de primeira categoria. O que a burguesia fizera por intermédio da revolução política, o romance realizou também em têrmos de uma revolução literária.”

E que espaço ocupa, por ventura, o romance policial nos grandes quadros do romance?” “O romance policial não é literatura no conceito estético desta palavra. Aquele problema da criação poética através do estilo nunca foi inteiramente resolvido pelos seus autores, e não o será nunca talvez. Grandes figuras da literatura como Voltaire, Balzac, Dickens e Dostoevski jogaram com elementos da ficção policial mas não realizaram estritamente romance policial.

Em Crime e Castigo, Dostoievski construiu a psicologia de um assassino, desdobrou, na ação romanesca das relações entre Raskolnikov e Porfírio Séméionovitch, o duelo patético entre o criminoso e o detetive, mas a esse romance, para se enquadrar no gênero policial, falta um elemento imprescindível, o enigma, uma vez que desde o princípio o leitor está no conhecimento do episódio do estudante que mata a velha usurária.

Dickens deixou inacabado um romance, O mistério de Edwin Drood, onde ocorria um assassinato, cujo autor só deveria ser revelado nas últimas páginas. Assim, se não realizou um autêntico e completo romance policial, Dickens deixou pelo menos, na sua crônica, o maior de todos os enigmas, o enigma perfeito, aquele que nunca será decifrado, tendo o autor levado para o túmulo o seu segredo, em torno do qual os intérpretes ficaram a levantar diversas conjeturas.”

KAFKIANO, NUNCA HAVIA PENSADO NISSO! “Costuma-se trazer da antiguidade um exemplo eminente com o fim de indicar Édipo-Rei como uma tragédia policial; os romances dessa espécie, que a literatura desdenha e exclui dos seus quadros, ficariam assim vingados ou reabilitados com a apresentação de uma origem tão singularmente aristocrática. Mas, para colocar Édipo-Rei na categoria da ficção policial, seria preciso inverter toda a ordem do gênero, que se desenvolve na base de um crime cometido por alguém que não se identifica logo e que é preciso descobrir no fim do romance, enquanto a tragédia grega apresenta a singularidade de um criminoso que todo o público conhece e só êle ignora que cometeu um crime.”

O último caso de Trent, da autoria de E.C. Bentley (…) <a melhor novela policial até hoje escrita>

Se esse é o critério, O ADOLESCENTE é um legítimo romance policial ultrapsicológico: “Durante algumas horas é aquele o nosso mundo, o do romance policial, e quando chega o desfecho voltamos ao natural ainda um pouco assustados como no despertar após um pesadelo.”

OU DA REALIDADE PARA A FICÇÃO? “Nenhum personagem, com efeito, passou da ficção para a realidade de modo mais completo do que Sherlock Holmes; nenhum personagem de Balzac ou de Dickens adquiriu maior popularidade e maior verossimilhança. De todos os seres criados pela imaginação foi Sherlock Holmes o que obteve mais vida autônoma, mais independência como criatura e mais ampla projeção universal. Neste sentido êle cresceu mais do que D. Quixote, Hamlet ou Grandet, embora, está claro, não participe, nem de leve, dessa mesma grandeza da criação na ordem literária ou estética.”

Os britânicos não são nenhuns sábios, mas isso é bem coisa de norte-americano turistando: “visitantes procuravam o personagem de Conan Doyle, acreditando na sua existência real.”

Ao argumento da inverossimilhança, lembra François Fosca, em História e técnica do romance policial, que os casos Humbert, Steinkeil e Stavinsky, nos últimos 50 anos, são tão inverossímeis quanto os dos romances policiais.”

E que romance com a inverossimilhança aparente, com os golpes teatrais, com o mistério, com as intervenções sensacionais, com os episódios espetaculares do autêntico affaire Dreyfus?”

[Mas] um thriller não é a mesma coisa que um bom livro.”

Nos povos com a tendência para a clareza e a transparência,¹ como os latinos, o romance policial não encontra o seu ambiente propício. Êle é o produto de uma sociedade humana impregnada da força do mistério, que sente a atração do mistério da morte e capaz de acreditar em fantasmas e casas mal-assombradas,² gostando das coisas terríveis e apavorantes, dispondo ao mesmo tempo da fantasia e do cálculo. Pois o romance policial é todo êle uma conseqüência das faculdades de imaginação ilimitada e lógica objetiva, aplicadas em operação conjunta no processo da construção ficcionista.” Já o jornalismo policialesco…

¹ Eu entendi o que quis dizer, mas cuidado com termos tão ambíguos! Não somos nada transparentes, apesar de tão solares! Diria que o problema é mesmo o clima tropical, o suor escorrendo, o que impede um Sherlock Holmes no RJ – um que não use, também, camisa-de-força…

² Pensei aqui num crossover: auto-ajuda kardecista com novela policial!

Escreveu Poe três novelas de gênero policial: O duplo[?] assassinato da rua Morgue, O mistério de Maria Roget e a Carta furtada, e com elas — por intermédio do seu detetive-amador, Dupin — lançou os fundamentos e as regras do romance policial, de tal modo que a sua obra serviu ao momento de estudos para a polícia científica.”

Tanto Conan Doyle como Gaboriau não tinham, aliás, consciência da sua própria obra; desdenhavam-na no anseio de escrever romances literários. Escreveram realmente livros com ambiciosas pretensões, mas deles nada resta na memória dos homens. Se não foram de todo esquecidos, ambos o devem a Sherlock Holmes e a Lecoq. Neste caso, é a criatura que salva o criador e que lhe fornece um pouco da sua vida imortal.”

Daniel revela o segredo em torno do ídolo do deus Baal no episódio da Bíblia, enquanto a própria filha do rei Dampsinitos, num sistema moral escandaloso para a nossa época, entrega-se a qualquer homem, como prostituta, com o fim de descobrir aquele que roubara o tão escondido tesouro de seu pai.”

O romance policial tem a feição de uma mágica que parece de efeito sobrenatural até que o prestidigitador explica a sua realidade interna, e o observador exclama: — <Como era fácil! Como teria sido possível a qualquer um de nós descobrir o segredo!>.”

O “CHECKERS & CHESS MAN” ATACA NOVAMENTE: “Verificar-se-á, com efeito, que os homens engenhosos são sempre fantasistas¹ e os verdadeiramente imaginativos são, por sua vez, sempre analíticos.²” Poe

Windom Earle foi realmente uma excrescência mal-pensada!

¹ Aloísio, o imberbe com ambições de poder: esperto, gatuno, mas nada inteligente ou realista.

² Vive no mundo da lua, desinteressado, ó Rafa!, mas tua análise é perspicaz, cirúrgica, radiográfica! Rei da abstração, só sabe jogar damas…

De modo geral, o criminoso ou é um emotivo, ou é um intelectual, e isto êle revela logo na maneira de praticar o crime, sendo que exatamente dessa constatação parte o detetive para as suas investigações.”

O público não simpatiza geralmente com a polícia, como organização oficial, e por isso é que os detetives dos romances, em sua maioria, são policiais-amadores ou profissionais de trabalhos particulares.”

Espectro Batman-Fox Mulder de inadequação-adequação ao “cargo”.

Entre os detetives da ficção policial há um jornalista, um advogado e um padre: o jornalista Rouletabile, o advogado Perry Mason [som na caixa!] e o padre Brown.”

Na última novela de Memórias de Sherlock Holmes, o grande detetive caía num abismo nos Alpes, em luta com um famoso bandido, morrendo ambos. O público não se conformou, porém, com este acabamento trágico, e tantas foram as manifestações de dor e de cólera que Conan Doyle resolveu <ressuscitar> o seu herói.” De Toriyama e Lynch, todo autor tem um pouco…

Só tendo o epílogo constantemente em vista poderemos dar a um enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou casualidade, fazendo com que os incidentes tendam para o desenvolvimento de sua intenção.”

DANIEL DEFOE, JONATHAN SWIFT & UM PANORAMA DA LITERATURA INGLESA DOS XVIII // OU AINDA: UMA CRÍTICA DA CLASSE MÉDIA E, AINDA, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PROTOFEMINISTAS – Excertos traduzidos de um capítulo de livro de Terry Eagleton, crítico literário britânico, intitulado “Daniel Defoe and Jonathan Swift”

Os excertos giram em torno de dois autores contemporâneos, talvez os dois mais conhecidos hoje fora da Inglaterra em termos de literatura clássica daquele país – As Viagens de Gulliver veio ao mundo menos de quinze anos depois d’As Aventuras de Robinson Crusoe. São duas obras espantosamente similares e divergentes ao mesmo tempo. Duas narrativas, eu diria, de restless wanderers, viajantes incansáveis, espécies de maníacos tragicamente involuntários por navegar o mundo, sem propósito claro em mente…

Assim como o novelista e ex-condenado Jeffrey Archer, a carreira de Daniel Defoe abrangeu dívidas e alta política, a profissão de escritor e o cárcere. Cronologicamente falando, a arte imitou a vida com Defoe, uma vez que ele começou a escrever maior parte de suas obras enquanto ativista. De outro ângulo, entretanto, sua vida imitou, sim, a arte, pois sua trajetória foi sensacionalista o bastante para que pudesse figurar tranquilamente como o protagonista de suas próprias novelas tumultuadas. Em diversos momentos ele se dedicou ao comércio de vestuário, vinho e tabaco, foi dono de uma fábrica de tijolos, um político vira-casaca, uma espécie de espião do submundo e dos bastidores da política, agente secreto oficial do governo, espécie de diplomata e assessor do império britânico por meio de suas publicações jornalísticas (o que na época chamavam de publicista). Não bastasse todo esse cartel, tomou parte ativa em uma rebelião armada contra Jaime II, excursionou incansavelmente pela Europa e teve um papel crucial nas históricas negociações da unificação política dos reinos da Inglaterra e da Escócia.

Defoe faliu mais de uma vez, foi preso por débitos e até exposto no pelourinho num processo de sedição após publicar um panfleto satírico. Mesmo depois dessa experiência, ele viria a publicar um Hino ao Pelourinho (Hymn to the Pillory), bem como um Hino às Massas (Hymn to the Mob), em que, escandalosamente para a época, enaltecia o povo de extrato inferior por sua extrema lucidez de julgamento. É difícil imaginar outro grande autor inglês fazendo a mesma coisa na mesma época. Entre suas obras, está também Uma História Política do Demônio (A Political History of the Devil), um estudo sobre fantasmas, motivado pela Grande Praga de Londres, um surto da peste bubônica que eclodiu em 1665 e durou até o biblicamente simbólico ano seguinte. Defoe publicou também uma apologia irrestrita da instituição do casamento intitulada Indecência Conjugal; ou da Prostituição Marital. Um tratado sobre a Utilidade e a Inconveniência da Cama de Casal (Conjugal Lewdness; or Matrimonial Whoredom. A Treatise Concerning the Use and Abuse of the Marriage Bed). De modo algum ele seria um ‘novelista’ no puro senso da palavra (o próprio termo em voga criou sua acepção muito mais tarde), muito embora ele tenha atacado os ‘Romances’ (o gênero pré-novelístico por excelência), que para ele eram estórias que não informavam, apenas entretinham (e isso era necessariamente ruim naquela Inglaterra). Suas obras mais consagradas, Moll Flanders e Robinson Crusoe, são ‘novelas’ apenas em retrospecto. Defoe só escrevia aquilo com que pensava poder lucrar, sendo uma espécie de autor oportunista altamente prolífico que ‘atirava para todos os lados’ no mercado literário em ebulição de seus dias. A imprensa da época não discriminava entre gêneros, muito menos Defoe o faria.

Escrever, para Defoe, pois, não passava de commodity, como ele próprio retrata o mundo em suas ‘novelas’, que podemos resumir como ‘uma série de coisas a que se dá um preço de alto a baixo’. Tampouco era Defoe um ‘homem literário’: ao contrário, sua escrita é apressada, não pesa as palavras, e é transparente demais. Um ‘grau zero’ do estilo como se sempre fosse um jornalista ou historiador relatando fatos que tendia a apagar as próprias pegadas, negando seu próprio status de escritor e, portanto, de criador de realidades. O próprio Defoe batizava seu estilo de ‘cáustico’ ou ‘abjeto’ (mean), pretensamente desprovido de conscienciosidade e ignorante dos próprios artifícios. Na linguagem lacônica e um tanto caseira e pré-fabricada de Defoe sentimos, quase pela primeira vez na Literatura, o idioma dos comuns. Linguagem despida de textura e densidade, que permite ao leitor atravessar as palavras e ver as coisas de frente e em si mesmas. ‘O conhecimento das coisas, não das palavras, molda o erudito’, comentou Daniel Defoe no Compleat English Gentleman.¹ Uma profusão de aventuras e incidentes tem forçosamente de compensar as narrativas de Defoe, devido à crueza de textura. A suprema fertilidade de sua técnica é de fato impressionante. Defoe quase não se preocupa com o sentir das coisas, não mais do que um merceeiro passaria o dia acariciando e apalpando seus queijos, que são apenas seu ganha-pão. Defoe é o utilitarista-padrão: mais interessado no valor de troca dos objetos, não em suas qualidades sensuais ou sensórias. Há sem dúvida sensualidade em Defoe, principalmente nas obras de protagonistas mulheres (Moll Flanders e Roxana), mas não sensualismo, voluptuosidade. O realismo defoeniano é um realismo das coisas, enquanto que o de Richardson, por exemplo, é um das pessoas e sentimentos.”

¹ Uma espécie de enciclopédia de seu tempo, hoje de domínio público: https://ia800900.us.archive.org/29/items/compleatenglishg00deforich/compleatenglishg00deforich.pdf. Manuscritos descobertos no séc. XIX, tudo indica que fossem anotações diversas do escritor que ele tinha a intenção de completar e publicar.

Depois de um bom tempo exercendo seu ofício errático, pau-pra-toda-obra, escrevendo meramente para sobreviver, Defoe morreu enquanto se ocultava ou fugia de seus credores, autodeterminado, quem sabe, a acabar da mesma maneira que havia começado, ignorando outros estilos de vida. Foi um Dissidente (um imoralista) numa época em que ser Dissidente (assim, com letra maiúscula mesmo) era o mesmo que não possuir direitos civis. Como muitos de seus compatriotas novelistas, provinha da classe-média baixa econômica mas que possuía um status de pequena-burguesia, devido ao fator da formação intelectual: ilustrado, completou sua educação formal, cultivava ambições de ascensão e em seu meio os jovens eram politicamente articulados. No seu Journal of the Plague Year, ou Jornal do Ano da Peste, ele tripudia de algumas superstições do povão enquanto dá crédito irrestrito a outras. Muito parecido com William Blake em sua origem social, a rebeldia de Defoe afirmava a radical igualdade entre homens e mulheres, sustentando que o handicap feminino não passava do resultado de convenções. Desigualdades sexuais eram puramente culturais, nada naturais. O que distingue suas personagens Roxana e Moll Flanders, como outras tantas prostitutas vigaristas (seja as de luxo ou as que trabalhavam em espeluncas) e objetificadas da literatura de então, é que havia a afirmação premente, em todo o livro: elas não são propriedade de homem algum, elas não são de ninguém. No mundo de Defoe, nenhuma relação é permanente, aliás.”

Quando Moll Flanders diz levianamente que está grata por ter se livrado de seu filho na barriga, todo leitor de época se sentia escandalizado e ao mesmo tempo representado. Roxana é a comerciante-mulher, que embora seja a própria mercadoria é a dona do negócio: recusa o casamento, mesmo com um bom nobre, pois isso seria a ruína total de sua independência financeira. Ser esposa, para Roxana, era o mesmo que ser escrava. Os puritanos da geração de Defoe prezavam tanto a felicidade doméstica quanto o individualismo econômico; o único problema era a completa incompatibilidade de ambos. Sobretudo no caso das mulheres, que em quaisquer das esferas, isoladamente consideradas, estavam de todo modo alijadas da autonomia. Isso não significa que não fosse também uma questão masculina: na prática o individualismo econômico significava uma castração, compelindo à afabilidade, afeição, lealdade e companheirismo que o pai de família devia simbolizar.

Para complementar as credenciais progressistas de Defoe, ele militava pela absoluta soberania do plebeu, cujo direito de não se curvar a uma soberania injusta era, ele pregava, inalienável. Ele defendia os quakers e já então propagava os méritos de uma sociedade etnicamente miscigenada. Estrangeiros, segundo ele, eram um precioso acréscimo para a nação. Defoe troçava das mitologias chauvinistas dos bretões em poemas como O Inglês Puro-Sangue (The True-Born Englishman), cujos versos não hesitam em caracterizar a raça britânica justamente pela sua alta mestiçagem, desdenhando a noção aristocrática de pureza de sangue e ridicularizando a própria idéia-título do ‘puro-sangue’ com suprema ironia: mera ficção e, aliás, contradição. Não é irrelevante para essa polêmica (à época) que Guilherme III, sob quem Defoe exerceu seus trabalhos panfletários, fosse um holandês.”

“‘O que significam as capacidades naturais de qualquer criança sem a educação?’, o autor questiona no Compleat English Gentleman. Apenas tories absolutamente reacionários como Henry Fielding seriam capazes de enaltecer só o lado das qualidades inatas. Defoe não se mostrava pudico em politizar a questão: por trás dessa doutrina pedagógica ‘inocente’ havia toda uma tentativa de impedir as reformas pedagógico-sociais necessárias à Inglaterra, mediante o argumento dos talentos e habilidades congênitos e inalteráveis, que sempre legitimariam só as crianças da nobreza.”

O homem não é rico porque é honesto, mas é honesto porque é rico.

Essa é uma doutrina escandalosamente materialista avant-la-lettre, muito mais típica de um Bertolt Brecht do que de um ardoroso cristão dos Setecentos. Valores morais são o simples reflexo das condições materiais. Os ricos são apenas privilegiados o bastante para não terem de roubar. A moralidade é para aqueles que podem cultivá-la. Ideais calham muito bem a quem tem de sobra o que comer. Defoe também exigia leis que reconhecessem a condição dos miseráveis, ao invés da replicagem de um sistema que, em primeiro lugar, criou a miséria, para depois enforcar os miseráveis por serem eles o que são.”

Se a classe média preza tanto pelo eu autônomo na teoria, como pode ser que viole tanto essa doutrina na prática? Quer ela de fato a independência de todos os seus servos, assalariados que tem tão pouco poder de barganha que são menos do que cidadãos e pouco mais que escravos, sem falar dos colonizados além-mar? Não seria preferível para o pequeno-burguês, secretamente, é claro, preferir a liberdade irrestrita para si e a negativa para todos os competidores no mercado? A pequena-burguesia acredita na autodeterminação da população; mas ao mesmo tempo seus membros, homens e mulheres, não passam de títeres de forças econômicas impessoais. Os protagonistas de Defoe – Moll, Crusoe, Roxana, Coronel Jack – estão todos enleados nessa contradição. Se eles são, num sentido, forjadores de seu próprio destino, são, inegavelmente, vítimas desafortunadas da Providência, das leis do livre comércio e de seus próprios apetites.

No ensaio A Divindade da Troca (The Divinity of Trade), Defoe vê a Natureza como um tipo de capitalista, que – em sua infinita e inapreensível sabedoria burguesa – criou corpos capazes de flutuar sobre as águas, para que se pudessem construir navios e fomentar o comércio; criou as estrelas para nortear os navegadores; e até escavou rios no seio dos continentes que levam as embarcações direto para os recursos espoliáveis de outros países. Animais foram feitos dóceis e submissos deliberadamente para que o homem os explorasse como instrumentos e também como matéria-prima; linhas costeiras pedregosas foram criadas possibilitando a construção de fortalezas; matéria-prima conveniente foi distribuída ao longo de todo o planeta para que cada nação tivesse algo para vender e algo para comprar. Ainda que estejamos falando de um período muito aquém dos oceanos de Coca-Cola e da produção da necessidade quase que instintiva de calçar um Nike, a Natureza, para Defoe, não perdia e não perdeu nada de vista.”

Ora, se o homem era divinizado e elevado de forma sem precedentes nessa nova ordem social, temos em contrapartida a desvantagem de que qualquer indivíduo é indiferentemente intercambiável. Parceiros comerciais, sexuais ou maritais em Defoe vêm e vão, às vezes com tanta individualidade quanto numa coletividade de coelhos. Mas o maior conflito se dá entre as práticas amorais de uma cultura plutocêntrica e autocentrada em excesso e os altos ideais morais que essa própria cultura insiste em pregar.”

O escritor John Dunton, também do séc. XVIII, que teve ligeiro contato com Defoe, geria um jornal mensal devotado à prostituição, ou antes a denegrir a prática da prostituição ao invés de servir como Classificados do corpo humano alheio, o Night Walker: or, Evening Rambles in Search after Lewd Women (O Caminhante Noturno [/o Homem da Noite]: ou Aventuras do Entardecer em Busca de Mulheres Lascivas). Mesmo sendo vanguardista para a época, impossível que fosse um jornal politicamente correto para nossa concepção. A novela naturalista do século XIX procedia a expedientes parecidos, num meio-termo entre a objetificação degradante e gratuita da mulher da noite e a exposição de uma espécie de mal burguês: essas escapadelas maritais tinham um odor sensual e fatalista, havia um certo prazer mórbido no retrato de becos sujos e miseráveis em que todo moralista jogava a moral fora, e a mulher podia ser vista como a vítima de uma (des)ordem social; o século XIX foi cada vez mais inquirindo sobre esta questão de forma científica, menos sensacionalista, mas Defoe não chegou a testemunhar essa evolução.”

A família, para um puritano devoto como Defoe, é um domínio sagrado, como sugere seu panfleto de costumes O Instrutor da Família (The Family Instructor). Ao mesmo tempo, ele advoga, sem constrangimento, que tais laços podem e devem ser cortados quando se tornam mais maus do que bons: quando forem sinônimo de uma degradação do casamento, quando forem sinônimo do aviltamento das relações sangüíneas, acaba sendo a conduta mais autêntica e virtuosa o corte destes laços, ignorados ou tratados como meros meios para outros fins.”

Em Crusoe, é como se o colonialista frio e moderado desse o tom do enredo. Ele (o narrador em primeira pessoa) também é aquele que dá o matiz exótico ao objeto (cenário) em questão, isto é, sua colônia involuntária no meio dos trópicos. Essas narrativas sem adornos e sem culpa de consciência não chegam a destruir os vasos capilares do decoro ideológico da Inglaterra pós-elizabetana, mas são um primeiro desnudamento de sua lógica imperialista. Não são narrativas de uma veia polêmica, ainda, são mais cândidas que outra coisa. Não há sentimentalismo, porque sentimentos não podem ser quantificados, e nesta literatura em que só o que é quantificável é real eles ainda não aparecem. Nesta atmosfera intermediária de amoralismo, o relato é fidedignamente subversivo ou subversivamente fidedigno espelhando a existência social daquelas décadas; as relações são o que são, não o que deveram ser. Não obstante, a pura e simples descrição do fato e da matéria bruta não deixa de ser explosivo em si mesmo, ou conducente à explosão da dinamite próxima. O realismo se torna de grau em grau Política.”

Moll Flanders termina sua história contando como prosperou e chegou ao sucesso após uma vida de crimes, mas acrescentando, com alguma urgência, em tom de confissão compungida, que ela se arrepende sinceramente de todo seu passado. A moral da história – o crime não compensa – é explicitamente contradita pelo final efetivo. O contraste é tão desconcertante que alguns críticos passaram seu tempo imaginando se Defoe foi ou não abertamente sarcástico. Quando o náufrago Crusoe considera a inutilidade de todo o ouro que conseguira trazer do navio até a ilha, mas, no fim, decide levá-lo consigo assim mesmo – isso é uma tirada irônica do autor ou humor involuntário? Quando Crusoe, testemunhando Sexta-Feira que escapa de seus ex-irmãos canibais para não ser comido, reflete acerca da utilidade de levar consigo um servo, sendo este acréscimo a seu ‘patrimônio’ coincidente com um suposto chamado da Providência para salvar um desgraçado, seria essa harmonia entre interesse capitalista e revelação divina um artifício do autor para produzir o riso do leitor? Defoe está ou não depreciando sua heroína Roxana quando ela declara que deve manter seu próprio dinheiro separado do de seu amo e marido, para não misturar seus ganhos ilícitos com o suado e honesto capital do cônjuge?”

Porque se essa for a opinião fática do Defoe o Realista literário e Materialista radical, dificilmente seria também o credo de sua metade dissidente e religiosa. Defoe o Cristão estabelece a moral e a religião como realidades autossuficientes e inquestionáveis. Mas autossuficientes e inquestionáveis até que ponto, cara pálida? Se esses valores transcendentais existem numa esfera própria, eles pouco impactam na conduta efetiva dos personagens. Moll sente pena de uma de suas vítimas mesmo durante o ato de roubá-la, mas sua tristeza nada impede na concretização do ato. Como o Coronel Jack, que pode muito bem ser um perfeito larápio e viver com a consciência remoída. No século XVIII, piedade e nariz empinado não eram estranhos um ao outro. E não se distinguiam muito bem. Ou a moral falha porque está muito mesclada com o mundo material, ou falha porque está, justamente, dele apartada. Defoe reconhece esta última condição quando escreve: ‘Lágrimas e orações não fazem revoluções / Não derrubam tiranos, não quebram grilhões’.”

A moralidade em Defoe é geralmente retrospectiva. Uma vez que você tenha pilhado, pode finalmente ser penitente. Como demonstra o narrador de si próprio em Crusoe, é só ao escrever seus atos que você pode julgar sua vida como um todo. Enquanto tenta entender a própria vida ao vivo, você anda ocupado demais mantendo o nariz acima do nível d’água para levar a termo qualquer reflexão, quanto mais sentir remorso. Só há dois desfechos: continuar ou se afogar. Correr e ainda assim não ganhar nenhum terreno, continuar na condição em que já estava; ou simplesmente perecer. Não é fácil se embrenhar em considerações metafísicas enquanto a necessidade imediata é fugir dos credores ou lidar com seu atual marido. A narrativa sempre ziguezagueia num passo tão frenético que um evento vai borrando o outro num contínuo. Nenhum da horda de personagens da novela Moll Flanders chega a ter um intercurso mais que casual com a heroína – a interação típica entre cosmopolitas, mas impensável na comunidade rural dos livros de uma Jane Austen ou George Eliot. As figuras que interagem com Moll entram e saem de sua vida e das páginas de sua vida como meros transeuntes cruzam pela Piccadilly. A pergunta mais premente na cabeça do leitor que atravessa este processo metonímico virtualmente infindável é: o que vem a seguir? Sentido e relato não são concordes.

Assim como um parvo, diz-se, é incapaz de mascar chiclete e caminhar ao mesmo tempo, os personagens de Defoe só podem agir ou refletir, mas nunca os dois juntos. A ação moralmente informada é rara; a reflexão moral só vem bem depois. É essa a razão da coexistência de dois formatos literários consideravelmente diferentes sob a capa do Robinson Crusoe: a história aventuresca e a autobiografia espiritual. De todos os personagens de Daniel Defoe, Crusoe é o mais feliz na combinação dessa ação racional com a reflexão moral. Mas isso se dá, em parte, por causa das circunstâncias excepcionais: Crusoe está sozinho numa ilha, tem algum trabalho a executar, mas também muito tempo ocioso para meditar.”

Como a vida é terrivelmente material mas também uma sucessão ininterrupta e agitada de eventos, cada ato parece simultaneamente vívido e sem substância. Essas novelas são tornadas artigos fascinantes pelo processo de criação em si mesmo, pelo valor de troca, e não pelo valor de uso (intenção final). Não há uma lógica conclusiva para a narrativa de Defoe, é uma narrativa pura e simples. Não há um momento do livro em que o fechamento seria mais natural que em qualquer outro fecho de capítulo. O eu-lírico apenas prossegue acumulando narrativa(s), como um capitalista jamais cessa de acumular capital. Um pedaço de enredo, como um investimento particular, acaba levando ao próximo. Crusoe mal volta à terra natal e já está em alto-mar de novo, ainda acumulando aventuras, que serão obviamente narradas e contarão com o desejo do eu-lírico de formular um propósito. A sede de narrativa é insaciável. A acumulação de capital parece ter um propósito, mas é pura aparência. Secretamente, pelo menos no mercantilismo defoeniano, subjaz a verdade de que o único fim da acumulação é a própria acumulação. Uma novela de Defoe não tem o epílogo de facto, como têm as novelas de Fielding. Todos os finais são arbitrários, e todos poderiam ser apenas novos começos, se se quisesse.¹ O viajante inquieto só repousa a fim de se preparar para a próxima viagem…”

¹ A maior prova disso é que AS AVENTURAS DE ROBINSON CRUSOE são continuadas pelas NOVAS AVENTURAS DE ROBINSON CRUSOE, por mim panoramicamente traduzidas em https://seclusao.art.blog/2018/08/25/as-novas-aventuras-de-robinson-crusoe-sendo-a-segunda-e-ultima-parte-de-sua-vida-e-contando-as-estranhezas-e-surpresas-de-suas-viagens-por-tres-cantos-do-mundo-versao-co/. O autor escolheu convenientemente que o primeiro livro é a primeira metade da vida de Crusoe, e depois veio a 2ª. Mas nada o impediria de estabelecer uma tripartição, ou uma divisão em 4. Exemplos literários correlatos é o que não falta!

E devido a essa narratividade pura poucos eventos em Defoe são fruídos com densidade o bastante para deixar uma impressão permanente ou recordação intacta. Personagens como Moll ou Roxana vivem premidas pelo pão de cada dia, contando apenas consigo próprias, flutuando conforme a maré, dançando conforme a dança, apostando tudo ou nada a cada momento. Em perfeita adaptação com o mundo altamente mutante que encontram, esses sujeitos sincopam seu ritmo. Ou seja: não há um núcleo central da personalidade, tampouco, porque memórias e aprendizados estarão sempre se acumulando sem uma síntese definitiva. A identidade é uma improvisação, um cálculo, uma estratégia de passagem. Trata-se de uma cadeia de reações possíveis para cada ação promovida pelo ambiente. Os impulsos humanos – avareza, egoísmo, autopreservação – são fixos e imutáveis, é verdade, mas para sempre alcançá-los cada personagem é obrigado a ser flexível a ponto de se converter em metamorfo. A perspicácia e cautela necessárias para lidar com o tema da epidemia no Jornal do Ano da Peste seriam versões escandalosas e exageradas das próprias exigências do cotidiano para o leitor-padrão.”

O Coronel Jack se casa quatro vezes, a despeito de poder passar tranqüilamente sem mulheres, e rompe com uma delas porque ela dilapida sua fortuna. Na veia mais hobbesiana e pragmática possível, o interesse burguês é muito mais fundamental que a o altruísmo iluminista. Só mesmo caçar para comer seria mais premente que caçar para lucrar.”

O eu-narrador deslinda a trama com ar imperturbável que sugere um presente consideravelmente distanciado do passado em que o eu-narrado aparece (anos de intervalo, com toda a certeza). Este último não se pode dar ao luxo dessa parcimônia glacial do primeiro. Há uma tensão constante entre as duas dimensões temporais.”

Embora ‘Deus não esteja morto’, pareceria, a essa altura, para o bom Protestante, que Ele se recolheu deste mundo. Essa é uma das razões para as especulações de Defoe sobre a Providência ecoarem com um quê de vacilação. Ora, lembra o autor em The True-Born Englishman: ‘O que vem da Providência, consiste no interesse de todo o universo.’. Se tomarmos a frase ao pé-da-letra, estariam justificados o estupro, o assassinato, o canibalismo. Cada um desses pecados teria seu papel na manutenção da harmonia do cosmo. Defoe declama piamente no prefácio do Crusoe como devemos honrar a sabedoria da Providência e suas obras, ‘sucedam como sucedam’; mas o protagonista, muito longe de se resignar ao destino, é hiperativo e incansável na tentativa de forjar seus próprios porquês.”

De nossa perspectiva, se Crusoe devera ser punido, não seria por ter vivido a primeira metade da vida como um pagão, mas sim por vender Xury, seu servo, à escravidão brutal e por gerir uma plantation no Brasil movida a mais trabalho escravo. Na verdade, quando naufraga, ele estava justamente prestes a comprar mais mão-de-obra escrava numa expedição clandestina para abastecer seu engenho. Mas nem o personagem nem o autor conseguiriam ver tais ações como pecaminosas, ainda que Crusoe se indigne com as condições do imperialismo espanhol nas Américas. Como com o narrador de O Coração das Trevas de Joseph Conrad, o ‘imperialismo dos outros’ é sempre mais repreensível que o nosso. O Coronel Jack defende o castigo físico dos escravos, e não há qualquer indicativo de que Defoe pensasse diferente. A liberdade era para os ingleses, não para os africanos! Como zeloso puritano, Defoe decerto cria que os ‘selvagens’ estavam condenados irremediavelmente à bestialidade nesta terra, e ao tormento eterno no além. Seu radicalismo (progressismo de vanguarda na política) tinha seus claros limites.”

A Natureza não é mais um livro aberto, mas um texto obscuro a ser decifrado com imensa dificuldade. O Protestante tateia avidamente no escuro atrás de qualquer signo ambíguo de sua própria salvação. Mas o fato é que, num universo secularizado, tudo está entregue à própria contingência, isto é, nada no mundo visível quer dizer alguma coisa nem dá qualquer pista de nada.”

Signos, nesse mundo dessacralizado, como também numa profusão de textos modernistas (dali a duzentos anos), são a priori e incontornavelmente ambíguos. Essa é a razão por que o crente nunca pode parar de trabalhar, porque se não se tem certeza da salvação agora, cada dia seu de labuta pode ser o fiel na balança para a absolvição no dia do Juízo. Ilhas tropicais, é bom lembrar, estão geralmente associadas à indolência, mas não no caso de Crusoe. Ele está sempre ocupado em melhorar e estender sua ‘propriedade paradisíaca’. ‘Eu realmente gostaria de um estábulo maior.’ Tanto é assim que o próprio Crusoe responde a si mesmo, vendo o quão ilógica é essa vontade: ‘Para quê?’. Crusoe não é um capitalista de verdade – é só um de mentirinha, sem mão-de-obra como Outro, sem mercado, consumidor, produto nem competidores ou divisão de trabalho. Mas, ainda que não tenha concorrentes, ele age como se os tivesse…”

A ilha de Crusoe é menos a utopia da pequena-burguesia numa dimensão paralela do que uma versão piorada ou distópica da situação pequeno-burguesa inglesa. Ou, antes, o que uma classe sofre no mundo, Crusoe sofre na sua ilha. Sua solidão é uma versão exponencial da solidão de todos os indivíduos da cidade moderna. Sendo absolutamente dependente num sentido, é verdade que é possível ser absolutamente autodeterminado num outro. Quão enérgico e engenhoso pode-se chegar a ser na administração de seu próprio império seria um índice de sua inclusão entre a minoria eleita. Assim poder-se-ia resolver o conflito aparente entre ser o joguete de Deus e, pelo próprio suor, pregar, no melhor estilo puritano, que o sucesso no trabalho é o melhor sinal que o mundo poderá dar de que você achou favor aos olhos da divindade.”

UM PROBLEMA ISENTO DE QUAISQUER “MEMÓRIAS PÓSTUMAS”: “A narrativa está sempre precariamente ancorada no presente que é um fio de navalha, em que a sorte do personagem é indefinida e o futuro absolutamente duvidoso; mas tudo isso é contado com um tal desassossego e afastamento, fechando um passado, que empresta certa autoridade. Supomos então que o narrador sobreviveu, nem que apenas pelo fato de estar agora, com a maior das calmas, falando de si mesmo na época em que corria perigo. Ansiedade e segurança se acoplam perfeitamente na escrita.”

E assim Defoe continua a insistir que sua estória existe com um fundo moral, embora isso seja obviamente uma farsa. O realismo, no sentido de uma atenção dedicada ao mundo material por si e nele mesmo, não está ainda avalizado neste período literário, embora se encontre em visível ascensão; embora a sociedade em que ele cresce e ascende demande-o cada vez mais, e encoraje-o mais que à moralidade, pois as pessoas passam a acreditar somente no que podem cheirar, tocar, provar. Samuel Johnson argumentava que o fato de um personagem ou evento ser fidedigno à natureza não servia de desculpa para incluí-lo num enredo ou obra de arte. Na teoria, essa colisão entre o moral e o real pode ser resolvida por justificações do autor, no estilo tabloide. Quão mais gráfica e escandalosa uma estória, mais fácil transmitir uma mensagem, poder-se-ia astuciosamente argumentar. Defoe escreve no prefácio para Roxana: ‘Se há qualquer parte da história, no relato de uma má ação, que pareça descrever as coisas de forma muito direta e impudica, todo o cuidado imaginável foi tomado para purificar o trabalho de todas as indecências e indecorosidades…’. Essas linhas, ao que parece, produziam, já naquele tempo, o mesmo efeito que hoje os avisos solenes, prévios a um audiovisual, acerca da presença de sexo e violência nos minutos que seguem: são só um chamariz a mais para a audiência (‘o que é proibido é melhor’), engenhosamente acrescentado pelo autor, sem transgredir nenhuma regra.

A novela realista se torna popular num marco da história em que o cotidiano banal começa a se tornar atrativo por si mesmo. Essa mescla do ordinário e exótico é a síntese do trabalho de Defoe. Parte do prazer extraído da leitura emana da excitação que deriva do puramente mundano. Defoe viveu em tempos turbulentos, e ninguém pode dizer que ele não viveu esses tempos intensa e perigosamente. Em épocas revolucionárias, a teatralidade adquire maior importância, mesmo fora da arte. Como a nova arte imita a vida, o teatral tem de despontar também na arte. Por último: Defoe também sabia o que era sofrer uma bancarrota, ser trancafiado nas galés e embarcar em expedições insólitas das quais não se sabia se se ia voltar.”

James Joyce, que, para nossa surpresa, enumera Defoe entre seus autores prediletos, escreveu do Crusoe que ele encarna ‘todo o espírito anglo-saxão … a independência masculina; a crueldade inconsciente; a persistência; a inteligência devagar mas eficaz; a apatia sexual; a religiosidade prática e metódica; a taciturnidade calculada’. Poderíamos dizer que essa é exatamente a visão que Sexta-Feira tem de Crusoe: Joyce é um súdito colonial da coroa britânica, e com certeza, quando alistado para a guerra, combateu muitos soldados com este perfil, em Dublin. Um ou dois assim são vistos no Ulisses. A passagem acima, que Joyce redigiu enquanto no exílio italiano, tem ainda algo do genial vislumbre do caráter imperial, que era meio-compatível com Joyce (colonizado, mas ao mesmo tempo da elite, ou seja, colonizador pela ótica dos subalternos, das massas irlandesas): outro materialista, o irlandês devia apreciar a fisicalidade intensa de Defoe. Uma vez o dublinense se descreveu como tendo a mente de um verdureiro. Defoe, por sua vez, destila em sua obra o autêntico espírito de uma nação de sapateiros.”

Quem é ele, ele se pergunta no mesmo estilo hipocondríaco do devoto liberal ou do pós-modernista, para interferir com a prática do canibalismo num povo primitivo? Mas o fato de maior parte da novela tratar justamente do know-how do homem civilizado e prático empresta lentes peculiares à tese do universalismo. A racionalidade ortodoxa, no sentido de ensinar quando o importante é se preservar, como não cair de um precipício, por exemplo, é mais plausível como universalidade de todos os povos do que qualquer outro tipo de raciocínio utilitário. É por isso que Sexta-Feira pode ajudar Crusoe nos trabalhos braçais muito antes de poder falar Inglês, porque a lógica do mundo material é comum a todas as culturas. Pedras caem em ambas (a ocidental e a autótocne) porque obedecem à gravidade, seja no Haiti ou em Huddersfield; quatro mãos aplicadas sempre trabalham melhor que duas para carregar objetos pesados; alguém pode jogar-lhe uma corda para evitar que você se afogue ainda que no sistema cultural de quem jogou a corda a água simbolize algo totalmente diferente do que você aprendeu em seus dogmas e valores. A racionalidade prática é, nesse aspecto, o epítome do Anglicismo: se o gentleman chegar de fato aos céus, está na cara que examinarão o lugar com bastante escrutínio, para tirarem o melhor proveito do que ele terá a oferecer. Mas eis um tipo de comportamento, senão onipresente, pelo menos atemporal.”

Não é escassa a literatura da tradição do comerciante-criminoso e vice-versa, dos vigaristas de John Gay em A Ópera do Vagabundo ao Vautrin de Balzac e o Mr. Merdle de Dickens. Como Bertolt Brecht disse: ‘O que é roubar um banco comparado com abrir um?’. A cozinha dos ladrões é a companhia de comércio sem a ideologia da respeitabilidade. O Coronel Jack começa como um ladrão de meia-tigela e termina como um bem-sucedido capitalista na Virgínia, sem nenhum talento a mais do que quando começara sua ‘carreira’. O mestre do crime de Fielding, Jonathan Wild, é um retrato satírico do político Robert Walpole, que funde em sua figura o mundo da alta política e da contravenção chic ou do colarinho branco. A idéia de ir parar numa terra virgem e construir do zero uma civilização deve constituir uma das fantasias mais intensas para a classe média. Sem dúvida isso ajuda a justificar a permanência de Crusoe como clássico sem o menor sinal de que vá ceder o posto tão cedo.”

Ao desafiar a influência do gentil-homem e da nobreza, era necessário, para lograr êxito, desacreditar o poder da antiguidade no processo. Defoe é sardônico sobre a obsessão aristocrática com a pureza de sangue e o matrimônio: Por que – ele pergunta no Compleat English Gentleman – os nobres permitem de boa vontade que amas-de-leite plebéias amamentem seus filhos, já que, ironicamente, elas lhes estão repassando, conforme a própria teoria eugênica dos sangue-azul, um sangue degenerado? N’O Inglês Puro-Sangue ele admite explicitamente a irrelevância do tópico da ancestralidade. Destarte, é uma fantasia muito benquista pelo homem branco imaginar-se num território virgem, poder desfazer toda a história até suas origens, recomeçando-a melhor, já com a ‘classe média’ no poder.”

O MESMO EFEITO DA ESTÁTUA DA LIBERDADE NO PRIMEIRO LONGA DE PLANETA DOS MACACOS: “O que nos deixa derrotados em Robinson Crusoe, e um dos momentos mais insólitos da literatura universal, é aquela misteriosa única pegada encontrada na areia.”

Ainda assim, Robinson Crusoe segue muitos anos sem preocupações em sua ilha; O Gulliver, de Jonathan Swift, não tem a mesma sorte.”

Como Defoe, Swift escreve numa prosa prática, transparente, célere, com o perdão do trocadilho,¹ sem muita textura ou ressonância. Seu texto não possui, como um crítico bem apontou, recessos ou raízes e ramificações mil. Há uma alarmante ausência de metáforas. É um estilo da superfície, sem muita profundeza nem interioridade.² Swift desconfia de toda reflexividade textual como de toda metafísica ou especulação abstrusa. Essa indiferença à verdade filosófica nos conta algo sobre o clero do século XVIII, do qual Swift fazia parte. É quase como um ladrão de banco ser indiferente ao dinheiro. Um aristocrata tory da época de Swift era necessariamente um amador, não um especialista: acreditava num certo número necessário de princípios básicos que o século do Iluminismo vinha tornar acessíveis a todos. Swift não poderia entender, ainda que sobrevivesse a sua época, a era da prosa de gêneros especializada. As Viagens de Gulliver não são, no sentido hodierno da palavra, uma obra ‘literária’, e não teriam saído do papel se o autor pensasse em escrever uma novela. A linguagem de Swift, como a de Defoe, tenta apagar a si mesma desdobrando o real no real, e na época não havia palavra para batizar esse zero fictício. As palavras perdem o valor e privilegiam os objetos, que ocupam o centro do palco. A própria linguagem ideal que o autor imaginou – uma língua que abole a língua – é a transparência do modelo. Isso acontece entre os laputianos gramáticos que, ao invés de conversar entre si usando as cordas vocais e convenções aceitas unicamente pelo seu povo, carregam para um e outro lado uma sacola com diversos objetos que eventualmente precisem comunicar, e vão-nos mostrando ao interlocutor, desempenhando uma caricata ‘linguagem de Babel’. A verdade é que a linguagem humana é este saco, mas sem fundo e diáfano, uma forma de levar o mundo conosco sem carregar peso algum (ainda que com a inconveniência de cada povo ter a sua língua). Os Houyhnhnms evitam elaborações verbais e mantêm uma perfeita correspondência entre palavra e coisa – a tal ponto, aliás, que são incapazes de mentir. Perfeitos como são em sua representação do mundo, se houvera dentre eles um escritor, seria este capaz de produzir uma bela novela realista!”

¹ Swift em inglês é ágil, veloz.

² Sublinhei em verde porque não posso estar minimamente de acordo com Eagleton neste trecho!

As Viagens de Gulliver, muito ao contrário do Crusoe, é um libelo do ‘anti-progressismo’ em que um protagonista amnesíaco parece não aprender nada ou aprender muito pouco em cada uma de suas jornadas; assim que ele parte para uma nova aventura, volta a aparentar ser uma tabula rasa. De fato as viagens de Gulliver são mais entrecortadas que as de Crusoe. Estas, mesmo que possam ser segmentadas pelo autor em capítulos e tomos, parecem bem-costuradas narrativamente. Gulliver vive literalmente episódios desconexos um do outro. Não em vão fala-se d’As Viagens como a suprema paródia do livro de viagem, gênero literário¹ usualmente otimista e cheio de ‘lições e aprendizados’.”

¹ O leitor de minha tradução deve ter percebido que em seu afã descritivo o crítico costuma se contradizer bastante. Aqui, vemos que na verdade o europeu do século XVIII contemporâneo de Defoe e Swift já reconhecia, senão o realismo ou o romantismo, pelo menos certos gêneros literários…

O tory Swift, ao contrário do whiggiano Defoe,¹ nada quer ter a ver com indivíduos. Sua única descrição é a de uma verdade universal, enquanto Gulliver e os personagens secundários servem apenas como meios para ilustrá-la. Gulliver não passa de um dispositivo narrativo bem conveniente, não é um ‘personagem’ propriamente dito, não é possível se identificar resolutamente com ele. Crusoe é bem diferente e vai crescendo em nossa concepção conforme avançam as páginas. Gulliver apenas ‘pede’ que observemos e julguemos os lugares que ele visitou.”

¹ Ver tabelas no final.

Os lilliputianos são cruéis, gananciosos e sectários, como se fossem réplicas em miniatura dos políticos de Westminster. Esse retrato da raça humana como corrupta e imutável é típica do conservantismo anglicano swiftiano. Ele desdenha a possibilidade de qualquer progresso dramático e mudança revolucionária para melhor no campo social, e logo se vê que a tal verdade universal que ele tenta mostrar é uma só: já conhecíamos essa verdade antes de viajarmos. Deus nos deu tudo de que precisávamos logo de partida, e velejar a esmo tropeçando em criaturinhas de uma polegada ou esbarrando no tornozelo de gigantes pouco importa nesse quadro. Talvez todos os indivíduos exóticos que encontramos não passem de distrações válidas unicamente para o momento.”

Mas só sabemos que os lilliputianos são diferentes de nós porque conservamos com eles a identidade do conceito de tamanho. Chamamos tarântulas de tarântulas e não de humanos porque usamos a linguagem, pela qual descrevemos e nomeamos as tarântulas, e elas não. Se as tarântulas fossem tão alienígenas assim à espécie humana, não seria esse o caso. Não se pode falar da diferença sem a comparação e o diagnóstico de algo igual. Os únicos diferentes reais de nós são aqueles que passam invisíveis, de cócoras, bem diante do nosso nariz, e que jamais percebemos.”

A escrita de uma viagem é, mais do que antes, como se vê, um gênero muito duvidoso para um tory se engajar naquele tempo. De um livro como esse esperam-se sobretudo novidades, que são indesejáveis para os conservadores. Defoe escreveu cedo na vida um Ensaio sobre Projetos (Essay on Projects), que era o perfeito contraponto dessa ânsia de imobilismo do tory: exibia grande entusiasmo quanto às reformas técnico-científicas. Crusoe rejeita implicitamente, ao querer sair de casa, os valores benquistos pela aristocracia (o lar, a coroa, a nação). Toda essa sede mercantilista de Crusoe não parece mais do que a pornografia do progresso para muitas mentes mais estreitas ou mais clássicas. Fantasiar com monstros desconhecidos é indecoroso; tudo que não é verossímil só pode nublar nosso julgamento. Crusoe encoraja caprichos tolos e emoções extravagantes que são péssimos para a lei e a ordem. Fora que, quanto mais viaja, mais Crusoe se sente um relativista cultural, algo igualmente insidioso para um tory. Pode ser perigoso para o viajante chegar a se tornar tão sonhador e apegado a coisas estrangeiras, a ponto de bradar, por exemplo, que se deparou com selvagens que, eles sim, são felizes e vivem em harmonia com a natureza. Isso seria negar o pecado original e inspirar nas gentes utopias cândidas e pueris, coisa contra a qual se deve lutar. Além do mais, de que vale, se o aventureiro acabaria sempre voltando ao solo inglês, muito longe dessas tais utopias inúteis? As alusões anti-monárquicas e anti-establishment de tais peregrinações pareceram, em todos os tempos, muito grosseiras aos tories.

Muito do debate em curso no século XVIII girava em torno de um consenso político que pudesse superar as terríveis dissensões do século anterior, mais animoso, de guerras civis e de queda e restauração da monarquia. Swift se referiu em vida a Defoe com toda a prepotência de um patrício: ‘Aquele sujeito que foi exibido no pelourinho – esqueci o nome dele…’. Mas não podemos deixar de observar em Swift o mesmo entusiasmo pelo comércio que em Defoe. Swift é irlandês e a Irlanda estava sempre em posição mais combalida que a metrópole. Além disso, Swift também não dava crédito à teoria da pureza da raça, e gostava de se ver como um burguês em que tudo de seus antepassados já se diluíra há muito tempo, a ponto de torná-lo irreconhecível para estes. Swift foi um tory, mas um tory radical, um exemplar do animal oximorônico que muito enriqueceu a cultura inglesa se formos considerar outros escritores tories e radicais ao mesmo tempo, como William Cobbett e John Ruskin.

Defoe era ‘progressista’ e rebelde, mas chegava a delírios de esnobeza episódicos tão altaneiros que chegou a alterar seu nome de Daniel Foe para Daniel De Foe, e que hoje escrevemos Defoe. A conjunção ‘de’ implica origem nobre. Swift e autores como Pope viam a sociedade britânica como desprovida desde os primórdios de mérito congênito, uma raça venal que além de tudo foi muito corrompida pelo poder e pelo dinheiro com o passar do tempo, atributos que eles viam encarnados pelo odioso primeiro-ministro whig Robert Walpole (já comentado). Mas Defoe não deixava, idem, de criticar a obsessão cega e sem qualquer pano de fundo pelo dinheiro.

Poderíamos ver os mesmos entrelaçamentos complementares e/ou contraditórios em pares como Henry Fielding e Samuel Richardson. Richardson era filho de um carpinteiro de Derbyshire, não completou a escola básica e se tornou impressor, enquanto Fielding era um egresso do colégio de Eton repleto de conexões com figurões. Richardson tinha estilo agressivo, era um campeão das classes médias, e afirmava que o ofício do comércio ‘é infinitamente de mais conseqüência, e devia ser muito mais estimulado que qualquer outra posição ou ranking social, sobretudo as dos títulos inócuos típicas da Inglaterra’. E não obstante Richardson se punha estupefato diante da quantidade de personalidades decrépitas e mesquinhas das novelas de Fielding: chegou a afirmar que se não soubesse quem Fielding era, pensaria se tratar de um cavalariço. Fielding rebatia. Disse uma vez que Pamela de Richardson encorajava jovens aristocratas a se casarem com as camareiras de suas mamães, e que não conseguiria por nada pôr-se no lugar dos nobres de suas novelas. Com efeito, em vez de casar-se com a empregada de sua mãe, Henry Fielding casou-se, no segundo matrimônio, com a empregada de sua primeira esposa!” HA-HA-HA-HA!

O nome Gulliver está muito bem-dado, por sinal.¹ Sua credulidade é o mais das vezes seu ponto fraco. Ele de alguma forma se sente pateticamente (afetivamente) ligado a pessoas que conhece em suas viagens um tanto rápido demais, sem muito senso crítico. Em Lilliput, vangloria-se de seu título de Nardac, espécie de análogo a cavaleiro da rainha, lança-se como líder militar, envolve-se em intrigas as mais pavonescas, tendo de enfrentar um processo para provar que não cometeu fornicação com uma lilliputiana. A impossibilidade física do ato sexual entre seu corpo descomunal perto de um lilliputiano não parece ter passado ora alguma pela cabeça do réu que tentava, afobado, se defender. (…) De herói a vilão da pátria, Gulliver parece ser sempre o mesmo, tanto num pólo como noutro, levado unicamente pelas circunstâncias e vilezas dos outros personagens.”

¹ “Gullible” é bobo, ingênuo.

E a despeito do inconveniente de ser um inglês e de explorar terras tão remotas, ele é um ótimo aluno de idiomas, aprendendo rápido a falar como os nativos em suas jornadas, apesar de que isso soa mais como recurso estilístico para justificar a comunicação de Gulliver nessas praças do que uma característica que Swift gostaria de ter dado sem mais a seu protagonista. Se essa parte da personalidade de Gulliver se mostra tão expedita para se adaptar aos costumes forasteiros, sua outra metade é a de um inglês chauvinista cabeça oca, complacente e cego quanto aos defeitos dos seus conterrâneos. Seu relato visivelmente galante da história do reino britânico ao rei Brobdingnag logo produz um efeito contrário ao esperado, horrorizando-o, a ponto deste rei considerar que, se Gulliver fala mesmo a verdade, todos os bretões não passam de uns vermes.”

Ou ele é um imperialista ou um relativista cultural, sem meio-termo. A questão é que a novela serve para demonstrar a secreta afinidade entre os dois extremos. Não há tanta diferença entre defender acriticamente a Coroa inglesa ou o poder soberano de Lilliput. Se devêramos simpatizar com outras culturas, se isso fosse um imperativo, então por que não simpatizar com a própria civilização? Se devemos desculpar os canibais, por que não as grandes multinacionais que poluem a atmosfera? Se todas as culturas estão em ordem e seguem na supracitada ‘harmonia cósmica’, então na realidade não há nada o quê escolher, e nenhum indício de que os brobdingnaguianos seriam superiores, em qualquer sentido, aos ingleses.”

Swift com certeza conhecia o que era preconceito: difamador dos bons, satirista vituperador altamente imaginativo e polemista de vocação, capaz de ignorar a verdade só para terminar com a razão, acabava inadvertidamente por levantar a bandeira da intolerância política e religiosa. Se a sátira de Fielding é genial, a de Swift é tão brusca e amalucada em contraste que parece até semipatológica. Ele era misógino, autoritário, troçador da canalha, e acima de tudo um representante da Irlanda de seu tempo, isto é, a colônia inglesa que era quase um pária e que, caso houvesse uma corrida entre todos os povos colonizados pela Inglaterra decerto não chegaria em primeiro lugar, no juízo inglês. Eis aqui, outra vez, o incômodo e involuntário papel ambíguo de diplomata e capataz, exercido, como vimos, por James Joyce.”

Enfim, o que As Viagens parece querer ensinar? Que você deveria apreciar todas as culturas humanas em sua parcialidade, sem ser um Gulliver, mas também sem recair no niilismo. Homens e mulheres precisam cultivar ideais, como as virtudes plácidas e racionais dos Houyhnhnms, caso queiram ser mais do que reles materialistas. O problema é deixar que esses ideais exerçam um papel predatório na própria consciência. Isso seria ser tão ao revés de um materialista que representaria a negação do próprio corpo, tão ruim quanto a falta de ideais. Não se deve chegar a esse ponto, o de perceber-se com desgosto por causa do Outro. Não se conformar inteiramente com o próprio corpo, é certo, mas nem por isso chegar a reprimi-lo.”

Se não fosse por terem 4 patas e cauda, os Houyhnhnms talvez não estivessem totalmente fora do lugar num salão janeausteniano, tomando chá com Mr. Knightley. Mas convenhamos que este é o ponto: os Houyhnhnms são menos uma possibilidade humana do que, como um ensaísta bem colocou, uma impossibilidade insultante.”

Qual perspectiva é a correta? Difícil responder na época em que inventaram o microscópio. Quão distanciado ou aproximado dos fatos você precisa estar para vê-lo ‘direito’? O que se vê na lente de um microscópio é a verdade ou a distorção da verdade?”

Os novelistas do Dezoito, tendo estabelecido uma distância do mundo romanesco, estão a maior parte das vezes cônscios de que a crença no fato nu e cru é tão mítica quando o próprio ideal do Romance. A novela, sendo a forma literária que é, nada pode fazer no tocante a decidir qual perspectiva é mais ‘verdadeira’, embora exerça um importante papel na definição do ‘mundo real’. Gulliver é um empiricista ultimado ou crente no fato bruto, um ponto de vista que anda de mãos dadas com seu interesse ‘progressista’ nos problemas técnicos e mecânicos (em contraponto ao próprio Swift, parecendo-se, desse ângulo, uma reedição de Crusoe). Ele é um exemplar do ‘novo homem’: cabeça-dura, ou melhor, obstinado, pragmático, aposta todas as suas fichas na religião chamada progresso, é fascinado por esquemas quiméricos e projetos de reforma social, ansioso por galardoar sua narrativa em primeira pessoa com mapas e provas documentais que para ele atestam a veracidade absoluta do que observa nas nações forasteiras.”

Mas Swift não nos brinda com uma solução ao dilema fundamental. Ele desaparece de vista e dá espaço para o leitor lidar com as contradições postas. É da natureza de sua sátira deixar de propor qualquer resposta construtiva – em parte porque um gentleman não carece de se envolver com esses problemas, ninharia de pequeno-burguês; e em parte porque qualquer solução logo se denunciaria como parcial.”

Swift e Defoe escrevem ambos numa sociedade que acredita na verdade, na razão e na justiça teóricas, mas cuja conduta contumaz se tornou tão falsa, injusta e irracional que já não é possível acreditar em nenhum indivíduo na prática.”

Se ‘primitivos’ como os irlandeses (que não são civilizados como os ingleses, ainda) e os aborígenes do Pacífico Sul forem realmente Yahoos, parece que isso justificaria o imperialismo britânico. Mas se os Yahoos são a humanidade inteira, então os colonizadores são (metaforicamente) bestiais e vivem também cobertos de fezes, o que suprime qualquer direito de soberania que tanto se arrogam. Por esta via, o colonialismo se torna uma questão de um bando de selvagens hipócritas liderando outros selvagens, não-hipócritas. Os mestres seriam tão imprestáveis quanto os súditos – uma opinião que, n’O Coração das Trevas, desautoriza qualquer colonialismo mas confirma, ainda, alguns de seus preconceitos (sim, os nativos são mesmo uns imprestáveis).”

Yahhoo boss (Quintanilla)
O chefe Yahoo

No fim, o que cavalos pensam de nós não é o suficiente para nos rotular como Houyhnhnms nem Yahoos – exceto, talvez, para os antepassados dos nobres anglo-irlandeses, para quem era regra amar um cavalo mais do que seus entes queridos, quem dirá o povão.”

comparison gulliver vs crusoe
comparison swift vs defoe

THE ART OF NOISES – Manifesto do pintor futurista Luigi Russolo

The Greeks themselves, with their musical theories calculated mathematically by Pythagoras and according to which only a few consonant intervals could be used, limited the field of music considerably, rendering harmony, of which they were unaware, impossible.

The Middle Ages, with the development and modification of the Greek thetrachordal system, with the Gregorian chant and popular songs, enriched the art of music, but continued to consider sound in its development in time, a restricted notion, but one which lasted many centuries, and which still can be found in the Flemish contrapuntalists’ most complicated polyphonies.”

Eis que fez-se o acorde!

On the other hand, musical sound is too limited in its qualitative variety of tones. The most complex orchestras boil down to 4 or 5 types of instrument, varying in timber: instruments played by bow or plucking, by blowing into metal or wood, and by percussion. And so modern music goes round in this small circle, struggling in vain to create new ranges of tones.”

We Futurists have deeply loved and enjoyed the harmonies of the great masters. For many years Beethoven and Wagner shook our nerves and hearts. Now we are satiated and we find far more enjoyment in the combination of the noises of trams, backfiring motors, carriages and bawling crowds than in rehearsing, for example, the Eroica or the Pastoral.

We cannot see that enormous apparatus of force that the modern orchestra represents without feeling the most profound and total disillusion at the paltry acoustic results. Do you know of any sight more ridiculous than that of 20 men furiously bent on the redoubling the mewing of a violin?”

Meanwhile a repugnant mixture is concocted from monotonous sensations and the idiotic religious emotion of listeners buddhistically drunk with repeating for the nth time their more or less snobbish or 2nd-hand ecstasy.”

Nor should the newest noises of modern war be forgotten. Recently, the poet Marinetti, in a letter from the trenches of Adrianopolis, described to me with marvelous free words the orchestra of a great battle:

every 5 seconds siege cannons gutting space with a chord ZANG-TUMB-TUUMB mutiny of 500 echos smashing scattering it to infinity. In the center of this hateful ZANG-TUMB-TUUMB area 50km² leaping bursts lacerations fists rapid fire batteries. Violence ferocity regularity this deep bass scanning the strange shrill frantic crowds of the battle Fury breathless ears eyes nostrils open! load! fire! what a joy to hear to smell copletely taratatata of the machine guns screaming a breathless under the stings slaps traak-traak whips pic-pac-pum-tumb weirdness leaps 200m range Far far in back of the orchestra pools muddying huffing goaded oxen wagons pluff-plaff horse action flic flac zing zing shaaack laughing whinnies the tiinkling jiiingling tramping 3 Bulgarian battalions marching croooc-craaac (slowly) Shumi Maritza or Karvavena ZANG-TUMB-TUUUMB toc-toc-toc-toc (fast) crooc-craac (slowly) crys of officers slamming about like brass plates pan here paak there BUUUM ching chaak (very fast) cha-cha-cha-cha-chaak down there up around high up look out your head beautiful! Flashing flashing flashing flashing flashing flashing footlights of the forts down there behind that smoke Shukri Pasha communicates by phone with 27 forts in Turkish in Herman Allo! Ibrahim! Rudolf! allo! allo! actors parts echos of prompters scenery of smoke forests applause odor of hay mud dung I no longer feel my frozen feet odor of gunsmoke odor of rot Tumpani flutes clarinets everywhere low high birds chirping blessed shadows cheep-cheep-cheep green breezes flocks don-dan-don-din-baah Orchestra madmen pommel the performers they terribly beaten playing din not erasing clearing up cutting off slighter noises very small scraps of echos in the theater area 300km² Rivers Maritza Tungia stretched out Rodolpi Mountains rearing heights loges boxes 2000 shrapnels waving arms exploding very white handkerchiefs full of gold srrrr-TUMB-TUMB 2000 raised grenades tearing out bursts of very black hair ZANG-srrrr-TUMB-ZANG-TUMB-TUUMB the orchestra of the noises of war swelling under a held note of silence in the high sky round golden balloon that observes the firing…”

Every noise has a tone, and sometimes also a harmony that predominates over the body of its irregular vibrations.”

We are therefore certain that by selecting, coordinating and dominating all noises we will enrich men with a new and unexpected sensual pleasure.

Although it is characteristic of noise to recall us brutally to real life, the art of noise must not limit itself to imitative reproduction. It will achieve its most emotive power in the acoustic enjoyment, in its own right”

We note, in fact, in the composers of genius, a tendency towards the most complicated dissonances. As these move further and further away from pure sound, they almost achieve noise-sound.”

In this way the motors and machines of our industrial cities will one day be consciously attuned, so that every factory will be transformed into an intoxicating orchestra of noises.”